sábado, 19 de fevereiro de 2011

Narrador e personagens. A construção de sentido em Rute 1

Retomo a mensagem anterior a respeito do narrador em Rute a partir das perguntas que fiz e também interagindo com as mensagens do Júlio e do Paulo.

Muito instigantes as mensagens do Paulo. De fato, as imagens são elementos concretos que nos levam à abstração, uma vez que somos nós, os leitores (sim, lemos as imagens), que devemos dar sentido ao que vemos. E fazemos isso por intermédio de nossa imaginação. Os textos, por sua vez, também possuem concretude, mas ela é sensível e delicada, uma vez que necessitam da nossa interação para que façam sentido e se mantenham. Isso significa que somos nós, novamente os leitores, que damos um veredito final, pelo menos de forma concreta, ao textos com quem nos relacionamos. A diferença entre textos e imagens é que estas se impõem a nós, e, caso não as decifremos, elas permanecem como estão. Os textos não. Eles são mais frágeis e solicitam a todo instante que os completemos a partir de nossa compreensão. Há uma linha teórica na teoria literária chamada de estética da recepção que trabalha nesse perspectiva, sendo seus principais autores dois alemães: Wofgang Iser e Hans Robert Jauss, aos quais pode ser agregado o norte-americano Stanley Fish, este mais ligado às teorias do reader response.

Quanto ao que escreveu o Júlio, concordo com sua análise das questões de gênero que percorrem o livro. Eu também as noto no primeiro capítulo de Rute. Nele a preponderância das mulheres é apresentada claramente. Os homens, de fato, ficam em segundo plano, ocupando funções de figuração.

Volto às perguntas que fiz no post anterior:

- Qual a importância e o papel das vozes do narrador e dos personagens no texto?
- Como cada uma delas apresenta a ação de Deus?
- Há alguma contradição entre essas duas vozes?

Conforme esquematizei na mensagem anterior, o primeiro capítulo apresenta dois tipos de vozes: a do narrador e a dos personagens, principalmente Noemi. Ambas dão cores para a narrativa e a direcionam. Rute ainda é um personagem secundário, embora sua decisão de seguir terminantemente Noemi já prenuncie seu protagonismo que logo se manifestará.

Como as duas vozes se relacionam? Os autores normalmente atribuem sentido em suas narrativas através da voz do narrador ou quando o narrador cede espaço para a voz dos personagens. É o que acontece aqui. O narrador se manifesta no início (vs. 1-7) e no final (vs. 18-19a) com o objetivo de introduzir as cenas. No primeiro caso, ele prepara a cena do diálogo entre Noemi e as noras (vs. 8-17); e no segundo, a reação dos moradores de Belém, principalmente das mulheres, e a resposta de Noemi a elas (vs. 19b-21). O narrador volta à cena novamente para fechar o capítulo (v. 22).

A segunda pergunta apresenta uma diferença de perspectiva entre a voz do narrador e a de Noemi, principalmente em relação à ação de Deus.

No texto estudado o narrador exerce a função de descrever as situações, sem, no entanto, posicionar-se a respeito delas. Por exemplo, Elimeleque sai de Belém com a esposa em virtude da fome que assolava aquela terra. Não há nenhuma análise do narrador a esse respeito. A ação é apresentada como um dado lógico. A família vai para Moabe procurando sobreviver à penúria que os alcançou. Do mesmo modo, a morte do marido, o casamento dos filhos e a posterior morte deles são descritos de modo objetivo, sem nenhum comentário ou avaliação (apenas no v. 5 o narrador indica que ela "ficou desamparada de seus filhos", mas penso que isso não é uma afirmação de cunho dramático, mas sim concreto. Noemi não gozava mais da proteção dos filhos). De modo lógico o narrador registra que Noemi e as noras resolvem retornar para a terra de Judá (v. 7). Mesmo ao fechar o capítulo, o narrador se omite de registrar qualquer comentário a respeito de Noemi e Rute, e da situação em que se encontravam. Ele apenas informa que elas voltaram para Belém no início da sega da cevada.

