sexta-feira, 9 de julho de 2010

Teoria literária, sociologia e Jeremias 31

As duas últimas mensagens do Júlio ilustraram didaticamente como a aplicação de elementos teóricos da semiótica, no caso, a sociossemiologia, abrem portas para a compreensão de textos bíblicos.

Isso me chamou a atenção para uma perspectiva semelhante do ponto de vista da teoria literária. O crítico Antonio Candido, de modo particular, traz uma contribuição bastante significativa a esse respeito.

No livro Literatura e sociedade, no capítulo primeiro,
Crítica e sociologia
, ele discute a relação entre literatura e sociologia. Partindo de posturas mais simplistas, que procuram dados sociais nos textos para
ilustrar a realidade social
, ele chega ao ponto central, segundo sua proposta.

Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno
(p. 6).

Para Candido, os aspectos sociais são importantes como fatores de constituição interna da obra. Por exemplo, um determinado gênero literário, surgido em certo contexto social, será relevante à medida que condicione o modo como os conteúdos de uma obra serão dispostos.

É nesse sentido que vejo a análise do Júlio. Ele indicou os elementos sociais que estão presentes no texto, fruto do tempo e espaço de sua produção, mas voltou-se para o interior de Jr 31, indicando como esses elementos são utilizados pelo autor para produzir sentido.

Nesse contexto, a discussão sobre Deus e a proposta de uma visão específica dele não se torna abstrata, mas se constrói a partir das vivências sociais e religiosas que, ao mesmo tempo, são desafiadas e criticadas a partir de uma nova proposição apresentada em Jr 31.

Mais uma vez abordagens teóricas diferentes - semiótica e crítica literária - falam a mesma linguagem e se colocam à disposição para nos ajudarem no entendimento dos textos bíblicos.

Acesso a Deus, mas a que Deus?

Escrevo este post em reação ao post do Leonel sobre Deus em Jeremias 31. Reação de cumplicidade ...

Se, do ponto de vista sociossemiótico, a ênfase central do texto é o acesso a Deus, do ponto de vista teossemiótico trata-se, primariamente, de que Deus e de quem tem acesso a tal Deus. Leonel destacou, a partir do conjunto do capítulo 31, as várias descrições passionais de Deus (que, incidentalmente, revelam a dívida de Jeremias para com Oséias). Essas descrições passionais contrapõem um Deus pessoal, amoroso, relacional a um Deus impessoal, rancoroso, institucional. Notem, por exemplo, esta descrição das pessoas a quem Deus dirige seu amor:"os cegos e aleijados, as mulheres grávidas e as de parto" - exatamente o tipo de pessoas que estariam excluídas da congregação sacrificialmente reunida, posto que seriam pessoas impuras sob a lógica templário-sacrificial.

O contraponto, então, se dá entre um Deus que divide o mundo entre pessoas puras e impuras, oferecendo sua casa às puras e interditando o acesso das impuras - esse é o Deus da religião oficial da corte judaíta, sustentada pelo sacerdócio e seus templos, rituais, doutrinas e esquematizações discursivas. Esse Deus é contraposto por outro, um Deus que não divide o mundo entre pessoas puras e impuras, mas que divide o mundo entre pessoas que estão na sua família e pessoas que não estão - e oferece às que estão fora a oportunidade de entrar - esse é o Deus da religião herética dos profetas (mas, lembre-se, Jeremias era um sacerdote!), que tenta subverter a lógica da religião oficial mas, constantemente, é subjugada por essa lógica cujo aparato de poder derrota as heresias.

Porém, como a divindade dos profetas heréticos é teimosa, também as críticas proféticas são teimosas. Sempre reaparecem, subversivas, aqui ou acolá, hoje ou amanhã, atormentando as religiões oficiais e as acomodações pessoais a padrões religiosos não emancipadores (populares, de classe média, elitistas, etc.). Exegese e teologia se dividem entre as que apóiam e legitimam as religiões oficiais e suas acomodações na sociedade, e as que criticam e subvertem as religiões oficiais e suas acomodações na sociedade. Difícil é fazer a escolha certa, posto que exegetas e teólogos não possuem nenhuma qualificação especial e peculiar que lhes possibilitem diferenciar entre as escolhas. Difícil é também perceber quem fez a escolha certa, pois alguns de nossos padrões são tão rígidos que Jeremias, por exemplo, por ser sacerdote, ficaria na turma dos errados...

