segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Amor e Opróbrio - Cantares (7,13-) 8,1-4

"(7,13) As mandrágoras exalam perfume, e às nossas portas há toda sorte de excelentes frutos, novos e velhos; eu os guardei para ti, ó meu amado. Oxalá fosses como meu irmão, que mamou os seios de minha mãe! quando eu te encontrasse lá fora, eu te beijaria e não me desprezariam! Eu te levaria e te introduziria na casa de minha mãe, e tu me instruirias; eu te daria a beber vinho aromático, o mosto das minhas romãs. A sua mão esquerda em minha nuca, e a sua direita me abraçaria. Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, que não acordeis nem desperteis o amor, até que ele o deseje."

Uma introdução contextualizante. Após algumas semanas de impedimentos não-desejados, retomamos as nossas conversas com um pequeno texto que também trata, dentre outras questões, de impedimentos.

1. Delimitando a perícope. Comecei em 7,13 (7,14 no TM) e terminei em 8,4. Decisão arbitrária, embora não solitária. Boas razões também nos levariam a delimitar a perícope em 8,1-3. Preferi 7,13-8,4 que me parece oferecer uma palavra poética completa. Os verbos no perfeito de 7,13 são complementados pelos verbos no imperfeito de 8,1 (o caminho da realidade para o desejado). O amor impedido nos versos 1-3 clama por sua autonomia no verso 4.

2. Notinhas semióticas greimasianas. Do ponto de vista da narratividade, temos um sujeito buscando entrar em conjunção com o objeto de seu desejo (seu amado). Um anti-sujeito se interpõe no programa de busca e oferece impedimentos, interditando a conjunção. O anti-sujeito tem a seu favor o contrato de veridicção matrimonial na sociedade vétero-israelita. O sujeito da busca questiona esse contrato matrimonial, propondo uma alternativa - o contrato de veridicção da afetividade.

3. Mais notinhas. Do ponto de vista da discursividade. A tensão narrativa é espacializada: a amante (o sujeito abstrato da narratividade é discursivizado como mulher) busca a união com o amado no movimento "para dentro da casa" - começa o encontro amoroso "na rua" e o consuma "em casa". Afinal de contas, é "em casa" que se pode encontrar em estado "terminado" o ambiente amoroso: dentro de casa estão guardadas as frutas, as bebidas, o leito, etc. Na rua o ambiente amoroso está em estado de incoatividade. É lugar de mandrágoras (7,13) fruto cujo cheiro se dizia ser afrodisíaco. É lugar de comércio, com aromas, cores, sabores às portas, convidando, seduzindo ...

4. O impedimento. O contrato de veridicção (pertence ao nível narrativo) matrimonial é o que impede a conjunção de amante-amado. A casa não é espaço privado (como na cultrua brasileira descrita por DaMatta) - a casa é espaço da família e a família é simultaneamente pública e privada, mais pública do que privada. A mulher não pode levar seu amado para casa, pois a casa é "paterna" - precisa do consentimento, mais, precisa do contrato matrimonial - "deixará o homem seu pai e sua mãe...". O amor, experimentado pela amante como força autônoma, está institucionalizado: há de se casar para poder amar. Moralismo? Não creio. Subjugação do amor à sobrevivência econômica. Casar não é mero juntar trapos, mas garantir herança para os mais jovens, futuro para a família, sobrevida aos velhos. O amor, porém, não se submete ao contrato econômico-social. É outro tipo de contrato, é como a relação com o irmão: afeto, fusão no corpo da mãe. Alguns comentaristas que li falaram de um desejo pervertido da amante pelo irmão de sangue! Não entenderam nada. Trata-se de outro contrato: a legitimidade no próprio afeto, no próprio corpo, no próprio desejo.

5. O amor. Sobre amor é melhor falar pouco. Amor é frágil fortaleza. Desejo. Semioticamente falando, desejo é virtual, é busca da realização; mas ainda não realizado. Escatológico, diríamos em linguagem teológica da história da salvação - já inaugurado, mas não consumado. Amor é virtualidade corpórea - corpos, braços, abraços, beijos. Amor é virtualidade pedagógica - o amado instrui a amada - enquanto esta seduz o amado, o dirige, o guia para dentro da casa. Amor é virtualidade erótica, enebriante, intoxicante, vinhos e romãs, mandrágoras e rosas. Como cantou a dama do rock paulistano: "amor é divino, sexo é animal; amor é bossa nova, sexo é carnaval".

2 comentários:

  1. Julio,uma pergunta:se as filhas de Jerusalém não deviam despertar o amor,poderiamos pensar que está subtendido que cabe aos filhos de Jerusalém despertá-lo, numa correlação com o versículo que você citou "deixará o homem pai e mãe..."?

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  2. Oi Rosa,
    Não acho que tal subentendido esteja presente no texto de Cantares. Penso que duas opções seriam mais interessantes para analisar o refrão: (1) ver as "filhas de Jerusalém" como representantes da corte; ou (2) vê-las como as cidades de Judá, que é o sentido comum da expressão em outros textos do AT. Não me parece que em Ct o amor seja vinculado a um gênero específico, diferentemente do contrato de casamento.

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