sábado, 19 de fevereiro de 2011

Narrador e personagens. A construção de sentido em Rute 1

Retomo a mensagem anterior a respeito do narrador em Rute a partir das perguntas que fiz e também interagindo com as mensagens do Júlio e do Paulo.

Muito instigantes as mensagens do Paulo. De fato, as imagens são elementos concretos que nos levam à abstração, uma vez que somos nós, os leitores (sim, lemos as imagens), que devemos dar sentido ao que vemos. E fazemos isso por intermédio de nossa imaginação. Os textos, por sua vez, também possuem concretude, mas ela é sensível e delicada, uma vez que necessitam da nossa interação para que façam sentido e se mantenham. Isso significa que somos nós, novamente os leitores, que damos um veredito final, pelo menos de forma concreta, ao textos com quem nos relacionamos. A diferença entre textos e imagens é que estas se impõem a nós, e, caso não as decifremos, elas permanecem como estão. Os textos não. Eles são mais frágeis e solicitam a todo instante que os completemos a partir de nossa compreensão. Há uma linha teórica na teoria literária chamada de estética da recepção que trabalha nesse perspectiva, sendo seus principais autores dois alemães: Wofgang Iser e Hans Robert Jauss, aos quais pode ser agregado o norte-americano Stanley Fish, este mais ligado às teorias do reader response.

Quanto ao que escreveu o Júlio, concordo com sua análise das questões de gênero que percorrem o livro. Eu também as noto no primeiro capítulo de Rute. Nele a preponderância das mulheres é apresentada claramente. Os homens, de fato, ficam em segundo plano, ocupando funções de figuração.

Volto às perguntas que fiz no post anterior:

- Qual a importância e o papel das vozes do narrador e dos personagens no texto?
- Como cada uma delas apresenta a ação de Deus?
- Há alguma contradição entre essas duas vozes?

Conforme esquematizei na mensagem anterior, o primeiro capítulo apresenta dois tipos de vozes: a do narrador e a dos personagens, principalmente Noemi. Ambas dão cores para a narrativa e a direcionam. Rute ainda é um personagem secundário, embora sua decisão de seguir terminantemente Noemi já prenuncie seu protagonismo que logo se manifestará.

Como as duas vozes se relacionam? Os autores normalmente atribuem sentido em suas narrativas através da voz do narrador ou quando o narrador cede espaço para a voz dos personagens. É o que acontece aqui. O narrador se manifesta no início (vs. 1-7) e no final (vs. 18-19a) com o objetivo de introduzir as cenas. No primeiro caso, ele prepara a cena do diálogo entre Noemi e as noras (vs. 8-17); e no segundo, a reação dos moradores de Belém, principalmente das mulheres, e a resposta de Noemi a elas (vs. 19b-21). O narrador volta à cena novamente para fechar o capítulo (v. 22).

A segunda pergunta apresenta uma diferença de perspectiva entre a voz do narrador e a de Noemi, principalmente em relação à ação de Deus.

No texto estudado o narrador exerce a função de descrever as situações, sem, no entanto, posicionar-se a respeito delas. Por exemplo, Elimeleque sai de Belém com a esposa em virtude da fome que assolava aquela terra. Não há nenhuma análise do narrador a esse respeito. A ação é apresentada como um dado lógico. A família vai para Moabe procurando sobreviver à penúria que os alcançou. Do mesmo modo, a morte do marido, o casamento dos filhos e a posterior morte deles são descritos de modo objetivo, sem nenhum comentário ou avaliação (apenas no v. 5 o narrador indica que ela "ficou desamparada de seus filhos", mas penso que isso não é uma afirmação de cunho dramático, mas sim concreto. Noemi não gozava mais da proteção dos filhos). De modo lógico o narrador registra que Noemi e as noras resolvem retornar para a terra de Judá (v. 7). Mesmo ao fechar o capítulo, o narrador se omite de registrar qualquer comentário a respeito de Noemi e Rute, e da situação em que se encontravam. Ele apenas informa que elas voltaram para Belém no início da sega da cevada.