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Deus, um personagem maravilhoso em Jeremias 31

Li a mensagem do Júlio e fiquei pensando sobre o que poderia dizer. Sim, dizer, e não acrescentar.

Pensei, pensei, e resolvi ler todo o capítulo 31. Que impacto! É difícil dizer como esse texto explodiu em minha mente e desceu para meu coração (sim, teólogo também tem coração!).

Descobri Deus no texto. Não o Deus da teologia, definível, previsível, estático. Definitivamente não! Mas o Deus que se expõe absolutamente, talvez absurdamente para alguns. O Deus que encontra prazer em seu povo, em vivenciar a aliança com eles, independente do que aconteça. Que se entristece com o pecado e a dor das tribos de Israel. Que se une aos sofredores e aos pobres.

Afinal, somente um Deus maravilhoso poderia dizer:

"Com amor eterno eu te amei; por isso, com benignidade te atraí" (v. 3).

"Eis que os trarei da terra do Norte e os congregarei das extremidades da terra; e, entre eles, também os cegos e aleijados, as mulheres grávidas e as de parto; em grande congregação, voltarão para aqui. Virão com choro, e com súplicas os levarei; guiá-los-ei aos ribeiros de águas, por caminho reto em que não tropeçarão; porque sou pai para Israel, e Efraim é meu primogênito" (v. 8-9).

"Então, a virgem se alegrará na dança, e também os jovens e os velhos; tornarei o seu pranto em júbilo e os consolarei; transformarei em regozijo sua tristeza" (v. 13).

"Saciarei de gordura a alma dos sacerdotes, e o meu povo se fartará com a minha bondade, diz o Senhor" (v. 14).

"Não é Efraim meu precioso filho, filho das minhas delícias? Pois tantas vezes quantas falo contra ele, tantas vezes ternamente me lembro dele; comove-se por ele o meu coração, deveras me compadecerei dele, diz o Senhor" (v. 20).

Após ler esses versículos que falam de um Deus eternamente humano, penso que a nova aliança que Deus afirma fará com seu povo nada mais é do que propor a ele que sinta e atue como Deus faz.

Isso me parece de suma importância no texto comentado pelo Júlio quando afirma que o aspecto central de Jr. 31.29-35 é o acesso a Deus. O contexto permite entender que Deus não está criando nada novo em essência. Ele deseja apenas que seu povo sinta como ele, que tenha um coração de carne como ele, o Deus dos Exércitos, possui.

Manifestação maior e cabal de tal proposta será a encarnação do verbo, Jesus Cristo. Nele a nova aliança se concretiza. Aquele que, sendo Deus, resolveu tornar-se homem.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Semiótica e Enfoque Sociológico

Mudando de texto, mas não de testamento – Jr 31,29-35

O enfoque semiótico também se ocupa das questões sócio-culturais. Do ponto de vista da metodologia e teoria semióticas o exame “sociológico” deriva da análise da narratividade do percurso gerativo do sentido, que pode estar explicitada ou ocultada nos textos. Na análise da narratividade, uma das questões fundamentais é a detecção do objeto-valor do texto, posto que este é o conceito que explica a discursivização das lutas sociais.

Em Jr 31,29-35 podemos detectar como objeto-valor mais importante o acesso a Deus. A idéia da nova aliança tem a ver, neste aspecto, com o conflito social entre o monopólio sacerdotal do acesso a Deus e a universalização desse acesso mediante a nova aliança com YHWH.

O conflito se manifesta no texto jeremiânico nas seguintes maneiras: (1) a “revogação” da norma convencional e conservadora de que os filhos pagam pelos pecados dos pais, transferindo a responsabilidade moral da estrutura familiar patriarcal para o indivíduo; (2) a “revogação” do escrito (torá) da aliança mediante sua internalização no coração e mente dos indivíduos que entram em aliança com YHWH; e (3) a “revogação” do sacrifício como meio de perdão dos pecados, mediante o perdão direto de YHWH.

