sexta-feira, 10 de junho de 2011

Gálatas 2,15-16 e a Justificação com base na fidelidade do Messias Jesus

Quando falamos da nova perspectiva sobre Paulo, um dos temas fundamentais da discussão é o sintetizado pela fórmula justificação pela fé. Neste post não pretendo discutir a questão à luz da linha principal de argumentação da nova perspectiva. Seguirei uma senda paralela, algo periférica, mas que reaparece na discussão acadêmica sobre Gálatas e Romanos de quando em vez. O elemento de raciocínio típico da nova perspectiva é a tentativa de ler Gálatas como um escrito judeu-cristão (não apenas “cristão”), ou, como se pretende na velha e às vezes boa tradição exegética, “ler o texto em seu contexto”.

A seguir, a tradução de Gl 2,15-16 na ARA e, posteriormente, a minha tradução do texto de Gálatas, com destaque para as diferenças, a partir de que apresentarei minha leitura para o debate.

ARA: Nós, judeus por natureza e não pecadores dentre os gentios, sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, mas sim, pela fé em Cristo Jesus, temos também crido em Cristo Jesus para sermos justificados pela fé em Cristo, e não por obras da lei; pois por obras da lei nenhuma carne será justificada.

JPTZ: Nós, judeus de nascença, não nascidos dentre pecadores gentios, somos sabedores de que NENHUM SER HUMANO PODE ALCANÇAR JUSTIÇA COM BASE NAS OBRAS DA TORÁ, MAS, SOMENTE MEDIANTE A FIDELIDADE DO MESSIAS JESUS. Também nós, assim, PASSAMOS A RECONHECER JESUS COMO O MESSIAS, A FIM DE ALCANÇARMOS JUSTIÇA COM BASE NA FIDELIDADE DO MESSIAS E NÃO COM BASE NAS OBRAS DA TORÁ, posto que, com base nas obras da Torá, NINGUÉM PODERÁ ALCANÇAR JUSTIÇA.

Note, em itálico, a redundância da compreensão tradicional do texto de Gálatas: “pela fé em Cristo cremos em Cristo para sermos justificados pela fé em Cristo”. A expressão “pela fé em Cristo”, que ocorre duas vezes, é tradução de uma locução grega com dois substantivos ligados pelo caso genitivo – que é entendido como genitivo objetivo (Cristo é o objeto da fé). A expressão “cremos em Cristo” é uma oração com verbo e objeto indireto. Esta tradução segue a “velha” perspectiva: nós, seres humanos, somos pecadores e quando cremos em Jesus Cristo (aceitamos Jesus pela fé), somos inocentados por Deus e entramos na vida nova. Desta forma, a fé é o oposto das obras (sem “da Torá”), pois como somos salvos pela graça de Deus, não há mérito nenhum de nossa parte. (Repare bem: aqui em Gálatas 2,15-16 não ocorre a palavra graça!)

Podemos, porém, ler o texto sob outra perspectiva. Vejamos os principais passos dessa nova perspectiva:

(1) Ao invés de “justificados pela fé”, uso a expressão “alcançar justiça” – entendendo a justiça (na cultura hebraica antiga – libertação realizada por YHWH em parceria com “seu povo”) como o objeto de nossa busca humana. No contexto da carta aos gálatas, poderíamos identificar a justiça com a liberdade (de Gl 5). Em outras palavras, nós seres humanos vivemos em escravidão a um mundo no qual fomos lançados ao nascer, e não podemos transcendê-lo a partir de nós mesmos. Só com a parceria histórica de YHWH – corporificado no Messias – é que conseguimos alcançar a liberdade que desejamos. Logo, não se trata de um drama moral, mas existencial (a um tempo, ôntico e ontológico, no linguajar de Heidegger).

(2) Ao invés de “Cristo Jesus”, o Messias Jesus. Isto para ressaltar o caráter judaico do termo, que é um título, e não um sobrenome. É quando nos identificamos com este Messias em particular, e somente com este, que alcançamos a justiça de YHWH.

(3) Leio o genitivo como subjetivo e traduzo pístis como fidelidade – posto que na cultura hebraica fé=fidelidade. Ademais, como em nossa tradição a fé já se reduziu à adesão intelectual a uma crença, ou à experiência religiosa particular, é melhor evitar a palavra fé e usar um termo que, em português, corresponde melhor ao pensamento judaico antigo: fidelidade. Esta opção leva em conta um dos textos básicos favoritos de Paulo: o justo viverá por sua fidelidade. Assim, Habacuque permanece um texto judaico, não se convertendo ao cristianismo pós-bíblico.

(4) Seguindo (3), o contraste estabelecido por Paulo é entre “a fidelidade do Messias” e “as obras da Torá” – e aqui podemos caminhar na trilha normal da “nova perspectiva”, especialmente a interpretação de Dunn, que vê as “obras da Torá” como o distintivo identitário dos judeus em oposição aos gentios. O contraste é, então, entre uma physis (natureza, “judeus de nascença”) e uma phidelidade (seguir o Messias). Para alcançar a justiça, as marcas mundanas são irrelevantes (judeu, grego, homem, mulher, escravo, livre, bárbaro, cita, etc.). É a fidelidade do Messias ao projeto de YHWH que possibilita a todo e qualquer ser humano alcançar a justiça=liberdade. Note: a fidelidade do Messias equivale, aqui, à graça de Deus em Efésios (texto posterior, já mais distanciado da cultura judaica e mais próximo da tradição cristã paulina). Por que Deus é gracioso, a fidelidade do Messias substitui as “obras da Torá” como caminho da libertação e liberdade. Ou: uma vez que Deus é fiel a si mesmo, Ele nos abre o acesso à liberdade em parceria (fidelidade) com Ele mesmo, independentemente de nossa natureza (nosso estado natural, de nascidos em um tempo-espaço cultural-nacional).

(5) É por isso que “também nós, judeus de nascença” passamos a reconhecer Jesus como o Messias (uso o termo reconhecer no sentido forte da discussão filosófica recente com Axel Honneth, Paul Ricoeur, Charles Taylor, Jürgen Habermas e Nancy Fraser). Como não há distinção entre pessoas, os judeus só alcançam liberdade se fizerem aliança com o Messias Jesus = YHWH (isto é, precisam reconhecer Jesus como o Ungido de YHWH). Nessa aliança, as obras da Torá já não mais contam como meio de libertação. Cumpre-se, então, a expectativa de Jeremias e Ezequiel: a parceria com YHWH não precisa de mediações institucionais para ocorrer: é uma amizade, um companheirismo, uma relação de fidelidade amorosa.

Paro por aqui e espero as respostas e reações. Só uma palavrinha final. A salvação, então, não tem a ver com a negação do desejo, mas com a sua afirmação – deslocando, é claro, não só o desejo em-si, como também o modo de concretizá-lo. Da “vontade de poder” de Nietzsche, passando pela “vontade de vontade” de Heidegger, chegamos à “vontade de liberdade” de Paulo. O que constitui o ser humano é, assim, a busca permanente da liberdade. (Não seria uma tradução interessante do niilismo enquanto destino do ser, a la Vattimo?)

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