É importante reconhecer que o narrador não faz nenhum comentário ou afirmativa a respeito da ação divina na situação vivida pelos personagens. Ele atua no plano da história humana, sem adentrar os céus para nos informar o que Deus fez ou não, o que pensava ou não da situação.

Por outro lado, Noemi é o agente narrativo que apresenta avaliações e decisões. Após a morte do marido ela toma as rédeas dos destinos da família. É ela que decide retornar para Judá. É ela que dispensa as noras para voltarem para suas famílias, argumentando que o futuro delas não seria nada auspicioso ao lado da sogra. É ela que aceita os argumentos de Rute e resolve levá-la consigo. É ela que, ao avaliar a experiência pela qual passava, resolve mudar de nome, tornando-se Mara.

Agora, mais importante do que isso é o fato de que, em oposição ao narrador que silencia a respeito da ação divina, Noemi por várias vezes interpreta os caminhos de Deus. Ela afirma categoricamente que “o Senhor descarregou a sua mão sobre mim” (v. 13), atribuindo a ele seu infortúnio; a alteração de seu nome deve-se à conclusão de que “grande amargura me tem dado o Todo-Poderoso” (v. 20); ela registra que era “ditosa” (feliz, afortunada) quando partiu de Belém, mas que o Senhor a fazia retornar para sua cidade “pobre”; e, finalmente, que “O Senhor se manifestou contra mmim e que o Todo-Poderoso me tem afligido” (v. 21).

Tais observações me levam à terceira pergunta. Há contradição entre as vozes do narrador e de Noemi? A resposta não é muito fácil. Isso explica a complexidade das narrativas bíblicas e, por isso mesmo, a fascinação que exercem no decorrer da História.

Podemos pensar que as duas vozes estão relacionadas em caráter complementar. O narrador apresentando os fatos, e Noemi interpretando-os e vinculando-os à ação divina. Mas isso, por si só, já é diferente do que acontece usualmente. Em geral é o narrador, que se apresenta em terceira pessoa, e por isso mesmo é onisciente, que traz à luz detalhes que são ocultos aos personagens e aos leitores. Aqui o personagem assume o papel de interpretar o que ocorre na narrativa.

Mas acho que há mais a ser dito. Penso que o elemento complementar é suplantado por outro. Pela oposição de posições. Afinal, se o narrador nada afirma sobre o que Deus faz, Noemi não teme em fazê-lo. Mas ela estará correta em sua interpretação? Por exemplo, ela está certa ao dizer que saiu feliz e afortunada de Belém em direção à Moabe e que foi Deus que a fez empobrecer? Estará correta ao dizer que Deus a tem afligido e agido contra ela? Não sei não...

Uma pista para pensar essa questão é um pequeno detalhe. Quando Rute fala também apresenta, de modo rápido, como compreendia a situação. Ela diz: “o teu Deus é o meu Deus” (v. 16) e: “Faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver” (v. 17). Seria lógico, se concordasse com Noemi a respeito da ação divina, querer que esse Deus fosse o Deus dela? E mais, colocar-se-ia nas mãos dele, para que fizesse dela o que bem lhe aprouvesse”, se concordasse com o ponto de vista de Noemi sobre Deus? Parece-me que Rute tem outro ponto de vista em relação a Deus.

Como é perceptível, este primeiro capítulo de Rute possui uma lógica própria, com algumas questões claras e outras não tão claras. É este último elemento que convida o leitor a contribuir com a construção de sentido. Esse é o aspecto ético intrínseco a toda narrativa. Nossas decisões diante dos caminhos propostos para que a história faça algum sentido.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Transformações Narrativas

Em outra mensagem, descrevi as principais características do conceito semiótico de narratividade. Permitam-me, nesta, analisar aspectos da narratividade do livro de Rute, já dialogando com as leituras de Paulo e Leonel.

O “estado inicial” dos actantes narrativos (Rute e Noemi) é um estado de desalento, desânimo, perda radical (a morte dos homens, em uma sociedade agrícola patriarcal, é a maior desgraça econômica que pode atingir uma mulher – pois ela perde a terra, perde o nome, perde o teto Rute 1,1ss). O “estado final” retrata uma completa inversão do estado inicial: Rute se casa, Noemi ganha um filho, e o gurizinho será o ancestral do mítico rei Davi (“mítico”, no sentido de que ele se torna, para alguns escritos do AT, modelo/padrão de realeza segundo a vontade de YHWH).