A nova aliança de Jeremias, então, aponta sociologicamente para: (a) uma estrutura social pós-convencional, baseada em indivíduos e não mais em famílias, algo ao estilo da modernidade ocidental, o que coloca a relação entre o crente e YHWH no âmbito pessoal e não institucional; e (b) o fim do monopólio sacerdotal sobre a instrução (torá) e o perdão dos pecados, reforçando a pessoalidade da relação com YHWH, que não precisa da mediação institucional (Templo+Sacerdócio) para ocorrer.

A primeira parte da proposta não se concretizou (senão a partir da modernidade ocidental), na medida em que a sociedade israelita permaneceu fortemente institucionalizada e, após o exílio, o monopólio sacerdotal da torá e do perdão se reafirmou no Judaísmo então nascente – monopólio depois transferido para a interpretação da Torá pelo rabinato. A segunda parte da proposta tem se concretizado na forma da resistência contra o institucionalismo religioso, tanto no Judaísmo antigo e contemporâneo, quanto no Cristianismo, quanto em outras religiões institucionalizadas em redor da monopolização do sagrado.

Se sairmos da sociologia e formos para a teologia, Jr 31,29ss é uma das bases judaico-proféticas do debate “Lei x Graça”, mostrando que o cerne da questão não está nos conteúdos normativos, nem no formato da experiência religiosa, mas na universalidade do acesso a Deus, desimpedido institucionalmente. Em outras palavras, “lei x graça” é outro nome para o conflito “poder x serviço”; “hierarquia x carisma”; etc.

sábado, 3 de julho de 2010

1 Sm 1. Conflitos

Posto minha última mensagem sobre 1 Samuel 1. Não que o assunto se esgote aqui, mas sempre é interessante deixar espaços em aberto para que os leitores contribuam com suas interpretações.

Foco neste post a questão dos conflitos presentes no texto. Eles se manifestam no desenvolvimento do enredo conforme descrevo abaixo.

O versículo 5 introduz o primeiro conflito. Ele já está em germe no versículo 2 quando o narrador informa que Penina possuía filhos e Ana não. Mas a tensão propriamente dita será construída a partir do bloco de versículos 5-8. Todas as tensões giram em torno da questão filho x não filho. Ainda no versículo 5 o leitor é introduzido ao conflito mais profundo – entre Deus e Ana.

Outro conflito se configura no versículo 6: Penina x Ana. Há uma espécie de complô entre Deus e Penina contra Ana. O Senhor se opunha a Ana, visto que a havia deixado estéril. Agora Penina se junta ao Senhor para humilhá-la, assumindo, ambos, a posição de antagonistas. Se em um primeiro momento não está claro que Ana é a protagonista, nesta segunda tensão começa a se delinear sua posição central na narrativa.

Ainda outro conflito coloca em oposição Elcana e Ana (v. 8). Tal oposição não se manifestou anteriormente na relação entre eles. Mas já era pressentida. Elcana não consegue dar fim à angústia de Ana, por isso sua pergunta inicialmente não recebe resposta. Indiretamente, sua questão: “Não te sou eu melhor do que dez filhos?”, traz à tona as tensões já existentes entre Ana, o Senhor e Penina. O círculo conspiratório contra Ana se fecha.

A partir do versículo 9 Ana ganha posição de destaque como protagonista. O texto tem seu ponto alto em sua busca por resolução. Devemos lembrar que é justamente nesse ponto que o narrador dá a deixa ao leitor para interagir com a protagonista através do tempo psicológico ao omitir o conteúdo de sua oração. Tal estratégia fará com que o leitor crie a expectativa de, à semelhança de Ana, experimentar a ação transformadora do Senhor em sua própria vida.

Ela come e bebe, se levanta e vai orar – ela busca a resolução. Deus é o responsável por seu sofrimento, por isso deve-se concluir que ele tem a responsabilidade de desfazer o mal causado. Mas Ana não está disposta a esperar passivamente. Ela assume uma postura ativa e sai em busca de ajuda.

Esta é uma resolução parcial, pois não sabemos o que acontecerá. Também, de certo modo, a tensão se intensifica, visto que agora Ana interpela o Senhor para resolver o conflito entre eles. Quando pensaríamos que a partir desse momento os problemas seriam resolvidos, surge outra tensão e uma nova humilhação. O narrador age desse modo para dramatizar a narrativa. Eli a tem por embriagada, pois na intensidade de sua oração ela move os lábios sem emitir som. A oração silenciosa era algo estranho à época. Nesse momento, nem o leitor, nem qualquer outro personagem tem conhecimento do conteúdo da oração. A tensão com Eli é também a tensão com Deus, pois o sacerdote é seu representante.

