sábado, 5 de fevereiro de 2011

Narratividade e Narrativa – notinhas semióticas

Após o pontapé inicial do Leonel, me intrometo no percurso da bola, domino-a e passo adiante, apresentando um dos olhares que molda nosso blog.

O livro de Rute é normalmente classificado entre os livros narrativos da Torá. No meio bíblico, é costumeiro nomear como narrativa os textos que contam alguma estória ou história, têm enredo, personagens, temporalidade e espacialidade explícitas, etc. É uma classificação tradicional também em estudos literários e em lingüística, e não há nada a questionar nesse aspecto. Discussões mais interessantes têm a ver com o gênero textual (expressão melhor do que a famosa “forma literária”, já tradicional na exegese bíblica) e as abordagens possíveis a um texto narrativo.

Em Semiótica greimasiana, porém, a palavra “narrativa” é usada em dois sentidos distintos. Um deles é esse sentido tradicional mencionado acima (daí, nada a acrescentar). O outro sentido, típico da semiótica é mais interessante do ponto de vista metodológico, independentemente de aceitarmos as teses da teoria. Apresentarei, primeiramente, o conceito de narratividade (ou “Percurso narrativo”) em pequenas notas. A seguir, farei uma apropriação do conceito para a leitura de textos bíblicos:

(1) A narratividade é uma categoria da linguagem e da cultura, de modo que toda comunicação humana, todo texto, possui uma dimensão narrativa – independentemente do gênero textual ou gênero oral ou gênero discursivo de tal comunicação;
(2) “Parte-se de duas concepções complementares de narratividade: (a) narratividade como transformação de estados, de situações, operada pelo fazer transformador de um sujeito, que age no e sobre o mundo em busca de certos valores investidos nos objetos; (b) narratividade como sucessão de estabelecimentos e rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos-valor. Em outros termos, as estruturas narrativas simulam a história da busca de valores, da procura de sentido.” (BARROS, Diana Luz P. Teoria do Discurso. Fundamentos Semióticos. São Paulo: Atual, 1988, p. 28);
(3) Nos anos 1990 em diante, a Semiótica acrescentou um terceiro elemento à sua compreensão de narratividade: ela é também o lugar da construção passional da identidade do sujeito da ação. Assim, além de simular a busca de valores e a procura de sentido, a narratividade semiótica simula a busca-de-si e a busca-do-outro;
(4) Enfim, a narratividade, como conceito, é um simulacro, uma simulação da vida em sociedade. Analisar a narratividade (a dimensão narrativa) oculta em um texto (narrativo, ou não), demanda reimaginar as lutas, os contratos, os acordos, as conflitividades sociais que o texto, por sua vez, também simula – a partir de uma visada (ponto-de-vista, posição ideológica, etc.)

Para citar a mim mesmo (e, subliminarmente, fazer propaganda do meu livro...):

Toda ação é concebida como um fazer-transformador de estados, e pode ser assim analisada. Por exemplo, na sentença “Jesus veio de Nazaré”, o agir de Jesus indicado pelo verbo veio produz uma transformação no sujeito Jesus: antes, ele não estava no rio Jordão; agora, ele está no rio Jordão. Para realizar uma ação, o sujeito necessita de intencionalidade e competência, que são características tanto pessoais quanto sociais. A intencionalidade engloba tanto a motivação para agir, quanto os objetivos da ação, pois quem age sempre o faz em busca de um objetivo, movido por um dever, ou por um querer. Entendendo a motivação como pessoal e social, a semiótica lhe dá o nome de manipulação. Se Jesus foi para o Jordão, é porque ele devia sair de Nazaré para realizar algum objetivo [...]

A intencionalidade, porém, não é suficiente para dar conta da ação. É necessário que o sujeito seja capaz de realizar a ação desejada, é necessário que o sujeito tenha competência para agir. Na linguagem semiótica, a competência se desdobra em saber-fazer e poder-fazer, que sintetizam todas as competências reais de pessoas no mundo. O alvo da ação é denominado de objeto-valor e aquilo que é necessário para alcançar o alvo é denominado de objeto-modal. Dever, querer, poder e saber simulam todas as motivações e competências que, no mundo real, mobilizamos para agir. A busca de objetos-valor representa, sêmio-discursivamente, as buscas pessoais e sociais por realização, os conflitos sócio-econômicos, políticos, etc.

A ação realizada é denominada de performance. A performance se desdobra em um fazer-ser (opera transformação no próprio sujeito da ação) e em um fazer-fazer (opera transformação na relação do sujeito com o objeto-valor). Uma vez realizada, a ação terá sido bem-sucedida ou não, o alvo terá sido alcançado ou não. Ou seja, a ação será avaliada, receberá (na linguagem semiótica) uma sanção, que pode ser positiva ou negativa. Estes quatro elementos compõem o que se chama, então, de percurso narrativo canônico – que é um simulacro (modelo) da ação humana em sociedade. A narratividade, portanto, é esse movimento, esse percurso que vai da intencionalidade (manipulação e objetivo) à sanção, passando pela competência e performance. (ZABATIERO, Júlio P. T. Manual de Exegese. São Paulo: Hagnos, 20092, p. 105s.)

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