Se descrevemos apenas essa transformação, o texto parece ter se tornado banal. Mais uma estorinha sobre mulheres que perderam tudo, mas deram a volta por cima e recuperaram o que haviam perdido. Mais uma estorinha patriarcal que infantiliza as mulheres e as subordina aos maridos. Entretanto, quando prestamos atenção às ações e transformações que fazem o livro sair do estado inicial e chegar ao seu estado final, percebemos que há “algo mais” nessa estorinha.

A primeira característica que me chama a atenção é a de que os actantes narrativos são, na dimensão discursiva do texto (a “narrativa” narrada ...), as mulheres. Os homens são sujeitos subordinados às mulheres na trama textual: os primeiros homens apenas entram na história para morrer; Booz nunca toma a iniciativa, é sempre levado a agir por Rute (e Noemi), e, quando age, age seguindo o costume local. O parente (sem nome) que poderia se casar com Rute, apenas desiste do dever; os conselheiros apenas atestam o negócio entre Booz e o “fulano” (eles também oferecem um voto de sucesso a Booz, sucesso que dependerá dos filhos que Rute lhe der...).

A segunda característica que me chama a atenção é a sagacidade e sabedoria de Rute. Ela é a “cabeça do casal”, mas sempre age de modo que tal fato não seja percebido – é obediente a Noemi, é submissa a Booz. Até mesmo no ato de seduzir a Booz, o texto narra o evento de modo a ocultar a sensualidade da cena. Eu sei que a interpretação do “deitar aos pés” de Booz é contestada e muitos exegetas não aceitam que a expressão tenha conotação sensual. Mas, me pergunto: se Rute só se deitou aos pés (literalmente) de Booz, porque o narrador descreve a cena com requintes de sutileza: ”ela dormiu a seus pés até de manhã, e se levantou quando as pessoas ainda não se reconheciam (pois Booz não queria que soubessem que a mulher tinha ido à eira” (3,14 Bíblia do Peregrino)? Poderíamos comparar o “mistério de Rute 3,14” ao “mistério da mancha vermelha” de Chagall.

[Não consigo resistir à tentação... Preciso citar um Comentário Bíblico: "Y
aunque Boaz no quiere que se divulguen noticias acerca de la visita de una mujer... a la era (vv. 11 y 14), después del diálogo a media noche, él invita a Rut a volverse a acostar a sus pies “hasta la mañana” (v. 13b). Y los dos volvieron a dormir, sin que nada indecoroso pasara. Pareciera que ya habían oído de la verdad que dice: AMAR ES ESPERAR." (Comentário Bíblico Mundo Hispano)]

A terceira característica que me chama a atenção é a moldura “patriarcal” da estória narrada. É tentador dar um jeito nessa moldura mediante a cirurgia crítica – inventar uma narrativa “feminista” de fundo, recoberta por uma editoração “patriarcal” e “monárquica”. Assim, as contradições e tensões da estória desaparecem, e se pode fazer uma classificação simples e segura do gênero textual, do lugar social e da autoria. Simples e segura, mas apenas banal. Classificação que mantém os binarismos fáceis e sem sentido – “feminino” versus “masculino”; “popular” versus “monárquico”; “campo” versus “cidade”; etc. A estorinha de Rute, porém, não se submete a esses binarismos. É tensa, nervosa, contraditória. É como a vida da gente!

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O livro de Rute - quem conta a história?

Depois das mensagens e imagens instigantes, inicio minha análise do livro de Rute com uma questão de base. Quem conta a história?

A pergunta nem sempre é feita, mas é sempre subentendida. Afinal, é necessário que a história chegue a nós pela mediação de uma voz. Essa voz é a do narrador.

Nos livros bíblicos normalmente temos um narrador que apresenta a narrativa em terceira pessoa. Ou seja, é alguém que diz: "fulano morava em tal lugar [...] Ele foi para a cidade [...] Uma pessoa se proximou dele [...]".

