segunda-feira, 26 de abril de 2010

Enfoque & Método – 3º e 4º de 4.

Começo destacando que não vejo estes posts como uma “síntese” da discussão, mas como uma tentativa de clarear termos – o que talvez possa servir como base para uma posterior síntese, mas ainda não é isto.

Já mencionei a teoria e a perspectiva. Chego ao enfoque. Por enfoque quero dizer duas coisas: (a) o viés disciplinar específico de uma leitura em modo acadêmico; e (b) o viés devocional específico de uma leitura em modo eclesiástico. O enfoque pode ser sincrético com a teoria, ou não. Por exemplo, na exegese histórico-crítica o enfoque disciplinar predominante é o histórico. Há, porém, bastante utilização de enfoques da teologia, das ciências sociais (sociologia e antropologia) e de disciplinas do campo dos estudos literários. A teoria é historiográfica, mas o que se busca não é reconstruir a história à qual o texto faz referência, mas, ou o conteúdo teológico do texto, ou a sociedade subjacente ao texto, ou a conformação literária do mesmo (aqui se deve diferenciar enfoque literário de teoria literária). Em exegeses com teoria feminista é comum o enfoque disciplinar ser histórico, literário ou sociológico, embora seja mais comum o enfoque crítico-ideológico, ou o dos chamados “estudos culturais” ou “pós-coloniais”. Nada impede, por exemplo, que se faça uma leitura com teoria semiótica e enfoque histórico; ou com teoria literária e enfoque sociológico; etc. Como o campo universitário está em grande ebulição, especialmente na área das humanidades, as fronteiras disciplinares estão em mutação e não se pode, ainda, formular uma descrição abrangente dos enfoques disciplinares possíveis. No modo eclesiástico, a leitura pode ser devocional no sentido estrito, com a pessoa buscando conhecer a vontade de Deus para sua vida; pode ser didático-homilético, quando se busca apresentar a vontade de Deus para outras pessoas; ou doutrinário-dogmático, quando se visa formular doutrina com força normativa para uma dada instituição (dogma).

Passo ao método. O método é apenas um conjunto de procedimentos para se chegar à consecução dos objetivos da leitura. O método depende, é claro, da teoria, da perspectiva e do enfoque. Mas ele também possui uma relação estreita com o objeto a que é aplicado. Na exegese histórico-crítica com enfoque sociológico, por exemplo, há diferentes métodos – o método derivado da vertente crítica, como o usado por Gottwald; ou o método funcionalista usado por Theisen no seu livro sobre a sociologia do movimento de Jesus; ou o método dos quatro lados da leitura popular latino-americana; etc. Na exegese feminista há métodos retóricos, métodos crítico-ideológicos, métodos literário-críticos, etc. A confusão que temos quando falamos em método é derivada principalmente do paradigma histórico (seja crítico, seja gramatical), que usa o termo método para se referir indistintamente ao método, propriamente dito, e à teoria, perspectiva e enfoque. Quando lemos um manual de exegese histórico-crítica, por exemplo, encontramos vários métodos que são chamados de críticas: crítica textual, literária, das formas, da tradição, da redação, da composição. Esses métodos são complementados com o método filológico (ou seja, pré-lingüístico) aplicado ao estudo dos conteúdos do texto. Na prática da exegese histórico-crítica nenhum autor “famoso” usa todos os métodos para ler o texto, todos são “especialistas” em um ou dois deles, com o filológico subjazendo a quase todos os trabalhos. No campo da teoria semiótica é possível desenvolver vários métodos em função dos distintos enfoques e perspectivas. Em meu Manual de Exegese, por exemplo, desenvolvi um método centrado no conceito de ação, no qual o estudo do texto, em sua dimensão discursiva, gira ao redor de cinco ciclos, em crescente grau de complexidade. Métodos (ou dispositivos analíticos, como preferem alguns analistas do discurso) são a dimensão mais maleável do processo de leitura. A sua validade depende da combinação das três dimensões mais amplas, bem como do objeto da leitura.

Em síntese (-:), quando lemos, mobilizamos teoria, perspectiva, enfoque e método. Nossas discussões sobre a exegese bíblica, portanto, não podem se restringir à questões de “método”, mas são discussões que envolvem essas quatro dimensões. Talvez esta descrição ajude a clarear alguns tópicos de discussão, especialmente um que é recorrente no âmbito acadêmico – a confusão entre teoria- enfoque-métodos-históricos, por um lado, e o reconhecimento da historicidade/contextualidade dos textos, por outro. Não é necessário usar teoria-enfoque-métodos-históricos para que se reconheça a ancoragem espaço-temporal, sócio-ideológica de um texto. A historicalidade (como prefiro chamar, ao invés de historicidade)de um texto não é patrimônio da História. É claro, porém, que os dominadores acadêmicos da teoria-enfoque-método-históricos não gostam disso, pois nesta descrição eles não são A exegese, mas UMA das exegeses possíveis.

2 comentários:

  1. Professor Zabatiero,

    uma curiosidade: essas definições e descrições terminologicas para teoria/perspectiva/enfoque/métodod foram formuladas à luz de reflexões pessoais, como uma espécie de síntese dos anos de leitura e prática de interpretação, ou são extraídas de teóricos que trabalham especificamente cada termo?

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  2. Caro Kenner, a escolha dos termos é minha. A primeira motivação para fazer essa descrição veio da necessidade de orientar estudantes de mestrado e doutorado na escolha do "referencial teórico" de suas pesquisas. Na área de Bíblia, os estudantes em geral confundiam "referencial teórico" com o método histórico-crítico (ou gramatical). Por isso comecei a elaborar uma descrição mais explicativa do que seria o tal "referencial teórico" para estudantes de Bíblia.

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