O último segmento do livro de Rute a ser analisado é pequeno – 4.13-22. No entanto, como final do livro, é de importância fundamental para a compreensão do drama das viúvas e de seu parente resgatador.
Os personagens principais não são sujeitos do discurso no texto. Ou fala-se deles, ou então fala-se sobre eles. Ocorre o mesmo que se deu no início do livro (1.1-7). No primeiro capítulo foi feita uma descrição dos cenários, personagens e dramas vividos para somente depois introduzir os personagens em ação. Agora, no final, há semelhante estratégia. Com exceção do v. 13, que relata a união entre Boaz e Rute, os demais versículos silenciam a respeito das atitudes dos personagens. Suas ações e falas ficam no passado. Agora é tempo de avaliação final.
Para tanto, duas vozes são ouvidas. A do narrador (v. 13, 16, 18-22) e a das mulheres (v. 14-15, 17). De modo alternado elas relatam o resumo final da história. Embora os diálogos se constituam no ponto central do livro, a presença narratorial também tem sua importância e se manifesta no enredo de modo claro e sem grandes envolvimentos pessoais. Quando necessário, ressaltou o sofrimento (1.3-5), e quando a situação foi alterada, relatou os resultados (2.3, 23; 4.13). Quanto a isso, o narrador acompanha o desenvolvimento da história. Não nega, como poderia fazer com pseudoargumentos teológicos, que o sofrimento atinja as protagonistas, mas, ao mesmo tempo, relata a alteração desse quadro. É isso que ocorre no final. De modo sintético o narrador dá a conhecer ao leitor que, de fato, Boaz cumpriu a promessa e tomou Rute como esposa, tiveram um filho (4.13) e ele foi o consolo de Noemi (v. 16). Como última informação, apresenta a descendência de Boaz, cujo ápice é o futuro rei Davi.
Central neste trecho é a voz das mulheres, que já havia aparecido anteriormente (1.19). Naquele momento, demonstrando surpresa e assombro pelo estado em que se encontrava Noemi. Na segunda ocorrência, a situação é inversa. Elas louvam a Deus por trazer à anciã um neto que será, ele mesmo, seu resgatador (4.14) e definem, de modo que não feito ainda, qual foi o papel de Rute para com ela: não apenas aquela que lhe dá um neto e a posteridade da família, como também a realidade inconteste de que isso se acontece porque ela “a ama”, e “é melhor do que sete filhos”. Eis aqui uma revelação feita pelo narrador por intermédio da boca da mulheres.
Não se nega a perda terrível sofrida por Noemi. Isso está claro em todo o livro. Mas o que vai se revelando, inicialmente de modo implícito, mas cada vez mais de forma concreta mediante as ações de Rute é que, embora ela não ocupasse o espaço emotivo daqueles que faltavam, ela não apenas assumiu o papel deles, como sua ação é interpretada pelo coro de mulheres como uma ação ideal (“sete filhos” era tido como o número ideal de filhos. Cf. 1 Sm 2.5 e Jó 1.2). Ou seja, Noemi não ficou desamparada, mas teve, em lugar daqueles que se foram, alguém à altura para substituí-los, como o enredo deixa claro.
Último dado a ser comentado a respeito da participação do coro de mulheres é a designação do nome para o filho de Rute/Boaz (4.17). Isso era incomum em Israel. Ou as mães atribuíam nome aos filhos (cf. Is 7.14) ou os pais (Lc 1.62-63). Por que as mulheres tomam tal iniciativa? Minha hipótese é que essa é uma estratégia do narrador. Ao invés dele mesmo descrever a cena, ou de apresentar os pais nomeando o recém-nascido, ele segue a estratégia de indicar acontecimentos importantes a partir de terceiras pessoas. Isso significa que o nascimento e o nome da criança são autenticados pela constatação daqueles que estão em volta, de que, de fato, esse é um acontecimento especial.
A criança será avô do futuro rei Davi. Esse é o ponto alto. E mostra como uma família sai da desgraça total (sem terra, sem dinheiro, sem descendentes) para se tornar aquela que traria ao mundo o principal e mais importante rei que haveria de nascer em Israel.
Bem, podemos pensar em algumas conclusões.
Uma delas foi estabelecida logo acima. O livro de Rute nos mostra que, para aqueles que creem e confiam em Deus, mesmo quando ele parece ser o inimigo, como julgou inicialmente Noemi, nunca é o fim da linha. Sempre há e haverá uma porta aberta, uma possibilidade de resgate e libertação, um razão pela qual orar e crer.
Outro aspecto muito belo da história é a estratégia de sua apresentação. Os diálogos são centrais, e as avaliações são feitas, não pelos próprios personagens, mas por terceiros. Isso revela que o mais importante não é o que pensamos de nós mesmos ou como nos avaliamos, embora a necessidade de consciência ética e de compromisso com Deus sejam importantes. O que vale é o que fazemos de concreto e que pode ser visto e avaliado pelos que nos veem. É aí, nas situações da vida, que nosso testemunho é avaliado e provado.
Um último dado para reflexão é a importância da família. Não digo isso em uma perspectiva moral, embora ela seja importante, mas de unidade social. Noemi e Rute sobrevivem apenas por que resolvem permanecer juntas. Caso contrário, a história teria acabado no primeiro capítulo, com Rute voltando para casa e Noemi, provavelmente, morrendo. É a família que nos tem e nós a temos. Ao final, esse é o fato mais importante. Mesmo em termos da presença na sociedade. E não falo mais acerca de sobrevivência. Falo de cidadania, de valores, de visão de mundo. Somos nós, famílias, que formamos a base da sociedade. Embora a nossa seja muito diferente daquela em que viveram os personagens do livro de Rute. Eis aí nosso desafio. Não a tentativa de uma volta saudosista de um tempo que não mais existe, mas a vivência de valores cristãos em um mundo em transformação. Mesmo o rei mais importante da história de Israel somente tem sentido se inserido nas lutas e vivências da pequena família de Noemi/Rute/Boaz.
Um questionamento, quase a título de provacação. Não passa imperceptível o papel da mulheres em Rute. Temos duas protagonistas e, embora Boaz também ocupe papel central, ele é quase que manipulado pelas mulheres, embora sua bondade inata sempre esteja presente. E temos o coral de mulheres ressaltando e reafirmando aspectos centrais para a história. E tudo isso em um mundo patriarcal. Vale a pena refletir sobre isso!
segunda-feira, 9 de maio de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Leonel,
ResponderExcluirAcredito que para as mulheres desempenharem seu papel elas desejam ser ouvidas e consideradas no que dizem. No fundo, no fundo, nenhuma mulher quer um homem manipulado, nem quase manipulado por ela.Através do diálogo, tanto os homens quanto as mulheres tem muito a contribuir, cada um com o potencial dado por Deus para discernir e perceber as coisas. É uma contribuição de igual para igual.
Boaz, ainda que no mundo patriarcal, agiu como quem considerava as opiniões das mulheres e suas atitudes eram de quem refletia no que diziam, embora num consenso final a última palavra fosse a dele.
Você tem razão, ele foi um homem de sentimentos e ações nobres.
Falando sobre isso,pergunto se este é um blog só para homens pois não vejo outras mulheres participando com seus comentários.
Sônia,
ResponderExcluirGrato pelos comentários. Concordo com você.
Quanto à ausência feminina, sinto muito. Gostaria imensamente que outras mulheres contribuíssem com uma visão diferenciada da nossa, de homens, com este blog.
Leonel,
ResponderExcluirA partir desta sua declaração, certamente outras mulheres irão participar!