terça-feira, 20 de julho de 2010

A propósito de Foucault e "A Ordem do Discurso"

A Ordem do Discurso foi a aula inaugural de Foucault no Collège de France em 1972. Independentemente de concordarmos com ele ou não, este livrinho deveria ser uma das "bíblias" de intérpretes bíblicos. Nele, Foucault descreve os processos e mecanismos mediante os quais somos constrangidos a dizer algo de determinada maneira e, por outro lado, como podemos enfretnar criativamente essa ordenação de nossa produção linguageira. Várias vezes, neste blog, mencionei o termo comentário na ótica foucaultiana, mas nunca o explicitei. Então, vamos lá, uma pequena descrição com base no livrinho de Foucault.

Após descrever mecanismos que chama de externos ou institucionais, Foucault descreve os mecanismos ou procedimentos internos de ordenação do discurso que: “funcionam, sobretudo, a título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição, como se se tratasse, desta vez, de submeter outra dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso” (21) e são três.
(1) o comentário, procedimento que se baseia em um desnível entre texto primeiro e texto segundo, que, “por um lado, permite construir (e indefinidamente) novos discursos [...] mas, por outro lado, o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. [...] O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado” (25s, grifos dele);
(2) o autor, não o falante real, mas “o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência” (26). O procedimento da autoria localiza o discurso e limita o seu acaso “pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu” (29); e
(3) as disciplinas, procedimento que se distingue dos dois anteriores por uma certa condição de anonimato e pela propensão a construir novos enunciados. “No interior de seus limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de suas margens, toda uma teratologia do saber. O exterior de uma ciência é mais e menos povoado do que se crê ... [de modo que uma proposição] antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, 'no verdadeiro'.” (34)
Os mecanismos do comentário e da autoria podem ser claramente traçados nos campos da exegese e teologia, da filosofia e do direito, a partir dos quais se difundiram. O mecanismo disciplinar, mais recente, perpassa a trajetória do desenvolvimento das ciências e sua progressiva autonomização da filosofia (como antes, esta, se libertara da teologia). O que há em comum entre esses mecanismos é a domesticação do discurso, através da padronização dos conteúdos e métodos de produção, circulação e atribuição do saber – que se remetem sempre a uma origem, a uma fonte de unidade, coerência e sistematização, os quais constituem uma estrutura de verdade e veracidade. Por outro lado, o mecanismo disciplinar fragmenta o objeto mediante a criação de novas disciplinas, a fim de se criarem espaços para novas perguntas, novas linhas de pesquisa, etc., sem que, com isso, a contingência do discurso seja recuperada, mas agora dominada pela dispersão do texto/discurso na multiplicidade de especializações incapazes de conversar umas com as outras.
O comentário, por exemplo, destemporaliza a verdade mediante uma paradoxal atribuição de historicidade à mesma, fincando-a em uma trajetória diacrônica tal que o novo (a interpretação do comentarista) nada mais seja do que o original/originário recontextualizado, ressituado. Não é à toa que uma das funções primeiras do comentário é estabelecer a autoria, garantindo assim a unidade e coerência dos novos discursos que se sobrepõem ao originante e o duplicam permanentemente. Assim começou a metodologia histórica moderna – construindo uma crítica genética do documento – que visava situá-lo no tempo e no espaço e subordiná-lo a um autor, de modo que se pudesse, sendo o caso, destituí-lo do caráter de documento histórico. Não só a historicidade fictícia é criada paradoxalmente, também a autoridade do texto originante é mantida de forma paradoxal – pois tal texto só é autoritativo no comentário que passa a substituir fantasmagoricamente o texto.

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