Isso quer dizer que esse tipo de narrador narra de fora da história. É como se ele visse o desenrolar do enredo e o apresentasse aos leitores. Uma vantagem desse tipo de narrador é que ele não está preso ao tempo, ao espaço e ausente da intimidade dos personagens. Pelo contrário, ele pode se locomover no tempo (pense no narrador do Gênesis que se desloca em meio a grandes porções temporais), pode estar em vários lugares (como faz o narrador nos evangelhos ao acompanhar Jesus para o deserto, para o pináculo do tempo, e para um alto monte), e pode, inclusive, penetrar na mente e no coração dos personagens para dizer-nos o que pensam e o que sentem (como, por exemplo, no caso de Jesus, quando o narrador nos diz que ele "não confiava naqueles que viam seus sinais" [Jo 2.24], e quando, diante da dureza do coração dos religiosos frente à cura do homem com a mão ressequida, o narrador revela os sentimentos de Jesus: "indignado e condoído" [Mc 3.5].

A característica principal desse narrador é que ele fornece aos leitores informações privilegiadas, que muitas vezes são desconhecidas dos personagens. Isso traz consequências para a interpretação dos textos.

A partir desse momento passo a analisar o narrador no primeiro capítulo de Rute.

Lembro que usarei para este estudo a BÍBLIA Sagrada. Edição revista e atualizada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblia do Brasil, 1999.

O narrador inicia fornecendo a nós, leitores, informações básicas para a compreensão do livro no v. 1:

- contexto histórico em que ocorrem os eventos - "Nos dias em que julgavam os juízes";
- o que move inicialmente o desenvolvimento dos fatos - "houve fome na terra";
- os personagens iniciais - "um homem de Belém de Judá, sua mulher e seus dois filhos";
- a primeira ação dos personagens - "saiu [o homem, sua mulher e seus dois filhos] a habitar a terra de Moabe".

A partir do v. 2 o narrador introduz dados mais específicos em relação ao v. 1:

- define o nome do homem, de sua mulher e de seus dois filhos;
- inicia o desenvolvimento do enredo ao esclarecer que o plano de ir para Moabe em função da fome foi bem sucedido - "vieram à terra de Moabe e ficaram ali".

A partir do v. 3 o ritmo do enredo é acelerado ao introduzir uma série de infortúnios que se sobrepõem às bênçãos:

- Elimeleque morre, ficando a viúva Noemi e seus dois filhos (v. 3);
- Os filhos se casam com moabitas - Orfa e Rute - o que permite uma certa estabilidade à família, uma vez que eles permanecem na terra por mais 10 anos (v. 4);
- Os filhos também morrem e o narrador especifica que Noemi ficou "desamparada" sem o marido e os dois filhos (v. 5);
- O narrador nos informa ainda que Noemi ouvira que Deus havia se lembrado do seu povo, dando-lhe pão em sua terra, e decide voltar para lá com as duas noras (v. 6);
- O narrador explicita que, de fato, elas começaram a viagem de regresso, mas que no caminho Noemi se dirige às noras (v. 7).

Nesse ponto é necessário parar por um instante. Dos vs. 1 ao 7 temos a voz do narrador apresentando e definindo aspectos da história. A partir do v. 8 até 17 temos o diálogo das mulheres, com poucas intromissões do narrador. Vamos analisar esse bloco.

- A fala de Noemi está nos vs. 8 e 9a. Parece que ela alterou sua disposição inicial de levar as noras, visto que diz a elas: "Ide, voltai cada uma à casa de sua mãe". Afinal, naqueles tempos uma mulher viúva e sem família estava desamparada. Três viúvas apenas intensificava a situação. Ela deseja que as duas sejam abençoadas assim como abençoaram a seus maridos, inclusive que se casem novamente - "sejais felizes, cada uma em casa de seu marido" (v. 9). Casar, nesse contexto, significa reaver a segurança de um lar;
- Nos vs. 9b e 10 há a reação, rápida, das noras, ao dizerem que iriam com Noemi para sua terra;
- Noemi, no entanto, insiste, afirmando que não tinha mais filhos para oferecer a elas, e que sentia-se culpada pela desgraça delas, reconhecendo que o Senhor havia "descarregado contra mim a sua mão" (vs. 11-13);
- Uma delas, Orfa, aceita as palavras da sogra e retorna para seu povo. Rute, contudo, reafirma o propósito de seguir com ela e de assumir o Deus de Noemi como seu Deus, qualquer que fosse o seu propósito (v. 14-17).

