domingo, 13 de fevereiro de 2011

O encontro entre Rute e Boáz: cor e movimento

Espero que vocês tenham gostado da experiência de ler imagem. Por meio das imagens nós participamos de leituras feitas e recriadas por outras pessoas, em outro código. O código visual, como vimos, organiza a narrativa em seus elementos básicos - espaço e tempo - de forma diferente do texto. A imagem nos apresenta de uma vez o que o texto faz em sequência. Escreve por meio de registro, alinhamento, perspectiva, luz, cor, etc o que o texto apresenta como sequência de conceitos.

Chagall era um leitor perspicaz do texto bíblico. Tive a oportunidade de ver em 2009 em Belo Horizonte a exposição de obras de Chagall que incluia a sua série bíblica. Realmente impressiona a forma como ele recria os textos em  suas imagens. A imagem que apresentei pra vocês é especialmente interessante pois parece que não corresponde a um versículo em especial. O tema do encontro de Rute e Boáz é pressuposto, mas não narrado no texto. Ou melhor, não como imaginaríamos. No texto ele é marcado por um clima que para nós não tem nada de romântico. Boáz, depois de ter notado a moça recolhendo sobras de espigas em seu campo, dá ordens a seus servos para que não a molestem e permitam que ela possa beber água com eles (?!). No mais, no encontro é pedido para que ela não vá colher em outro campo. O texto bíblico é marcado pelos limites de sua cultura. Imaginem como um homem poderoso abordaria nos dias de hoje uma mulher pobre e dependente pela qual ele se apaixona. Boáz não faz a corte, nem esbanja generosidade, pelo menos em nossa perspectiva. Mas o leitor Chagall pressupõe algo que deve estar no texto, algo fundamental: um encontro entre homem e mulher. Neste encontro nada é gratuíto. Boáz já sabe quem é Rute e de seu cuidado com sua sogra. Sua aproximação, por mais fria que pareça para a nossa cultura, é interessada. Da mesma forma agirá Rute nas próximas cenas. Trata-se de um encontro amoroso. A imagem não deixa dúvidas sobre isso.

Vamos à imagem. Há movimentos e cores em destaque. Os braços são marcantes. Ainda que o corpo de Boáz seja (e esteja colocado) mais alto é no de Rute que se observa toda a expressividade. Os gestos dela são mais fortes, digamos: dilacerantes. De Boáz vemos os dois braços, mas em postura claramente defensiva. De Rute vemos apenas um, em movimento de ataque. Ele, mais alto que ela, se defende; mesmo olhando de cima para baixo, se sujeita. O olhar dela é ferino frontal e marcante. Está dado o encontro amoroso. Boáz, o senhor de terras, foi fatalmente ferido pela pobre moabita. Vejamos o jogo de cores na imagem. Temos uma bola vermelha no lado de Boáz. Não saberia dizer o que é isso. Mas podemos interpretar a força da cor com o fato de que em todo o vestido de Rute há manchas semi-circulares vermelhas, no formato de seu braço, ele também manchado de vermelho. O gesto dela parece dilacerar o rosto de Boáz, este também manchado de vermelho. A cor aqui expressa paixão, desejo erótico, em potência ao lado de Boáz, em movimento no corpo e no ataque de Rute sobre Boáz. O olhar dela é carinhoso e sedutor, o dele cheio de temor e sujeição. A imagem ressalta o que não está no texto, mas o que está em nossas expectativas do encontro em homem e mulher e no fato de que a relação entre o senhor e a serva são invertidos neste momento de encontro entre homem e mulher. 

Vamos analisar mais duas imagens de Chagall sobre o livro de Rute?


2 comentários:

  1. Olá Paulo,

    Chagall apreendeu, a meu ver, muito bem o lado erótico do texto.
    Os pomposos peitos de Rute tomam conta do todo! Se Boáz queria simplesmente dormir (na primeira imagem),talvez por estar exausto depois de ser "comido", Rute exibia fogosamente seus filhos gêmeos da gazela. Chagall entendeu muito bem o texto...rsrsr.

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  2. Já a primeira imagem, agora interpretada pelo Paulo, destacava a eroticidade da leitura de Chagall, o que se repete nas imagens deste post. Chama-me também a atenção a concessão de Chagall à literalidade do texto, com Rute, na primeira imagem, deitada "literalmente" aos pés de Booz. Concessão desmentida pelos seios à mostra ...

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