No versículo 17 se dá a resolução do conflito com Eli. O último a confrontá-la é o primeiro a reatar relacionamento com ela. O sacerdote lhe dá uma palavra de encorajamento, esperançoso de que Deus atenda ao seu pedido. Em função dessa palavra o versículo 18 nos diz que o semblante de Ana já não era triste. No versículo 19 ela já participa da adoração com sua família. O verbo se encontra no plural, ao contrário do versículo 3, quando a adoração era um ato individual de Elcana. Ana demonstra crer na palavra do sacerdote e, pela fé, sua tensão com o Senhor começa a ser resolvida.

A próxima resolução liga-se a Elcana e prossegue paralelamente à resolução da tensão com o Senhor. O filho gerado é a resposta da pergunta: “Não te sou eu melhor do que dez filhos?” (v. 8). Não! É a resposta categórica, embora implícita. Melhor é o presente de Deus a Ana! É interessante notar que Deus apenas se lembra, mas quem concebe é Ana (v. 19-20). A protagonista ainda permanece em primeiro plano.

No final, Ana recusa-se a voltar ao templo antes de poder confirmar a consagração do menino. Sem o menino desmamado, o santuário continuaria a representar humilhação para ela. Nesse sentido, não haveria ainda resolução do conflito entre ela e Deus.

Quando finalmente volta a Siló, com o filho já desmamado, se dá a resolução final. Ana cumpre todo o processo cultual para consagrar a vida de Samuel a Deus. Portanto, o ponto central da narrativa não é a questão de Ana poder ou não conceber e as implicações pessoais que isso poderia gerar. A questão é, sim, a falta de um filho, mas não um filho para ela, e sim um filho para Deus – Ana entrega, como expressão de gratidão, o filho gerado àquele que permitiu que ela concebesse.

Conclui-se, a partir dessa análise, que a mensagem central do texto é o conflito relacional entre Ana e o Senhor demonstrado na esterilidade e solucionado na concepção. Não existe dramaticidade em torno da esterilidade. A ausência de filhos na narrativa não enfatiza as questões sociais que se seguiriam se fosse aplicada uma interpretação unicamente histórica, mas sim o problema no relacionamento com Deus que isso implica. Não ter filhos significava ser esquecida por Deus. Por isso Ana diz que o Senhor se “lembrou” dela. Esse conflito relacional é resolvido porque Deus deixa de se opor a ela e se torna seu aliado. Segundo as próprias palavras de Ana: “Por este menino orava eu; e o SENHOR me concedeu a petição que eu lhe fizera (v. 27)”.

Na conclusão há um momento de adoração envolto por um sentimento de gratidão quando os pais entregam a vida de Samuel ao Senhor. É significativo recordar que existem três momentos de adoração na narrativa, esboçando começo, meio e fim. No versículo 3 a adoração significa humilhação para Ana, quando só Elcana adora; no versículo 19 Ana adora por fé, por causa da palavra do sacerdote; e agora, no versículo 28, ambos adoram com gratidão devido à consagração de Samuel. Nessa adoração Elcana e Ana estão em situação de igualdade. Ir ao templo para adorar, o que antes era um peso para Ana, agora é motivo de gratidão e de identificação com seu esposo.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Paixões e Valores em I Sm 1 - de novo

Bem, agora meu interesse recai sobre Elcana, o marido de Ana. Que paixões textuais de Elcana podemos encontrar?

Elcana, como já dito pelo Leonel, é personagem secundário. Está na narrativa para realçar características da personagem principal, Ana. Secundário enquanto personagem, mas primário na sociedade israelita [pelo menos na sociedade de papel] - ele é apresentado (1,1) como efraimita (tribo de importância em Israel naqueles tempos) e quatro gerações de antepassados são nomeadas (sinal de status social elevado naqueles tempos). É, também, apresentado como fiel seguidor de YHWH dos Exércitos (1,3), indo anualmente a Siló para participar da festa de YHWH com as mãos cheias, como ensinava o Deuteronômio. Enfim, é marido de duas esposas, Ana e Penina, a primeira, estéril (provisoriamente), a segunda, mãe de "todos os filhos e filhas" de Elcana. Como fiel adorador, ao sacrificar, comia parte do animal sacrificado na companhia de sua família, distribuindo às esposas e filhos as porções devidas.