Nesse momento volta a voz do narrador afirmando que Noemi reconhece a disposição de Rute e aceita que ela a acompanhe. Ambas chegam em Belém, de onde saíra inicialmente a família de Noemi (v. 18-19). O narrador introduz nova série de falas a partir do final do v. 19.

- Embora toda a cidade se comovesse, é a fala das mulheres que é relatada: "Não é esta Noemi?" Ao que ela responde dizendo que não se chamava mais Noemi, mas sim "Mara", esclarecendo que esse nome significa "grande amargura me tem dado o Todo-Poderoso" (v. 20);
- No verso seguinte (21) ela explica seu novo nome. Ela partir ditosa, mas Deus a fez voltar pobre. O Todo-Poderoso a tem afligido.

O capítulo finaliza com a voz do narrador. Ele fecha o bloco com um resumo: "Noemi voltou de Moabe para Belém com sua nora". E faz uma ponte com o próximo capítulo: "chegaram a Belém no princípio da sega da cevada".

Este post já está bem grande. Finalizo com algumas perguntas que retomarei na próxima mensagem:

- Qual a importância e o papel das vozes do narrador e dos personagens no texto?
- Como cada uma delas apresenta a ação de Deus?
- Há alguma contradição entre essas duas vozes?

domingo, 13 de fevereiro de 2011

O encontro entre Rute e Boáz: cor e movimento

Espero que vocês tenham gostado da experiência de ler imagem. Por meio das imagens nós participamos de leituras feitas e recriadas por outras pessoas, em outro código. O código visual, como vimos, organiza a narrativa em seus elementos básicos - espaço e tempo - de forma diferente do texto. A imagem nos apresenta de uma vez o que o texto faz em sequência. Escreve por meio de registro, alinhamento, perspectiva, luz, cor, etc o que o texto apresenta como sequência de conceitos.

Chagall era um leitor perspicaz do texto bíblico. Tive a oportunidade de ver em 2009 em Belo Horizonte a exposição de obras de Chagall que incluia a sua série bíblica. Realmente impressiona a forma como ele recria os textos em  suas imagens. A imagem que apresentei pra vocês é especialmente interessante pois parece que não corresponde a um versículo em especial. O tema do encontro de Rute e Boáz é pressuposto, mas não narrado no texto. Ou melhor, não como imaginaríamos. No texto ele é marcado por um clima que para nós não tem nada de romântico. Boáz, depois de ter notado a moça recolhendo sobras de espigas em seu campo, dá ordens a seus servos para que não a molestem e permitam que ela possa beber água com eles (?!). No mais, no encontro é pedido para que ela não vá colher em outro campo. O texto bíblico é marcado pelos limites de sua cultura. Imaginem como um homem poderoso abordaria nos dias de hoje uma mulher pobre e dependente pela qual ele se apaixona. Boáz não faz a corte, nem esbanja generosidade, pelo menos em nossa perspectiva. Mas o leitor Chagall pressupõe algo que deve estar no texto, algo fundamental: um encontro entre homem e mulher. Neste encontro nada é gratuíto. Boáz já sabe quem é Rute e de seu cuidado com sua sogra. Sua aproximação, por mais fria que pareça para a nossa cultura, é interessada. Da mesma forma agirá Rute nas próximas cenas. Trata-se de um encontro amoroso. A imagem não deixa dúvidas sobre isso.

