sexta-feira, 23 de abril de 2010

Método, que m. (método) é esse?

Estive ausente nos últimos dias por conta de burocracias. Mas volto agora ao que interessa que é o debate sobre a Bíblia e sua interpretação. Os textos de Leonel e de Júlio estão desenvolvendo o tema dos limites da leitura: por um lado tenho um texto com suas exigências históricas, ou outro lado um leitor que é um ser igualmente histórico, na sua história. O passado do texto se perdeu, ou melhor, foi encontrado, mas no texto. O passado só exige por meio de indícios, vestígios e todos eles, pedra, madeira ou texto precisam ser lidos. No caso dos textos criativos e míticos (entre eles a Bíblia) as dificuldades são maiores, pois seu potencial de reserva de sentido é enorme, se não infinita. Mas eu me referia à historicidade do texto. Como bem lembra Fiorin em sua introdução à obra de Bakhtin, a historicidade não é composta por "curiosidades" (fatos históricos, modos de produção, conflitos, etc), mas pela configuração histórica do próprio texto. Ele é um enunciado, um texto posicionado no universo social onde foi proferido, lido. A historicidade está nos ossos, nas letras, jamais fora do texto. Esta é uma tarefa interessante, ainda que soe contraditória: explorar a historicidade na imanência do texto, na forma como ele se posiciona no mundo.

Depois da historicidade do texto (ou concomitante a ela, na perspectiva da percepção), vem a historicidade do leitor. Sem alguém que o lê o texto está morto, silencioso. Mas quem lê (do mais crédulo exegeta histórico-crítico ao mais cético pós-moderno) faz o texto emergir novamente. Qual das duas historicidades é mais importante? Creio que a pergunta é falsa. Devemos, ao contrário, admitir que uma não se faz sem a outra. Ou sequer existe sem a outra. Texto não lido não tem história.

Concordo com o Júlio quando diz que a Bíblia tem mais que ver com a arte. Mas aí entra uma questão importante: se a Bíblia é inspiração, norma, regra ou o que mais for para as pessoas, quem e como pode interpretar? Na verdade pra mim a Bíblia não é regra de coisa alguma. Seus projetos não são os meus. Nela busco testemunho para construir o meu próprio, mas não tenho nenhuma intenção de imitar a religião dos primeiros israelitas, primeiros judaitas, primeiros cristãos. Minhas angústias, medos e desejos são outros e é com eles que debato e contra eles que coloco textos (não só a Bíblia!) em tensão. Mas isso não resolve a questão. Na sociedade as pessoas sim orientam-se de alguma forma pela Escritura. Não posso lavar minhas mãos e dizer: que se danem, que sigam, em nome da Bíblia, discriminando gays, muçulmanos e umbandistas. O leitor da Bíblia também precisa se posicionar sobre a Bíblia na sociedade. E isso que implica em dizer que há leituras diabólicas, equivocadas, incompetentes. Dizer que tudo vale é dizer que o fundamentalismo pode valer. E aí? Fico feliz no meu quarto com música new age, incenso e Bíblia? Acho que neste momento o chato do método, do método que se discute nas universidades, nos seminários, nos livros é importante. As regras do jogo tem que ser longamente discutidas, caso contrário chega alguém de mitra e diz: eu leio melhor que os demais, quero impor minha leitura... Ela é apenas uma leitura e os métodos têm que dizer isso. Queria ter sido mais poético aqui...

3 comentários:

  1. Prof. Paulo,

    concordo! O desafio está entre o "Tudo vale" e o "historicamente corret0/verdadeiro". Entre o aprisionamento do texto a uma historicidade positivista e a polissemia preguiçosa...

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  2. Kharis kai eirene

    Desde sexta-feira não li os textos expostos em razão de uma viagem ao interior do Pará, Rio Maria, uma comunidade cristã a qual estive ensinando as Escrituras. De sexta até hoje muito foi escrito, mas gostaria de fazer uma breve intervenção, embora meu desejo seja discutir as questões das novas hermenêuticas.
    Em primeiro lugar, não concordo com Paulo Nogueira quando afirma que, mesmo para ele, a “Bíblia não é regra de coisa alguma”. Não preciso dizer ao nobre ensaísta que essa perspectiva não é neotestamentária. Está lá nas epístolas pastorais. Entendo que os projetos e interesses originalmente das Escrituras não são os nossos, todavia, na leitura de qualquer obra plurissecular encontramos os mesmos dilemas do homem moderno, as mesmas desculpas e tentativas várias de lidar com o problema humano. Os fatos, as experiências talvez não se repitam, mas a natureza humana continua a mesma. Ao lermos Homero, por exemplo, não está ali também nossos dilemas? As vivências desses heróis e o modo como lidaram com hybris, ou epipothei não nos servem de exemplo? Nisto não estou a mencionar os casos extraídos das escrituras veterotestamentárias que são usados como background nas epístolas paulinas para as igrejas cidatinas. Como entender a atualidade dos salmos davídicos, se não pela aproximação das vicissitudes e dilemas do salmista com os do Cristo, ou do homem contemporâneo? Não seria esta a perspectiva de Nélida Piñon ao afirmar, com todo lirismo: “O meu repertório é composto de memórias do mundo. Na companhia de todos, sem exclusão, comemoro as emoções que me segam e me permitem reconhecer o precipício humano”. Estamos sim, afastados da cultura, do contexto (seja ele qual for), da língua entre outros tantos distanciamentos, mas ao mesmo tempo, sentimo-nos tão próximos dos sofrimentos, dilemas e desafios dos primeiros cristãos. Se a Bíblia não serve como regra de fé, prática e de conduta para o cristão contemporâneo, pouco importa ler a Bíblia ou Paulo Coelho, Lusíadas ou Maurício de Souza, pois a lemos, cônscios de que se trata de rhema theou, ou a lemos apenas como literatura. Será que ela perdeu também esse estatuto com o advento do pós-estruturalismo.
    Em segundo lugar, a relação da leitura da Bíblia com a interpretação da obra de arte.... (ficará para o próximo comentário...temos que dar conta das obrigações..)

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  3. Paulo, penso que você se pronunciou de modo bastante preciso. Eu me perfilo ao lado de sua argumentação. Desconsiderar a questão do critério de leitura impede-nos de interditar qualquer monstruosidade que seja, porque tudo se reveste da questão de gosto - arte não passa disso: gosto... Há que se ter clareza, sim, e de se discutir, sim, os critérios de leitura, os métodos, as teorias. Há que se ter lucidez, sim, e nudez mais ainda. As tendências, quanto mais conteporâneas sejam, mais fogem justamente da responsabilidade da satisfação da própria leitura, correndo-se o risco de uma absoluta idiossincrasia hermenêutica. Possível enquanto teoria - cada um faz com o texto o que quer - não se pode, contudo, dizer que se trata, afinal, sempre, da mesma coisa. Já o velho Nietzsche afirmava, e eu concordo com isso, que o mais importante são os métodos, mas o que têm contra si a preguiça e os costumes...

    Vou ler os demais textos.

    Osvaldo Luiz Ribeiro

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