quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Mito e linguagem

Pretendo interagir com as mensagens de Paulo e Júlio buscando uma fresta dentro da argumentação que desenvolveram. Não é muito fácil, visto que cobriram uma área bem extensa da discussão a respeito do mito e a Bíblia.

Tenho consciência também que, de certa forma, esta mensagem deveria ser introdutória às dos colegas, mas esse problema se relativiza pela facilidade de utilizarmos um blog. Você pode lê-la e depois ler as mensagens anteriores. Ou não.

Tomarei como base afirmações do crítico literário canadense já falecido, Northrop Frye, no livro “O código dos códigos: a Bíblia e a literatura” (editado pela Boitempo em 2004).

O livro de Frye, segundo ele mesmo, surgiu quando constatou em suas aulas de literatura inglesa, principalmente ao discutir Milton e Blake, que seria praticamente impossível entendê-los, assim como muitos outros autores de fala inglesa, sem que conhecesse a Bíblia. Para o crítico, esses autores foram influenciados pelas Escrituras e seus textos estão impregnados dela.

Resolveu, então, escrever um livro sobre a Bíblia do ponto de vista da literatura. É de interesse para esta discussão o que é dito no cp. 1, intitulado “Linguagem 1”. Frye segue a proposta do filósofo italiano Giambattista Vico (1668-1744), que vê na história da humanidade três fases da linguagem: a poética, a heróica e a vulgar. Frye as rebatiza: hieroglífica, hierática e demótica. Segundo Vico, a primeira fase compreenderia um uso “poético” da linguagem, a segunda um uso “alegórico” e a terceira seria “descritiva”.

Essas fases são, para Frye, úteis para pensar a Bíblia dentro da história da linguagem. Dentro do período hieroglífico (poético) ele inclui “a maior parte da literatura grega anterior a Platão, sobretudo em Homero, ou nas culturas pré-bíblicas do Oriente Próximo, ou ainda muito do Velho Testamento [...] Nesse período há relativamente pouca ênfase na separação entre sujeito e objeto; ao invés disso, a ênfase recai sobre o sentimento de que sujeito e objeto estão interligados por uma energia ou poder comum a ambos” (2004, p. 28). Cita, para exemplificar, que nesse período as palavras são vistas como forças dinâmicas, que contém poder e que saber o nome de um Deus pode dar controle sobre ele. Importante também é saber que “Todas as palavras nesta fase da linguagem são concretas: em verdade não há abstrações” (2004, p. 29).

A segunda fase, a hierática (heróica ou nobre), iniciada com Platão, é assim denominada por ser produzida por uma elite intelectual. “Nesta segunda fase a linguagem é mais individualizada e as palavras tornam-se sobretudo a expressão exterior de pensamentos ou idéias anteriores. Sujeito e objeto tornam-se mais consistentemente separados e a ‘reflexão’, junto com sua ressonância de se olhar um espelho, vem ao proscênio verbal. As operações intelectuais da mente passam a distinguir-se das emotivas; assim torna-se possível a abstração, e o senso de que há maneiras válidas e não válidas de se pensar termina por desenvolver a concepção da lógica” (2004, p. 30). Fundamental para entender o novo momento é que “A base da expressão aqui está se movendo do metafórico, com seu sentido de identidade entre homem e natureza em termos de vida, poder ou natureza (‘isto é aquilo’), para uma relação muito mais metonímica (‘isto está no lugar daquilo’). Especificamente, palavras ‘estão no lugar’ de pensamentos, e são a expressão exterior de uma realidade interior” (2004, p. 30).

A terceira fase surge “[...] no século XVI, acompanhando algumas tendências da Renascença e da Reforma. Ela chega à ascendência cultural durante o século XVIII [...] Aqui partimos de uma separação muito clara entre sujeito e objeto, onde o sujeito se expõe, através da experiência dos sentidos, ao impacto de um mundo objetivo. O mundo objetivo é a ordem da natureza; o pensamento ou a reflexão seguem as sugestões da experiência dos sentidos e as palavras são o servomecanismo da reflexão. Prossegue o uso da prosa contínua [característico da fase anterior], mas todos os procedimentos dedutivos se vêem cada vez mais subordinados a um processo prévio indutivo e de coleta de material – os fatos” (2004, p. 36).

Bem, paro com as citações aqui, sob o perigo do tédio. Mas o importante para a discussão do mito é reconhecer a separação que se dá entre nossa linguagem e a da Bíblia. Enquanto estamos na terceira ou mesmo uma quarta fase, se pensarmos em termos de pós-modernidade, embora muito de nossa hermenêutica se construa sob os alicerces da terceira fase, a Bíblia está na primeira e na segunda fases. Isso gera um deslocamento interpretativo. Enquanto a Bíblia em determinados momentos usa uma linguagem poética para falar de Deus, do ser humano e do mundo, nós as interpretamos a partir da relação entre nós, sujeitos, e esses “objetos”, a partir da constituição “científica” dos fatos, característica da terceira fase. Isso fica claro quando Frye afirma que “Na terceira fase a literatura se adapta sobretudo através do que se chama de realismo, adotando categorias como probabilidade e plausibilidade como instrumentos retóricos” (2004, p. 50). É claro que o autor está falando de “literatura”, mas ela expressa os mecanismos que nós construímos para nossas relações humanas e com aquilo que nos cerca.

Por isso mesmo, devemos pensar que quando Bultmann propõe a desmitologização da Bíblia, ele está sob a pressão do encontro das três fases. E que a própria nomenclatura “mito”, como concebida hoje em termos sócio-históricos, é uma construção da terceira fase da linguagem estranha às duas anteriores.

Paro por aqui. Mas o livro de Frye tem um capítulo onde trabalha mais especificamente o mito. Acho que vale a pena voltar a ele.

6 comentários:

  1. Professor Leonel,
    Sua explanação sobre o assunto possibilitou a compreensão da nomenclatura "mito" ligada às características da linguagem de primeira fase, quando analisadas pela Literatura Contemporânea.

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  2. Sônia,

    A ideia era essa mesma. Fornecer um contexto para entender um termo que sofreu um desgaste histórico.

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  3. Olá Leonel ...
    Legal, compreendi bem a questão. O texto citado ( Frye) ajuda ainda mais.
    Leonel, seu texto me leva a ratificar que a interação do sujeito com o texto bíblico se dá por meio de um processo complexo, contraditório, dialético, dinâmico.
    Vejo como um crime a tentativa de nós leitores da 3º e 4º fase, buscarmos a todo e qualquer custo a “razão” da fé.
    Abraços.

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  4. Prof. Leonel,
    Por motivos outros, mantenho o livro do Frye na gaveta; penso que está na hora de dá uma olhada nele. Parabéns pela clareza de expressão. Um abraço.

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  5. Francikley,

    Acho que o livro de Frye vale a pena ser estudado na íntegra.

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