Vamos à imagem. Há movimentos e cores em destaque. Os braços são marcantes. Ainda que o corpo de Boáz seja (e esteja colocado) mais alto é no de Rute que se observa toda a expressividade. Os gestos dela são mais fortes, digamos: dilacerantes. De Boáz vemos os dois braços, mas em postura claramente defensiva. De Rute vemos apenas um, em movimento de ataque. Ele, mais alto que ela, se defende; mesmo olhando de cima para baixo, se sujeita. O olhar dela é ferino frontal e marcante. Está dado o encontro amoroso. Boáz, o senhor de terras, foi fatalmente ferido pela pobre moabita. Vejamos o jogo de cores na imagem. Temos uma bola vermelha no lado de Boáz. Não saberia dizer o que é isso. Mas podemos interpretar a força da cor com o fato de que em todo o vestido de Rute há manchas semi-circulares vermelhas, no formato de seu braço, ele também manchado de vermelho. O gesto dela parece dilacerar o rosto de Boáz, este também manchado de vermelho. A cor aqui expressa paixão, desejo erótico, em potência ao lado de Boáz, em movimento no corpo e no ataque de Rute sobre Boáz. O olhar dela é carinhoso e sedutor, o dele cheio de temor e sujeição. A imagem ressalta o que não está no texto, mas o que está em nossas expectativas do encontro em homem e mulher e no fato de que a relação entre o senhor e a serva são invertidos neste momento de encontro entre homem e mulher. 

Vamos analisar mais duas imagens de Chagall sobre o livro de Rute?


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O mistério da mancha vermelha

Este título parece de texto policial. Mas logo ficará claro ao leitor. Ele é um artifício para mostrar explicitamente o que se encontra implicitamente em todas as leituras. Após as introduções ao gênero textual da narrativa feitas por Júlio e por Leonel, quero mostrar que narrativa é algo tão marcante na cultura humana que sobrevive mesmo em linguagens que quebram o paradigma da sucessão espácio-temporal. E exatamente por não considerarem este paradigma (pelo menos não da forma da narrativa tradicional), por traduzirem a narrativa a outro esquema semiótico é que elas são fundamentais para a interpretação. Digo fundamentais, não acessórias. Em algum momento neste blog comentei que há signos chamados discretos e os icônicos. Nada de terminologia complicada. Discreto é o signo que se apresenta em sequências, como no caso da palavra escrita. Apreendemos no ritmo da leitura. A ação da narrativa se reproduz de alguma maneira em nossas mentes na medida em que lemos. A narrativa vai acontecendo em nossas mentes conforme estes signos são decifrados. No caso dos icônicos é diferente. Eles se apresentam de uma vez. Imagem condensa espaço e tempo. Privilegia espaço, mas o tempo também está lá. E aí é que entra sua riqueza e contribuição para a interpretação: como na imagem tudo se apresenta ao espectador de uma vez, cabe a ele reconstruir em um grau diferente que na narrativa a temporalidade. Notem que falamos de "em um grau diferente". A imagem não é "mais verdadeira". Como se pudéssemos ver "como era", ainda que nos passe esta impressão na apreensão vulgar. Notem: na narrativa escrita temos que recriar as feições, cores, geografias, gestos. Eles estão no texto apenas em parte, como que sugeridos. Cabe ao leitor preencher seu texto de imagens. Na imagem propriamente dita, digamos, num quadro, as cores, feições, paisagens, etc nos são dados, mas não a sequência de acontecimentos, a sequência de falas. Tudo nos é dado de forma densa e sobreposta. Nos dois casos temos que reconstruir ou, dizendo de forma mais apropriada, construir com o narrador. Em sentido estrito o texto ou a imagem não dizem nada. Se eu não imaginar o que o texto sugere, sua narrativa não se efetiva em minha mente. Se eu não ampliar narrativamente o que uma imagem traz condensadamente, não há narrativa. Isso é assim pelo menos na leitura vulgar, de todo o dia. Há formas de texto e de pintura que pretendem chamar a atenção exclusivamente para o que se apresenta ao leitor/espectador. Mas este tipo de texto e de pintura perde muito em figuratividade.

Vamos exercitar um pouco de leitura visual de núcleos narrativos do livro de Rute. Apresentarei agora uma imagem do livro. Ela servirá para notarmos a importância da cultura visual para a compreensão dos textos bíblicos na história da recepção. Mas também nos proporcionará um experimento para nos sensibilizarmos com o papel ativo do leitor espectador diante de texto e de imagem. 

