terça-feira, 4 de maio de 2010

Primeiro no céu, depois na terra

Inicio reafirmando, juntamente com Paulo e Júlio, a importância dos elementos concretos presentes na relação entre texto e leitor para uma interpretação adequada de Ap 12.

Paulo deu destaque à questão imagética. De fato, nós que vivemos sob influência de uma reflexão abstrata (tratamos de "palavras"), corremos o risco de perder aquilo que está mais próximo do texto e de nós mesmos. Como disse Paulo, as imagens falam por si mesmas.

Levanto outro aspecto. O Apocalipse se refere a "aquele que lê e aqueles que ouvem as palavras da profecia [...] (1.3)". Deixo para outros explorarem a indicação de que o livro é uma profecia. Mas destaco a frase "aquele que lê (sim, a melhor tradução é no singular, como fazem algumas versões)e aqueles que ouvem". O livro tem como contexto concreto a leitura comunitária. Uma pessoa lê e as demais "ouvem". O Apocalipse, portanto, foi feito prioritariamente para ser um exercício comunitário de audição. Essa é a concretude do texto que chega a nós.

Alguém dirá: mas e se não nos encaixarmos nesse contexto de origem? Bem, em geral é realmente isso que acontece. E, nesse caso, ficamos à mercê de exercitarmos um tipo de interpretação que pode gerar novos sentidos. É importante que tenhamos consciência disso, no mínimo.

Qual o impacto que a audição traz? Bem, precisaríamos fazer esse exercício juntos (fica aí a dica). Como nem sempre é possível, mantenhamos nossa leitura individual, mas tentando apreender as imagens em conjunto, e não apenas como termos e palavras dentro de versículos.

Pensando nisso, o capítulo se estrutura a partir de dois cenários: céu e terra (v. 1 e 3). Neles, há um embate entre dois personagens: a mulher e o dragão, tendo, cada um deles, anjos como coadjuvantes (v. 7).

O céu recebe destaque inicial. Nele se manifesta a mulher, grávida, e o dragão, desejoso de devorar o recém-nascido. É feita uma interrupção narrativa onde se afirma que a mulher foge para o deserto, ou seja, para a terra (v. 6), para novamente voltar à descrição do que está acontecendo no céu. Ali Miguel e seus anjos assumem a luta contra o dragão e seus anjos (v. 7). Estes perdem, e com isso deixam de ter lugar no céu. Agora o cenário começa a se deslocar para a terra, para onde Satanás e seus anjos são atirados (v. 9).

Nesse momento entra um coro de vozes que não são identificadas. Apenas exaltam a salvação e a autoridade do Cristo, pois o acusador dos "irmãos" (portanto, é a voz de cristãos) foi expulso (v. 10). Ao mesmo tempo, essas vozes parecem se situar no céu, visto que dizem que o diabo "desceu" até vós (v. 12).

O dragão, na terra, passa a perseguir a mulher que recebe asas para "chegar" ao deserto. Portanto, ela ainda não está lá, como o versículo 6 parecia indicar. Nesse sentido, do ponto de vista da mulher que vai para o deserto (v. 6), há um congelamento temporal, para que entre o coro (v. 7-12) e a cena volte para a mulher fugindo para o deserto, passando a ser perseguida pelo dragão (v. 13-14).

Nesse embate, a terra, que até então era apenas um cenário, torna-se um personagem e socorre a mulher (v. 16). O dragão abandona a mulher e passa a perseguir a sua descendência (v. 17). A descrição dele em pé sobre a areia do mar é uma estratégia narrativa para despertar suspense sobre o que virá.

É importante pensar no objetivo da cena. Ela começa no céu, onde se encontram os cristãos que já morreram (v. 10-12; 6.9)e termina na terra, onde estão outros cristãos, que serão perseguidos cruelmente pelo dragão (v. 17). O texto se dirige a eles, e a sequência mostrará o que os espera.

Esta foi uma abordagem inicial ao texto, tentando observar seus componentes e como eles se relacionam, ou seja, como opera o desenvolvimento do enredo. Um próximo passo é descer a detalhes de imagens, símbolos, e outros elementos que aprofundam a compreensão. O elemento "tempo", por exemplo, é sempre complicado no Apocalipse e, neste capítulo, ele parece transitar entre passado e presente, principalmente.

10 comentários:

  1. Só para lembrar, nos escritos d Bakhtin há uma discussão interessante sobre o cronotopo - o jeito como o texto constrói as suas relações espaço-temporais. Similarmente ao que Leonel escreveu, espaço-tempo no Apocalipse merecem um estudo especializado.

