quarta-feira, 2 de março de 2011

Rute 1: uma segunda (e última) leitura das paixões

O trecho de 1,7-19ª tematiza o diálogo entre Noemi e suas duas noras, moabitas (não-israelitas). Noemi, amargurada com sua situação (ela considerava que YHWH pesara a mão sobre ela), oferece uma escapatória às noras – que voltem para “a casa de sua mãe” e “cada uma para seu marido” (esperança patriarcal, pois ambas eram viúvas, e Noemi considera, logicamente, que seria mais fácil para elas se casarem em sua própria terra). Orfa aceita o argumento de Noemi e volta. Rute, porém, rejeita a argumentação de Noemi e apresenta razões passionais: (a) ela se “apegou” a Noemi, verbo cujo uso geográfico indica proximidade, estar em algum lugar, e em uso passional denota fidelidade, “apego”, companheirismo. Em outras palavras, o apego de Rute a Noemi era mais intenso do que seu apego à sua terra e família de origem – dentre duas fidelidades, Rute escolheu a mais recente em sua vida, a fidelidade a Noemi, seu deus e sua cultura; (b) há uma paixão “negativa” “não me instes ... & me obrigues a não ... (só um verbo no hebraico)” – o verbo hebraico tem um uso relativo a uma espécie de pressão benigna, mas também pode ser usado para uma pressão “maligna”, e a tradução de Almeida segue esta possibilidade, com dois verbos em português para dar o sentido da intensidade passional – poderíamos traduzir mais ou menos assim “Noemi, não me atormentes ...”. Rute vê como um “tormento” a possibilidade de se afastar de Noemi a quem se havia apegado e com quem construíra sua nova identidade pessoal; (c) a resoluta fidelidade e apego de Rute a Noemi é descrita magistralmente pela narrativa, com um acúmulo de pares verbais que culmina numa auto-maldição; “16porque, aonde quer que fores, irei eu e, onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. 17 Onde quer que morreres, morrerei eu e aí serei sepultada; faça-me o SENHOR o que bem lhe aprouver, se outra coisa que não seja a morte me separar de ti.” Rute se entrega à YHWH, que poderia pesar a mão sobre ela, como pesara sobre Rute (na interpretação dela mesma, conforme o texto) – ou seja, a intensidade da fidelidade de Rute a Noemi é de tal monta, que ela preferia perder a vida sob o juízo divino do que perder a companhia de sua amiga e sogra; (d) Noemi, enfim, desiste de atormentá-la e se resigna a acolhê-la em sua companhia – uma atitude patética diante da amizade oferecida por Rute. À proposta de “aliança” (berith) de Rute, Noemi consegue apenas responder com resignação, posto que sua visão estava turvada por sua avaliação da desgraça que YHWH colocara sobre ela; (e) enfim, o verso 19ª retrata a fidelidade e o consenso entre ambas – foram juntas a Belém – sem, é claro, negar o relato antecedente do desnível entre a fidelidade de Rute e a resignação de Noemi.

Só para brincar um pouco de "recepção" - não é interessante como o texto retrata o modo pelo qual a crença religiosas e suas paixões afetam as relações entre pessoas? Awui, houve resignação, mas é comum haver a discórdia por causa de doutrinas, crenças, denominações ... como se o apego a Deus fosse uma razão suficiente para se desapegar das pessoas a quem queremos bem.

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