Bem, aqui é que o retrato passional de Elcana é manifesto no texto: dele se diz que "amava" a Ana (´ähëb - o verbo está no perfeito qal, indicando que, de fato, ele a amava). Por que ele a amava, dava a Ana uma porção diferenciada da refeição litúrgica (o TM é de difícil tradução. As duas opções são antagônicas - ou ele dava a Ana porção "única", menor do que a dada a Penina, ou ele lhe dava uma porção "dupla". Para efeitos de interpretação, no final das contas, não há dificuldade, na medida em que o que importa semanticamente é que a porção de Ana era diferente da de Penina). O verbo amar não é usado constantemente para se referir à relação entre esposos na BH, de modo que seu uso aqui deve ser destacado. O texto modaliza a relação de Elcana e Ana como relação de amor da parte dele para com ela. É interessante, posto que se esperava dos inferiores que amassem os superiores - este uso do verbo amar é comum na literatura de cunho deuteronomista na BH. Ao descrever Elcana como alguém que ama sua esposa, o texto, de certa forma, inverte os papéis sociais, e subordina Elcana a Ana. O sentimento de Elcana, assim, pode ser descrito como forte, intenso, pois de outra forma ele poderia ter se divorciado da esposa que não lhe dava filhos.

A intensidade do amor de Elcana é explicitada no verso 8, em que pergunta a Ana: "Não te sou eu melhor de que dez filhos?" Pergunta típica de marido excessivamente amoroso. Ana sofre e ele tenta compensar seu sofrimento dando-lhe o melhor de si, chegando ao ponto de tratá-la diferenciadamente de Penina e seus filhos. Excesso de amor, carência de justiça. Ao tentar ajudar Ana, Elcana não vê a situação do ponto de vista dela, mas da dele mesmo. O amor de Elcana é tão intenso que o torna egocêntrico e injusto para com Penina. Tão intenso que o torna idólatra - pois Elcana assume o papel de YHWH e cumula Ana de bênçãos - mas às expensas de Penina.

Amor tão grande que Elcana perde o discernimento e se mete em confusões insolúveis. Pena que a narrativa se afaste do drama familiar e se concentre em Ana e Samuel. Eu gostaria muito de saber como era o dia-a-dia da família adrministrada amorosamente, mas de forma pouco inteligente, por Elcana.

Uma tríplice pergunta: O amor de Elcana era tão afetado pelo patriarcalismo, que se tornou egocêntrico, idólatra e injusto? Ou, o amor de Elcana era tão verdadeiro e intenso, que se tornou egocêntrico, idólatra e injusto? Ou, o amor é uma paixão tão complicada e perigosa que se não for bem dosado (pessoal e socialmente) inevitavelmente se torna egocêntrico, idólatra e injusto? Afinal de contas, como diz a poetisa de Cantares, "o amor é forte como a morte". Se o amor não fosse perigoso, não seria melhor descrevê-lo como "forte como a vida"? ...

sábado, 26 de junho de 2010

1 Sm 1. "Personagens"

Os personagens são configurados pelo narrador com objetivos retóricos. Eles exercem a função de protagonistas (herói e anti-herói) ou antagonistas.

O protagonista é o personagem principal. Ele pode ser o herói - aquele que possui características superiores às de seu grupo. Um exemplo clássico de protagonista herói é Jesus Cristo. O personagem protagonista também pode ser anti-herói, aquele que está ocupando a posição central, mas, no entanto, não tem as características esperadas de um herói. Um exemplo: Jonas. Já o antagonista é aquele que se opõe ao protagonista, configurando a tensão dentro da narrativa. Ele é o vilão da história. Exemplos típicos são Acabe e Jezabel, os fariseus etc.

