domingo, 28 de agosto de 2011

Paulo e a experiência dos gálatas – 3.1-5

Pode parecer estranho, em uma carta com forte conteúdo teológico e apologético, que o autor inicie um novo momento da discussão apelando para a experiência de seus leitores. Mas é isso que Paulo faz.

Segundo Betz (Galatians, p. 128), que analisa a carta a partir da retórica antiga, esta perícope inicia o Probatio, isto é, o momento em que as provas para a confirmação de posições ou para a contestação de seus adversários têm início. Anteriormente o apóstolo já havia fundamentado sua posição, mas usando a estratégia da Narratio, pela qual apresenta elementos da história em comum que viveu com seus leitores. Desse ponto de vista, há uma transição do elemento anterior para o que se inicia, visto que neste também o histórico de vida é utilizado como elemento argumentativo, mas com maior ênfase.

Ao mesmo tempo, é possível vislumbrar a mudança de estratégia. Paulo retira o foco de si mesmo, deixando a afirmação de autoridade apostólica bem como o argumento de pregar o genuíno evangelho, para mirar os próprios gálatas mediante a recordação da experiência vivida por eles quando abraçaram a fé.

O texto se desenvolve a partir de perguntas retóricas, cujo objetivo não é promover um diálogo com troca de opiniões, mas forçar os leitores a, mediante respostas que não permitem divagações, concordar com Paulo. Os fatos que estão na base de suas perguntas são: Jesus Cristo foi pregado a eles como crucificado (v. 1); eles receberam o Espírito Santo (v. 2); Deus, mediante o Espírito Santo, opera milagres entre eles (v. 5).

A partir desses fatos, que não sofreriam questionamento pelos gálatas, Paulo desenvolve suas perguntas.

Ele inicia com uma afirmação: os gálatas são insensatos! (v. 1). Qual a razão? Não conseguirem interpretar adequadamente a experiência vivida, ou então interpretarem equivocadamente o passado. A resposta às perguntas tem como objetivo convencê-los desse fato.

Diante da experiência gálata, Paulo apresenta três perguntas: a primeira delas, voltada para os opositores de Paulo: “Quem vos fascinou a vós outros [...] (v. 1)”. O verbo “fascinar” (baskaino) é mais bem traduzido como “enfeitiçar”, dando a entender que os gálatas estavam sofrendo uma espécie de transe teológico. Eles sabem a resposta, conhecem aqueles que os têm seduzido. Portanto, em lugar de atacar tais pessoas, Paulo leva os gálatas a reconhecem tal fato. “[...] ante cujos olhos foi Jesus Cristo exposto como crucificado?”. “Exposto” pode ser traduzido como “desenhado, pintado”. Paulo usa um termo das artes plásticas, apelando para o senso pictórico dos leitores. Desse modo, o quadro se torna ainda mais dramático. A partir da pregação do Cristo crucificado, Paulo apela para que os gálatas identifiquem aqueles que têm corrompido tal pregação.

A segunda pergunta: “Recebestes o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé? (v. 2)”. Com ela, Paulo introduz novo tema na carta: O Espírito Santo. Neste caso, relacionado com a conversão. O fato é que eles receberam o Espírito. A questão é: como? Pelas obras da lei, que, segundo Paulo e certamente com a concordância dos leitores, não traz justificação (2.16), ou pela pregação da fé? Provavelmente não haveria dificuldade com esta pergunta. Os cristãos gálatas teriam consciência, a partir de sua própria experiência, de que a salvação e o recebimento do Espírito eram movidos pela fé. O problema é que, pelo que parece, eles não conseguiam reconhecer que o apelo para uma vida segundo a lei é uma negação do Espírito e, como Paulo salienta, é um retorno à “carne”. “[...] tendo começado no Espírito, estejais, agora, vos aperfeiçoando na carne?” (v. 3). Essa questão está na base da oposição de Paulo a Pedro em Antioquia: “[...] se, sendo tu judeu, vives como gentio [sem lei] e não como judeu [com lei], por que obrigas os gentios a viverem como judeus?” (2.14).