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  2. Permitam-me uma intromissão: nós, "leitores modernos" dos textos bíblicos, somos leitores paupérrimos. Falta-nos a performance da leitura oral. Quero dizer com isso que os escritores originais, quando escreviam e liam suas composições, e liam, naturalmente, em voz alta, publicamente, performaticamente, imprimiam códigos não-verbais, corporais, gestuais, de entonação, à leitura, códigos esses que são verdadeiros anaforismos hermenêuticos. Se você está diante de um autor bíblico a ler seu texto, são mais do que palavras - é a "representação", a "encenação" quase teatral da leitura.

    A exegese precisa se dar também no nível da recuperação da intencionalidade "performativa" da peça narrativa. E isso não me parece um "campo novo" - ele sempre esteve lá, nós é que, evntualmente, nos descuidamos dele, cuidando que a Bíblia fosse, das duas uma, ou papiro velho ou doutrina nova. E, afinal, não era nem uma coisa nem outra: era expressão viva, plasticamente retratada.

    Quanto às imagens, agora, deixo uma questão: mas de que imagens estamos falando? Daquelas evocadas pela consciência viva, lá atrás, do autor do texto, ou das imagens que são evocadas pelas gravuras medievais? Uma e outra são, estruturalmente, a mesma coisa, mas, historicamente, coisas absoluamente diferentes. Não?

    Fraternalmente,

    Osvaldo Luiz Ribeiro

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  3. Osvaldo,

    Grato pela mensagem.

    Concordo plenamente com você. Tais sentidos e disposições que mencionou já estavam no texto e nas práticas de recepção dos primeiros leitores. Mas, reconheçamos, é difícil fugirmos dos condicionamentos que recebemos para nos abrirmos à percepção desses elementos.

    Pelo fato de estarmos em novos contextos, com novas práticas de leitura, teremos certamente a produção de novos sentidos. Essa é a dinâmica da leitura na história.

    Quanto às imagens, deixo que o Paulo Nogueira dialogue com você.

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  4. Olá Professor Leonel,

    sobre a imagem do cenário céu e terra, nos textos apocalípticos, como diz Collins, não poderíamos observá-la à luz dos outros textos desse gênero, onde as tramas terrestres são reflexos e influenciadas por realidades celestiais? Ou seja, os dois cenários se envolvem numa espécie de relação de dependência, e as ações nos céus geram conseqüências na história humana. São duas realidades, na experiência do visionário, que estão próximas e conectadas . Isso percebemos em I En, Dn, Jub, Ap e outros...

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  5. Leonel, você disse: "pelo fato de estarmos em novos contextos, com novas práticas de leitura, teremos certamente a produção de novos sentidos. Essa é a dinâmica da leitura na história". OK. Mas... Do que se trata, mesmo?: a) da referência a um fato "natural", isto é, o fato de que a textos escritos sempre se seguirão inumeráveis releituras no decorrer do tempo, ou b) que essa condição "natural" dos textos escritos é inexoravelmente insuperável, de tal sorte que nós jamais poderemos reconstruir não apenas o sentido histórico de um texto, quanto pior ainda o "evento" de sua "performance" histórico-social "original"?

    Com "a" estou plenamente de acordo, Com b), não. Acredito na pesquisa indiciária. Coloco, então, a seguinte questão: do ponto de vista do "pesquisador", esse, que lê tanto o texto "original" quanto as "recepções", pois bem, a rigor, que diferença teórico-metodológica há entre "compreender" o sentido histórico do "original e o sentido histórico das recepções? Se eu não posso recuperar o sentido histórico do original, com base em que eu alegaria poder fazê-lo quanto ao sentido histórico das recepções? Ou eu estou interessado, apenas, em criar mais um sentido, e não em recuperar o sentido, seja do "original", seja das recepções? Trata-se, afinal, de estética ou de heurística? Fiz-me compreender? Por que falamos com tanta desenvoltura das recepções, e as descrevemos, e as damos por favas contadas, sendo elas fenômenos também do passado, mas, quando se trata da "exegese" dos "originais", ficamos cheios de constrangimentos diante da pretensão de "reconstrução" do sentido histórico?

    Fraternalmente,

    Osvaldo Luiz Ribeiro

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  6. Kerner,

    Muito obrigado pelas observações.

    Acho que é isso mesmo. Há uma intenção em colocar dois cenários em contraste. E veja, o narrador começa no céu. Mas, nesse caso, não é um céu onde tudo está resolvido, certinho, como, por exemplo, nos cps. 4 e 5, e que traz garantias para aquele que habita a terra.

