quinta-feira, 22 de abril de 2010

Leituras válidas - olhando para o leitor

Gostaria de palpitar nessa discussão sobre interpretações válidas e inválidas.

No livro "Interpretação e superinterpretação" (Ed. Martins Fontes) Umberto Eco alerta para interpretações descompromissadas com o sentido proposto pelo texto. São as abordagens interesseiras, que utilizam textos para fins desvinculados hermenêutica e moralmente de seus sentidos.

Parece-me que a discussão não vai por esse caminho. A real questão é: como posso saber qual a interpretação adequada? Bem, como o Júlio argumentou, tal questão está ligada diretamente às proposições da exegese historicista, que em sua vertente mais radical em termos conservadores procura o chamado "senso pleno", isto é, aquilo que o autor desejou dizer, o que estava em sua mente.

De minha parte, olhando de uma perspectiva teórico-literária, o problema não é que um texto possua um sentido e queira interagir a partir dele. De fato, há um sentido no texto. Ele se manifesta por intermédio de estratégias textuais, efeitos retóricos, jogos propostos pelo texto ao leitor, e todos podem ser identificados. Reconhecê-los e, como isso, atingir o sentido do texto é o objetivo de todo intérprete.

A dificuldade, para mim, está em outra direção. Ela se encontra no leitor, em suas limitações, que são enfatizadas pela exegese/hermenêutica convencionais ao afirmarem que o intérprete precisa se capacitar de dados históricos para, então, atingir o sentido do texto. Isso é verdade. É aquilo que já mencionei em outra mensagem, e que Umberto Eco chama de "enciclopédia do leitor". Os dados de conhecimento dos leitores originais eram diferentes daqueles que possuímos. Portanto, certos aspectos do texto seriam entendidos por eles sem maiores explicações. Nós, entretanto, precisamos adquirir essas informações preliminares para evoluirmos na interpretação.

Mas esse é um detalhe, talvez o menos importante (mesmo que não saibamos historicamente quem eram os fariseus, ao lermos o evangelho de Mateus sabemos, pelas construções textuais, que eles eram inimigos de Jesus e pessoas em quem não se pode confiar).

A real limitação do leitor, e temos que aceitar isso, se encontra no fato de que ele nunca conseguirá reconstruir o sentido original do texto, visto que o texto deixa de ser um mediador entre autor original e leitores originais. Essa relação não existe mais. O que existe é um texto que não tem ancoragem histórica em um autor e um leitor que não consegue ocupar o lugar dos leitores originais.

O que ocorre é um encontro daquilo que Paul Ricoeur chama de "mundo do texto" e "mundo do leitor". O texto, com suas estratégias, entra em contato com um leitor que possui visão de mundo, valores, pressupostos etc. O encontro real não se dá "dentro do texto" (como proporiam os hermeneutas histórico-gramaticais ou histórico-críticos), mas, a partir de sua leitura e interação com os valores do leitor, na proposição de um mundo novo gerado pela leitura que desafia, incomoda, consola, orienta/desorienta o leitor. Segundo Ricoeur esse é um momento, uma decisão "ética" que todo leitor deve tomar. A real interpretação se encontra aqui.

Parece-me que é exatamente esse momento que definirá se a leitura/interpretação é válida ou não. Qual o resultado dela? Como ela será usada? Temos consciência de nossas limitações interpretativas?

4 comentários:

  1. Parabéns pelo excelente texto. Respondendo a pergunta, se "temos consciência de nossas limitações interpretativa?", eu temo que não. Aliás, alguns nem pensam que isso seja possível!

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  2. Kharis kai eirene
    Na correria, resolvi passar por aqui e deixar essa breve intervenção)

    O texto trabalha sobre dois eixos: o da interpretação adequada e a resposta do leitor. No primeiro, embora os administradores do blog reconheçam que “há um sentido no texto”, a importância e valor da exegese histórico-gramatical e léxico-sintática são relegados, ao que parece, a questões de somenos importância pelo fato de o leitor, seu contexto e competência serem mais importantes do que o contexto, a linguagem, gramática, ou propósitos do autor. Como está claro no ensaio “o que existe é um texto que não tem ancoragem histórica em um autor e um leitor que não consegue ocupar o lugar dos leitores originais”. Todavia, minha pergunta é: Como justificar uma interpretação que, ao mesmo tempo em que faz jus ao contexto original, fale ao leitor moderno afastado do autor e de sua cultura, sem que, para isso, o texto seja desconstruído de seu propósito fundante? A orientação, consolação, desafios e incômodos gerados pela leitura do leitor não são aspectos subjetivos, variáveis e relativos em relação ao propósito do texto? Essas características não são, para usar uma expressão de C. Mesters, estatutos da leitura orante da Bíblia em vez da leitura científica, como propõe Cássio Silva? Se dependermos sempre do horizonte do leitor, não teremos várias interpretações díspares?
    (Júlio/Nogueira, gostaria antes de tudo, afirmar que minhas intervenções são feitas na condição de aprendente, não me coloco como se estivesse no “mesmo nível”, muito pelo contrário.)

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  3. Francikley,

    E é a falta da consciência de limitação que leve o leitor/intérprete à postura de soberba que, via de regra, tende a negar e menosprezar as demais leituras, negando, com isso, que o sentido é historicamente construído.

    Grato pela participação!

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  4. Esdras,

    Muito pertinente tua intervenção. Muito obrigado por ela.

    Dialogando com você, eu diria que a exegese histórico-gramatical e outras não são relegadas a segundo plano em nossa proposta. Elas têm seu papel de importância. O que eu, Júlio e Paulo pensamos é que tal metodologia precisa ser "complementada". E esse complemento se dá pela consciência, de um lado, das limitações que o leitor tem de acesso aos dados históricos originais, e, em segundo lugar, do fato, sim, é um fato, de que toda leitura, pelas questões que afirmei, é sempre uma construção de sentido (necessariamente não negadora da possível leitura original). É isso que em geral os exegetas tradicionais não reconhecem. Portanto, não afirmamos a negação de tal exegese, mas sim sua complementação.

    Nesse sentido, a exegese/leitura não precisará "falar ao leitor moderno". A leitura séria, sensível ao texto e ao contextodo leitor, proporá ao seu agente os caminhos de compreensão e apreensão na atualidade. Portanto, julgo que precisamos orientar os leitores que até então estão dependentes de "nossa leitura científica" a assumirem seu papel de reais intérpretes, a partir do contexto em que estão, dos textos que tanto amamos.

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