Veja com muita atenção esta imagem:




Aqui temos uma representação do encontro de Rute com Boáz. Foi pintada por Chagall. Mas não quero dizer agora nada sobre ele. Nosso exercício não é sobre história da arte ou sobre o gênio do artista, mas sobre formas de recepção do texto bíblico na cultura visual. 
Se você (como a maioria de nós e, se for de origem evangélica, mais ainda) não sabe o que fazer ao se defrontar com imagens, faça a si mesmo as seguintes pertuntas:
- Que lugar na imagem ocupam as pessoas e os objetos (direita-esquerda, centro-periferia, acima-abaixo)?
- Onde fica projetada luz e há destaque por meio de cor?
- Observe os gestos. As feições.

É por meio destas coordenadas que a imagem reorganiza (ou: traduz) as sequências de tempo e espaço da narrativa.
Veja que mesmo espaço, que é o elemento forte da imagem, é representado de forma diferente do espaço do texto.
Mas se o querido leitor se pergunta agora. Tudo bem. Excelente introdução (no caso de que a ache mesmo!), mas e a imagem, o que significa? Pois bem, saiba que não cederei à tentação de dar agora  a minha leitura. Ou, dito de diferente maneira, não estragarei o seu experimento de matutar por uns bons minutos diante da imagem, de ser guiado por ela ao texto biblico.
Até breve!




terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Nossos olhares

Assino embaixo o texto do Leonel. Quero, a partir dele, dar uns palpites aproveitando algumas expressões por ele utilizadas em seu post sobre a teoria literária.

Sim! Nós não queremos fazer exegese histórica, ou "historicista". Nós queremos ler textos, nos encantar com textos, pois os textos são janelas para a vida sofrida vivida nos tempos "bíblicos". Nós queremos nos encantar com esses textos, porque textos são espelhos onde nos defrontamos com nossa aparência verdadeira, que ora nos enamora, ora nos apavora.

Onde escrevemos "histórica" e/ou "historicista", leia-se exegese "científica". Uma prática que nasceu mais ou menos bonita, como todo bebê, e logo se tornou um monstrengo pior do que o monstro que ela tentou matar e substituir. Desracionalizada a tradição da Igreja, demonizadas a tipologia e a alegoria, destronada a autoridade do Clero. Liberdade, diríamos. Liberdade, talvez até tenhamos conseguido. Rapidamente, porém, a tradição Acadêmica se torna um ferrolho tão gigantesco quanto A Tradição, seja ela inserida na Palavra de Deus, seja antropologizada nas confissões. Imediatamente se diviniza o método, a ciência, o moderno modo de abolir o antigo e fazer valer o novo, que envelhece tão inesperadamente quanto Benjamin Button. Destronado o clero, o trono do poder da Verdade é ocupado pelos venerandos Sábios cujo discurso promete Liberdade, mas entrega uma bela Jaula de Ferro (weberiana metáfora) a quem se dispõe a ler o texto, o estranho texto dos livros da Bíblia.

Sim! Não fazemos exegese "crítica". Não só porque aceitamos a divisão disciplinar do mundo acadêmico e nos submetemos humildemente à periferia do saber. Não queremos fazer exegese "crítica" que se coloca acima da Crítica. Nosso jeito de fazer crítica é outro. É, primeiramente, auto-crítica. Talvez seja exclusivamente auto-crítica, pois quem somos nós para criticar o Outro, a Outra, os outros e as outras que, teimosamente, como nós, continuam a ler textos antigos, amarelados, envelhecidos. Vinho... Nossa crítica é outra, é a crítica de quem bebe a taça de vinho lentamente, sorvendo cada gota, deixando-se embriagar, deixando-se transcender, deixando-se transportar para mundos fantásticos, míticos, impossíveis.