    O próprio céu sofre certa perturbação com a presença do dragão. Mas, mesmo assim, tal situação é resolvida e, a partir dessa resolução, pretende-se resolver na terra o problema que se deslocou do céu para ela.

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  7. Osvaldo,

    Estou com você. Concordo com a), mas discordo de b). É possível e desejável buscar o sentido de um texto a partir de seus contextos e de sua construção interna. Por isso mesmo temos argumentado a favor da consideração a todos os elementos que compõem a produção textual e não apenas ao elemento abstrato de sua "mensagem".

    Agora, como todos sabemos, ao tratarmos de questões aquém do presente, estamos lidando com a dualidade com que os historiadores trabalham: passado - história. Ao abordarmos o passado, nós não o resgatamos como um "fato". Nós desenvolvemos a história, ou as histórias, versões matizadas por nossos instrumentos metodológicos de análise e por nossa própria experiência. Nesse caso, é fundamental que o leitor/intérprete procure compreender, com consciência de sua limitação, que sua abordagem a um processo de leitura do passado, mesmo que do primeiro momento de produção/recepção, será uma intepretação.

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  8. "Nesse caso, é fundamental que o leitor/intérprete procure compreender, com consciência de sua limitação, que sua abordagem a um processo de leitura do passado, mesmo que do primeiro momento de produção/recepção, será uma intepretação". OK, Leonel. Se com isso você quis apenas indicar para a condição de reconstrução plausível do "evento", sem que, com isso, pensemos estar diante do próprio evento, caminhamos bem. Ajude-me, contudo: essa interpretação, a que você se refere, é uma "mera" narrativa, no estilo de "romance", como quer a moderna história narrativa, de tal sorte que tanto faz qualquer que seja a "narrativa"/interpretação que você gere, nesse caso, não fico à vontade.

    Temo que nosso medo de nos parecermos positivistas acabe gerando retóricas que sirvam apenas para disfarçar o constrangimentos de sermos assim interpretados. Ainda que o que teremos, no final, será uma interpretação, havemos de convir que há interpretações e interpretações. É absolutamente fácil demonstrar como uma interpretação está errada, do ponto de vista textual e histórico-social, mas não dá para provar quando ela está certa - construímos um sistema fechado plausível, e só podemos argumentar retoricamente. Ela pode estar certa, mas, provar isso, como?

    Entende? Não sou positivista, mas, igualmente, não acredito que interpetação é tudo a mesma coisa. E, uma vez que a única coisa segura na interpretação é a demonstração do erro, faz-se imperiosa a ágora. Do que, aliás, desgostamos. E por isso blogs são muito bons, porque comparecemos à praça pública, onde se exige de nós satisfação, e onde também a exigimos.

    Certo?

    Osvaldo Luiz Ribeiro

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  9. Quanto a céu e terra e dragão: a escatologia me parece cosmogonia ao contrário. Nas cosmogonias, do corpo do dragão se faz tanto o céu quanto a terra. O dragão não ameaça apenas a terra, mas, inclusive, o céu. Se o dragão vence, a criação acaba, e, em termos cosmogônicos, criação é céu e terra. Não há como pensar em dragão e lidar apenas com a metade da criação, a terra, porque trata-se de uma hendíade: céu e terra...

    Não?

    Osvaldo Luiz Ribeiro

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  10. Osvaldo,

    Grato novamente pela interação.

    Aproveito para dialogar com tuas duas mensagens.

    Concordo com tua colocação a respeito da "relatividade" da interpretação. Não estou propondo isso. Em outras mensagens eu e os colegas já discutimos que não somos adeptos desse tipo de abordagem.

    Há critérios para averiguação da adequação ou não de uma interpretação? Sim, claro. Aquelas improváveis são desclassificadas por si mesmas. O que é mais interessante é perceber como na história as intepretações que se tornaram hegemônicas, ou pelo menos foram bem aceitas e fizeram história, estão eivadas de questões contextuais. Mas isso só se percebe com o tempo. Penso que conosco se dará o mesmo. Eu posso hoje dizer que a minha interpretação, por a + b, é adequada. Mas somente com o tempo outros poderão, ao analisá-la, perceber os condicionantes a que eu estive submetido e que interferiram em minha leitura, para bem ou para mal.

    Agora, de modo prático, penso que toda interpretação bíblica deve passar pelo crivo básico proposto pelo Cristo: o amor a Deus e ao próximo. Se minha leitura/interpretação não evidencia esse aspecto moral, ela se desclassifica.

    Quanto ao dragão e as cosmogonias, parece-me que é isso mesmo. Temos uma cosmogonia invertida. E isso, parece-me, é intencional.

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