sexta-feira, 2 de abril de 2010

Gn 22 sob o olhar literário

Leonel.

Gn 22 e o leitor

Entre várias possibilidades de análise de Gn 22, vou explorar aquilo que Eric Auerbach, crítico literário alemão e que analisou esse mesmo texto, chamou de “segundo plano”.

O segundo plano é um recurso que o narrador (aquele que conta a história) utiliza para chamar o leitor para participar da construção do sentido do texto. Para tanto, ele deixa aspectos da história em aberto, sem detalhes, até mesmo de modo ambíguo em alguns momentos. O leitor, ao identificar tais ausências, deverá preenchê-las com seu conhecimento, sentimentos, opções etc. Ou seja, o narrador conta com a experiência de vida do leitor para que o sentido do seu texto se complete.

Essa é a razão pela qual as narrativas bíblicas em certos momentos geram desconforto para alguns intérpretes, visto que elas se apresentam de certo modo abertas, sem um sentido exato definido.

No caso de Gn 22 o segundo plano pode ser percebido:

- depois da ordem para que Abraão fosse para determinado lugar a fim de sacrificar seu filho. O v. 3 diz que ele e o filho saíram e, no v. 4, ao “terceiro dia” ele “ergueu os olhos” e viu o lugar de longe. Auerbach lembra que nada é dito acerca da viagem de 3 dias. Não há nenhuma descrição da jornada, de lugares, de conversas que poderiam ter sido feitas, das noites passadas sob as estrelas, da comida. Nada. E aí o leitor é convidado a participar da história. Por que nada é dito? Por ter sido uma viagem repleta de sentimos de dor, de sofrimento, de perda. Afinal, pai e filho caminham em direção a um lugar de onde apenas um deles voltaria. Portanto, a ausência de detalhes realça o vazio do coração de um pai que sofre. Esse aspecto é realçado pelo levantar de olhos de Abraão. O olhar cabisbaixo expressa visivelmente o que se passava no coração daquele pai que sofria diante da ordem divina. A compreensão dessa ausência se dá por intermédio das possíveis experiências de dor sofridas anteriormente pelos leitores.

- na ausência divina no desenvolvimento da narrativa. De fato, ele aparece apenas no início (v. 1-2) e no final (v. 15-18). O restante do texto descreve o conflito e a dor de Abraão. Ele está sozinho com o filho. Deus está ausente. Isso convida o leitor novamente a preencher esse espaço deixado em branco. Por que Deus se ausenta? Para deixar o patriarca assumir a decisão a ser tomada. E, de fato, a decisão é feita. Deus se manifesta apenas depois disso. No último momento. Desse modo, o texto lembra que que os leitoes também, diante das questões que se apresentam, muitas vezes conflitantes com valores que possuímos, são deixados para decidir sozinhos. Parece difícil? Claro que é. Mas esse é o processo que Deus disponibiliza para que o leitor amadureça.

- uma última observação. O narrador diz que Deus pôs Abraão “à prova” (v. 1). Somente nós, leitores, sabemos disso. Afinal, Deus irá se manifestar novamente ao ancião apenas no final da história. Para Abraão havia apenas a ordem sem sentido, desconexa, até mesmo contrária àquilo que conhecia do Deus que o havia chamado. Aí entra uma questão linguística interessante. O termo traduzido por “provar” é importante. De certa forma, o que define se a pessoa será “provada” ou “tentada” é ela mesma. Se, diante de um problema, ela reagir positivamente, como Deus deseja, ela foi provada e aprovada. Se, pelo contrário, sua resposta ao problema foi negativa, com um resultado igualmente negativo, essa situação se definirá como uma “tentação” para ela. Diante disso, o leitor deve decidir: Abraão foi provado ou tentado? Provado, é claro, responderá. Mas, ao mesmo tempo, é questionado: diante de situações semelhantes, você será tentado ou provado? Como reagirá?

(o livro de Erich Auerbach chama-se: "Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental". Ed. Perspectiva. A discussão sobre Gn 22 está no primeiro capítulo: A cicatriz de Ulisses).

6 comentários:

  1. Leonel, no olhar semiótico também se leva a sério a ausência, o silêncio no texto. É claro, aproveita-se esse silêncio de um outro modo que no olhar literário - jogando o silêncio para as profundidades esquecidas do interdiscurso, da relação do texto com outros textos e discursos de seu tempo (e de nosso).
    De todo modo, o que interessa em uma leitura plural é valorizar tanto as diferenças quanto os pontos de contato. Faça-se, pois, silêncio!

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  2. Paulo,

    É verdade.

    Quando você fala de "profundidades esquecidas" e da "relação do texto com outros textos e discursos", a gente teria aqui um exemplo do que Umberto Eco chama de "enciclopédia do leitor"? Ou seja, os conhecimentos que o autor julga que os leitores possuem e, por isso, os deixa de fora de seu texto? Ou há um aspecto psicanalítico em tua fala?

    Por outro lado, parece-me que o "não dito" é algo importante para a Bakhtin e para a Análise do Discurso. Estou certo?

    Leonel.

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  3. Sim, Eco fala da competência enciclopédica, o conhecimento cultural-literário que distingue leituras mais ricas de leituras menos ricas. Na minha prática de leitura as profundidades são mais culturais do que psíquicas, mas talvez haja algo de Lacan no termo, pois ele pensa o inconsciente como uma trama discursiva.
    Sim, de novo, a AD francesa dá muita ênfase ao não-dito, especialmente na decifração da ideologia - o não-dito sendo uma interdição...

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  4. Júlio (e não Paulo :-)),

    Eu acho interessante o conceito de Eco. Quando eu era um "texto-centrado" julgava que a ideia da enciclopedia do leitor era vital, central, etc. Hoje, quando vejo que, parafraseando Certeau, a leitura é um jogo de gato e rato, acho que Eco é um pouco ingênuo. Acho difícil encontrar um leitor que, por ter os conhecimentos pressupostos pelo autor, se deixe conduzir meio que cegamente pelo que lê. Pelo contrário, sempre haverá uma interação transformadora ou mutadora em operação na leitura/interpretação. Não acha?

    P.S. Acho que estamos longe de Gn 22. Mas mesmo assim a discussão é altamente relevante para o campo hermenêutico.

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  5. Concordo. O conceito de Eco é operatório, nada mais do que isso. Quando a gente lê, mobiliza conhecimentos, boa parte dos quais não sabemos que conhecemos (e nada faz pensar que tais conhecimentos sejam apenas os pressupostos pelo autor. Não vou tão longe como alguns para dizer que sempre somos assujeitados. Entre a absoluta liberdade do sujeito moderno e a absoluta prisão do sujeito pós-moderno estamos nós.
    Uma perguntinha, quem lê é o rato, ou o gato?

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  6. Júlio,

    O rato é o texto, que procura cativar, seduzir, aprisionar o leitor com suas estratégias, jogos, aberturas, convites.

    Nesse caso, o leitor é o rato que pode, em um primeiro momento, ceder aos encantos do texto e entregar-se a ele.

    Mas, como Tom e Jerry, em certos momentos o leitor resistirá ao texto e, em outros, o vencerá. Não teremos, entretanto, necessariamente um prejuízo. Poderá haver ganho com novas significações. Mas, temos que reconhecer, poderá também haver estrago.

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