O v. 4 traz uma alternativa de tradução para o verbo “sofrer” (pasxo). Almeida Atualizada traz: “Terá sido em vão que tantas coisas sofrestes?” Segundo Betz (p. 134-135), é possível traduzir o verbo como “experimentar”. Portanto, “Terá sido em vão que tantas coisas experimentastes?”. Se aceitarmos a tradução como “sofrimento”, devemos procurar algum fato na vivência gálata que demonstre uma experiência negativa de perseguição ou coisa semelhante como decorrência da aceitação do evangelho. Se, por outro lado, optarmos por “experimentar”, então teremos ligação com os versículos anteriores que falam do recebimento do Espírito mediante a pregação da fé. Paulo estaria dizendo: “Vocês receberam o Espírito através da pregação da fé. Será possível que a vivência e consciência dessa experiência tenham sido em vão?”.

A terceira e última pergunta é uma expansão da segunda: “Aquele, pois, que vos concede o Espírito e que opera milagres entre vós, porventura, o faz pelas obras da lei ou pela pregação da fé? (v. 5)”. Nela Paulo aprofunda sua argumentação. Afinal, uma coisa é reconhecer a dádiva gratuita do Espírito no ato do recebimento do evangelho. Outra, mais radical, é aceitar que Deus, que dá o Espírito e que por intermédio dele opera milagres, o faz igualmente pela pregação da fé. Seria muito difícil para os gálatas afirmarem que as ações poderosas de Deus entre eles se davam por algum merecimento próprio. Ao mesmo tempo, reconhecer a gratuidade da ação divina implicaria em aceitar a crítica de Paulo de que estavam vivendo na carne, e reconhecer, ao mesmo tempo, que estavam equivocados em seus caminhos.

Concluo este bloco com uma reflexão. Ao ler as perguntas de Paulo me vejo identificado com os gálatas. Tenho consciência da salvação pela fé, ou, como Júlio propôs, pela fidelidade de Jesus Cristo. Sei que não posso acrescentar nada que possa tornar-me “mais salvo”. Ao mesmo tempo, vivo “enfeitiçado” pela lei que me diz se necessário vivê-la na construção de minha relação com Deus. Sinto segurança em poder “contabilizar”, mediante a vivência da lei, o que tenho feito em prol do evangelho. Não consigo identificar na minha experiência a maldição da lei. Estou tão acostumado com ela, que praticá-la ou deixar de praticá-la não é tão importante quanto minha necessidade de buscá-la. Falta-me a consciência histórica da salvação e da experiência do poder de Deus unicamente pela graça e pela fé. São coisas distantes e esmaecidas em minha memória. Diante disso, preciso continuar lendo Gálatas para saber como me livrar desse cativeiro ao qual me submeto com prazer. Como abandonar a vida sob a carne.

Antes que me pergunte a respeito da presença da lei em minha vida, cito alguns questionamentos que poderiam indicar a graça em nós e algumas práticas diárias que se tornam componentes da lei.

Do que somos cobrados em nossas igrejas? Sermos mais amorosos uns com os outros e principalmente com aqueles que não conhecem Jesus Cristo? Vivermos em prol daqueles que sofrem, usando o pouco tempo que temos para ajudá-los, permitindo, assim, que vejam o evangelho de forma concreta? Vivermos uma vida de fé, assumindo os riscos e implicações dela em nosso dia a dia? Colocarmos como prioridade de nossa vida e de nossa comunidade a missão de proclamar o reino de Jesus entre nós?.

Não. Somos cobrados na frequência nos cultos. Somos cobrados para participarmos de reuniões que muitas vezes não possuem nenhum sentido. Somos cobrados em dar o dízimo para construção de edifícios e para pagar os “levitas” de nossas igrejas. Somos cobrados em dar testemunho “de nossa igreja”, zelando, com isso, para que o bom nome de nossa denominação não seja manchado na sociedade. Somos cobrados a nos abstermos de qualquer envolvimento com a sociedade e com a política, pois “o reino de Jesus não é deste mundo”.

Em outras palavras, vivemos na e sob a lei. Uma nova lei, um novo farisaísmo, mas que nos coloca em um estado de distância de Jesus e de sua graça, do poder de Deus e da ação de seu Espírito. Vivemos sob uma lei que nos fascina e nos promete muito, mas que, afinal, nos torna pessoas pobres, tristes, moralistas esquizofrênicos sem esperança neste mundo.

Acha que fui muito radical? Siga o raciocínio de Paulo e apela para a sua experiência!

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