Os personagens também são classificados quanto à caracterização. Eles podem ser redondos ou planos. O personagem plano é aquele descrito com poucas características e sem profundidade, sendo facilmente identificado pelo leitor. Em narrativas bíblicas tais personagens geralmente exercem apenas uma função. Já os personagens chamados redondos são principalmente os protagonistas, embora alguns antagonistas possam ser igualmente inseridos nessa classificação. Tais personagens são bastante desenvolvidos e complexos, podendo receber características físicas, psicológicas, emocionais, morais e espirituais. Exemplos típicos de personagens redondos são Moisés, Davi e Jesus Cristo.

1 Samuel 1 apresenta os seguintes personagens: Elcana, Ana, Penina, Senhor, Eli e Samuel. Quanto à classificação, Elcana, Penina e Eli são personagens secundários e planos, visto que não temos muitas informações a respeito de suas características e eles exercem função secundária na história. Samuel é um personagem, mesmo que não atue ou fale. Segundo Cássio Murilo Dias da Silva, a mera aparição de um personagem já é suficiente para caracterizá-lo na narrativa (SILVA, 2000, p. 70). Samuel é especial e simboliza a transformação que o Senhor efetuou na vida de Ana.

Ana é o personagem principal – a protagonista. Agora, ela é heroína ou anti-heroína? Analisando o contexto da sociedade patriarcal da época, apenas o fato de ser mulher já a colocava em um plano inferior aos homens, sendo considerada somente como um bem do esposo. A principal função da mulher era prover descendentes – aí entra outro fator desqualificante de Ana, uma vez que era estéril. Ela é o típico personagem anti-herói, ou uma heroína às avessas, com características inferiores ao grupo ao qual pertence. Apesar de ser a primeira esposa, ela é a que não pode gerar filhos. É possível que Elcana tenha se casado com Penin somente por que Ana não lhe dera herdeiros. Há uma oposição entre os personagens Elcana, o homem descrito em suas origens nobres (v. 1), e Ana, a mulher estéril que não dará continuidade à família.

Ana é descrita com uma variedade de características físicas, psicológicas, sociais, morais e espirituais. O modo como o narrador apresenta tais dados tem como objetivo produzir interação entre leitor e personagem. Quando a característica é exposta diretamente pelo narrador por meio de comentários, o leitor pode confiar nas informações e não há necessidade de questionamentos. Uma reflexão mais aprofundada é exigida quando o narrador coloca o personagem em primeiro plano, falando e agindo. Nesse caso o leitor recebe a tarefa de elaborar suas conclusões a partir do contato direto com o personagem.

No caso de Ana, o narrador nos informa de sua esterilidade (v. 5, 6), o que configura uma característica social – devido ao fato vergonhoso de uma mulher não poder gerar descendentes em uma sociedade patriarcal. Sabemos de sua angústia mediante seu marido: “Ana, por que choras? E por que não comes? E por que estás de coração triste?” (v. 8); pela voz do narrador: “com amargura de alma, orou ao Senhor, e chorou abundantemente” (v. 10); e por intermédio de sua própria fala: “Eu sou mulher atribulada de espírito” (v. 15). Apesar da situação de angústia vivida no início da narrativa, o final demonstrará que a mudança dos fatos a tornará grata.

Assim também ocorre com as características morais. Hannah é boa ou ruim? Honesta ou desonesta? O narrador não a julga, mas existe uma certa tensão sobre o assunto: Eli a julga embriagada, mas Ana defende-se afirmando não ser uma “filha de Belial” – não é ímpia. Nesse caso, o narrador expõe o ponto de vista dos personagens, omitindo-se de opinar. Ao final o leitor deverá, diante da história, definir quem está certo.

A principal característica à espera de definição pelo leitor é a espiritual: Ana é uma pessoa de fé, convicta. Esse é o ponto central do personagem. Na interação do leitor com Ana, essa característica deve ser assumida e encarnada na sua espera não passiva, “lutadora” (v. 26).

Ainda dentro das características espirituais de Ana, percebemos que a maior tensão se dá em sua relação com o Senhor. Como se opõe à protagonista, Deus pode ser entendido inicialmente como o vilão da história. Afinal, ele é a causa da esterilidade de Ana, que é o principal motivo de sua humilhação. E não se deve esquecer que tal fato se passa na Casa do Senhor, de ano em ano. No entanto, essa situação não se manterá. Deus se converterá em aliado de Ana ao final da narrativa, agindo e transformando sua situação.