segunda-feira, 26 de abril de 2010

Perspectiva ou Interesse – 2º. de 4

Em post de domingo escrevi sobre teoria como um dos componentes do processo de leitura. Como estava dizendo, precisamos clarear certos termos, a fim de sabermos melhor o que fazemos quando estamos fazendo algo. Quando lemos, mobilizamos quatro elementos abstratos simultaneamente. O primeiro (logicamente falando) é a teoria (quer a “conheçamos” quer não). O segundo é a perspectiva (ou interesse, para usar um termo da sociologia do conhecimento, com Habermas). Por perspectiva quero indicar a opção ético-política (ou religiosa, ideológica, de gênero, etc.) que tomamos quando lemos. Sim! Estou afirmando que nenhuma leitura é neutra. Por mais que adotemos procedimentos “cientificamente” controlados, por mais que nos protejamos com teorias muito bem elaboradas, por mais que nossos enfoques disciplinares controlem o que fazemos – ler nunca é um processo neutro, ou seja, objetivo (no sentido racionalista ou positivista do termo).

Fazemos a leitura sempre a partir de um determinado lugar sócio-político, de um lugar cultural-religioso, de um lugar etno-gênero (“sei que é um termo estranho, mas etno-genérico ficaria pior!), de um lugar espaço-temporal. Esses lugares constituem a nossa perspectiva. A leitura feminista, a leitura de raça, a leitura popular latino-americana, a leitura intercultural (e outras) têm revelado essa face da leitura há pelo mênos três ou quatro décadas. A leitura sociológica no primeiro mundo também, já percebia a presença do fator sócio-político na exegese científica. Isso é tão óbvio que não conseguíamos enxergar na academia. Começarei com um exemplo prosaico, banal. Preste atenção às bibliografias das grandes obras acadêmicas relativas à leitura da Bíblia. Quase todos os ítens estão em inglês ou alemão. Quase nada em francês, menos em espanhol, menos ainda em italiano, menos ainda em português – sem falar em hebraico, japonês, russo, etc. Descontando os idiomas nos quais não se faz mesmo pesquisa bíblica, ainda assim temos um claro desvio político e cultural aí presente. Outro exemplo prosaico – praticamente não há judeus que escrevem “teologia bíblica”, embora vários escrevam comentários para as grandes séries internacionais. Por quê? Porque os judeus lêem a sua Bíblia de outro jeito, de um jeito que não precisa mesmo de uma “teologia bíblica” que unifique os múltiplos discursos bíblicos.

Deixo os exemplos prosaicos para trás. Nossas opções éticas e políticas interferem decisivamente no modo como lemos as Escrituras. Por mais que usemos métodos, enfoques e teorias “cientificamente” elaborados, essas ferramentas todas são delimitadas e direcionadas por nossa opção ético-política. Quando estava pesquisando para escrever minha tese, constatei, por exemplo, como o mesmo livro bíblico podia ser lido de formas antagônicas por praticantes do mesmo jeito histórico-crítico de ler a Bíblia. A diferença? Na perspectiva. Um autor (homem), por exemplo, lia a legislação do Deuteronômio sobre as mulheres e via nessa legislação um avanço social favorável à mulher. Uma exegeta feminista via na mesma legislação outro instrumento de controle patriarcal. Um exegeta europeu via na legislação deuteronômica sobre impostos uma clara consciência de justiça, enquanto outro via na mesma legislação um instrumento de opressão. Um exegeta cristão via no capítulo 15 de Deuteronômio um projeto de reforma social de “esquerda”, um exegeta judeu via no mesmo texto um projeto elitista de disrupção social da vida dos camponeses judaítas. Poderia multiplicar os exemplos à exaustão.

Na prática, independentemente da teoria ou do método, a perspectiva é decisiva na hora de interpretar o texto bíblico. Em linguagem da semiótica discursiva, estamos mais uma vez no terreno da interdiscursividade (no espaço-tempo da recepção). Com maior ou menor base na tradição milenar de leitura bíblica, nós leitores da escritura formamos nossos juízos éticos. Esses juízos, por sua vez, moldam nossa perspectiva. Esta, por fim, completa o círculo e interfere em nossa leitura da Bíblia, até que formemos (ou não) novos valores e, assim, sucessivamente.Quem leu “A Libertação da Teologia” de Juan Luis Segundo sabe bem do que estou falando. Quem não leu, pode até saber melhor...

Esta forma de ver as coisas é que me faz dizer, por exemplo, que leio a Bíblia, entre outras razões, para construir um projeto de vida fiel a um dos projetos “bíblicos” – interdiscursivamente fiel, de modo que não se trata de mera repetição, ao estilo fundamentalista ou conservador, de uma espiritualidade ou uma política dos tempos bíblicos. Assim como o Paulo escreveu, também não tenho nenhum interesse em ser um javista tribalista, ou um deuteronomista, ou um cristão primitivo. Mas, como cristão, quer eu queira quer não, a Bíblia tem papel decisivo na elaboração de meu projeto de vida – a favor ou contra ou tanto faz.

2 comentários:

  1. Olá Prof. Zabatiero,

    Refletindo nesse sentido, até mesmo as escolhas teóricas na exegese (sejam teorias linguísticas, andropológicas ou sociológicas) já são condicionadas por opções ético-políticas (para usar as palavras do post) e minam a possibilidade de neutralidade. E ainda o pesquisador acaba influenciando nos resultados da pesquisa: por que as teorias linguísticas e não as sociológicas, ou vice-versa? Em outro post foram expostas as razões, mas até mesmo essas são construídas à luz de interesses. Nas pesquisas do NT da década de sessenta a sociologia do conhecimento parecia ser um grande avanço. Com o passar do tempo as teorias sociológicas funcionalistas ladeavam outras menos descritivas. Mais tarde – e ainda hoje (uma tese no livro de Gálatas preste a ser defendida na UMESP por Izidoro é um bom exemplo disso) – teorias antropológicas foram angariando interesses, pois alguns exegetas levavam em consideração os conceitos antropológicos de cultura, etnicidade, hibridismo e etc. Acredito que tanto as escolhas por uma teoria em detrimento das outras, como a tentativa do diálogo entre elas, acontece por uma ação do pesquisador, e isso já influenciará nos resultados da pesquisa ou na percepção do objeto, ou melhor, na interpretação/leitura do texto.

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