Mas também não fazemos exegese literária, nem exegese semiótica, nem estudos da recepção. Nossas teorias são apenas modos de olhar, visadas, pontos de vista - por isso, vistas de um ponto, dois pontos, três pontos. Pra falar a Verdade mesmo, acho até que nós não fazemos mais Exegese. Desaprendemos. Tornamo-nos ignorantes. Somos apenas leitores, contempladores. Não temos ciência. Temos, apenas, olhares.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Teoria Literária e o livro de Rute

Após a apresentação semiótica do Júlio, trago algumas informações a respeito da Teoria Literária e de sua aplicação à análise de textos bíblicos, de modo particular no estudo do livro de Rute.

Antes, certas especificações a respeito do que não pretendemos ou pelo menos não será central para as discussões sobre Rute neste blog.

Não queremos discutir o livro a partir de uma perspectiva historicista.

Embora o livro se vincule a determinado momento da história de Israel, apontando para indivíduos específicos, nosso objetivo não é resgatar esse momento histórico a partir do texto bíblico.

Isso porque, embora o texto aponte para a história e se construa a partir dela, ele a transcende. Em outras palavras, ao apresentar determinados acontecimentos o texto bíblico é trabalhado para produzir certo sentido e objetivo junto aos leitores/ouvintes.

Portanto, a história não é negada nem esquecida, mas colocada como um "meio" para que determinados objetivos retóricos se concretizem.

Também não queremos discutir o livro de Rute em uma perspectiva crítica.

Isso significa que não é nosso objetivo vasculhar detalhes históricos e arqueológicos, a partir de uma perspectiva crítica, que nos levem a confirmar a maior veracidade ou não do texto em relação a seu contexto histórico. Não que essa abordagem seja equivocada, mas ela se presta melhor ao trabalho do historiador de Israel do que do intérprete de textos.

Do que foi colocado acima surgem questões que demandam a explicitação do uso da Teoria Literária.

Na realidade, será usada uma vertente dela, a Teoria Narrativa, visto que o livro de Rute é um texto narrativo, no primeiro e básico sentido utilizado pelo Júlio em seu post.

Falar em narrativa significa falar de um texto construído com elementos como personagens, cenários, tempo(s), enredo e narrador. O narrador é o elemento central, visto que ele trabalha a partir dos personagens, cenários, tempo(s) para criar o enredo (melhor do que o termo "história"). O modo como o faz é que dá o tom e a especificação de seu texto em relação aoutros.

Falar em narrativa significa também reconhecer que um autor escreve um texto, incluindo os bíblicos, com objetivos específicos. Ele não escreve (e a escrita era algo difícil e caro nos tempos de Israel) apenas por escrever. Utilizando uma terminologia hermenêutica/teológica, o autor possui um "querigma" (mensagem) a ser proclamada. E, para tanto, ele faz uso dos elementos teóricos já apresentados.

Uma questão ligada ao estudo de textos antigos, como o livro de Rute, é a pergunta se os autores naqueles períodos longuínquos tinham conhecimento de Teoria Literária.

A pergunta está um pouco anacrônica. Como tal, obviamente eles não a conheciam. Mas a perspectiva pela qual pensamos uma teoria deve ser alterada. Uma teoria pode ser uma sistematização que nos ajude a pensar algo, ou a explicitação de como pensamos algo. Nos textos narrativos da bíblica aplica-se o segundo conceito. Compor uma história usando personagens, lugares, tempos em que eles ocorrem, e escolhendo uma voz para contá-la é algo que acompanha o ser humano em sua história. A Teoria Literária apenas os especifica didaticamente e procura explorá-los em seus limites.

Pensando na aplicabilidade em Rute, devemos nos perguntar: Quem conta a história? Ou seja, quem é o narrador? Como ele narra?

Quais são os personagens? Quem ou quais são os personagens centrais? Quais os secundários? Como eles contribuem para que a história progrida?

Quais sãos os cenários? Onde o enredo se desenvolve? Há mudança de cenários? Isso é relevante?

Em que período a história é situada? Isso é importante? Há mudança de tempo?

Por fim, como o enredo é construído a partir dos componentes citados anteriormente?

Essas são perguntas básicas que nos guiarão no estudo de Rute e a partir das quais o livro já pode ser pensado.