É importante reconhecer que o narrador não faz nenhum comentário ou afirmativa a respeito da ação divina na situação vivida pelos personagens. Ele atua no plano da história humana, sem adentrar os céus para nos informar o que Deus fez ou não, o que pensava ou não da situação.

Por outro lado, Noemi é o agente narrativo que apresenta avaliações e decisões. Após a morte do marido ela toma as rédeas dos destinos da família. É ela que decide retornar para Judá. É ela que dispensa as noras para voltarem para suas famílias, argumentando que o futuro delas não seria nada auspicioso ao lado da sogra. É ela que aceita os argumentos de Rute e resolve levá-la consigo. É ela que, ao avaliar a experiência pela qual passava, resolve mudar de nome, tornando-se Mara.

Agora, mais importante do que isso é o fato de que, em oposição ao narrador que silencia a respeito da ação divina, Noemi por várias vezes interpreta os caminhos de Deus. Ela afirma categoricamente que “o Senhor descarregou a sua mão sobre mim” (v. 13), atribuindo a ele seu infortúnio; a alteração de seu nome deve-se à conclusão de que “grande amargura me tem dado o Todo-Poderoso” (v. 20); ela registra que era “ditosa” (feliz, afortunada) quando partiu de Belém, mas que o Senhor a fazia retornar para sua cidade “pobre”; e, finalmente, que “O Senhor se manifestou contra mmim e que o Todo-Poderoso me tem afligido” (v. 21).

Tais observações me levam à terceira pergunta. Há contradição entre as vozes do narrador e de Noemi? A resposta não é muito fácil. Isso explica a complexidade das narrativas bíblicas e, por isso mesmo, a fascinação que exercem no decorrer da História.

Podemos pensar que as duas vozes estão relacionadas em caráter complementar. O narrador apresentando os fatos, e Noemi interpretando-os e vinculando-os à ação divina. Mas isso, por si só, já é diferente do que acontece usualmente. Em geral é o narrador, que se apresenta em terceira pessoa, e por isso mesmo é onisciente, que traz à luz detalhes que são ocultos aos personagens e aos leitores. Aqui o personagem assume o papel de interpretar o que ocorre na narrativa.

Mas acho que há mais a ser dito. Penso que o elemento complementar é suplantado por outro. Pela oposição de posições. Afinal, se o narrador nada afirma sobre o que Deus faz, Noemi não teme em fazê-lo. Mas ela estará correta em sua interpretação? Por exemplo, ela está certa ao dizer que saiu feliz e afortunada de Belém em direção à Moabe e que foi Deus que a fez empobrecer? Estará correta ao dizer que Deus a tem afligido e agido contra ela? Não sei não...

Uma pista para pensar essa questão é um pequeno detalhe. Quando Rute fala também apresenta, de modo rápido, como compreendia a situação. Ela diz: “o teu Deus é o meu Deus” (v. 16) e: “Faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver” (v. 17). Seria lógico, se concordasse com Noemi a respeito da ação divina, querer que esse Deus fosse o Deus dela? E mais, colocar-se-ia nas mãos dele, para que fizesse dela o que bem lhe aprouvesse”, se concordasse com o ponto de vista de Noemi sobre Deus? Parece-me que Rute tem outro ponto de vista em relação a Deus.

Como é perceptível, este primeiro capítulo de Rute possui uma lógica própria, com algumas questões claras e outras não tão claras. É este último elemento que convida o leitor a contribuir com a construção de sentido. Esse é o aspecto ético intrínseco a toda narrativa. Nossas decisões diante dos caminhos propostos para que a história faça algum sentido.

2 comentários:

  1. Leonel,
    Sua descrição me fez lembrar da Poética de Dostoievski. Bakhtin classifica os romances do literato russo como "polifônicos", posto que as vozes das personagens são autênticas e "autônomas", demandando uma leitura "diferenciadora" dessas vozes.
    Uma leitura "harmonizante" de Rute resultará em uma exegese que "fere" o sentido original (sic!) :)

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  2. Júlio,

    É verdade! Quando escrevi não lembrei disso, mas vai que o subconsciente estava trabalhando :-)

    Obrigado pelo lembrete.

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