quinta-feira, 15 de abril de 2010

In-fidelidade: uma característica de nosso tempo

A ênfase no tema da fidelidade em Gn 22 pode ser interpretada de modo alienante e privatizante. Como prevenção contra tal tipo de recepção do tema, trago à reflexão alguns pensamentos sobre o caráter subversivo da fidelidade no mundo contemporâneo marcado pela infidelidade.
“Pois atualmente o próprio conceito de fidelidade passou a ser arcaico e ridículo. [...] Não somos fiéis, somos parceiros de jogo. [...] Seria sumamente ridículo se quiséssemos manter a fidelidade ao aparelho no qual estamos funcionando. A fidelidade é relação pessoal, os aparelhos não são pessoas. Nada é pessoa, com efeito: nem o parceiro de bridge, nem o do casamento. Tudo é aparelho, caixa preta. [...] Somos incapazes da vivência, e até da concepção, da fidelidade. O que implica que somos incapazes da liberdade no significado existencial desse termo.” (Vilém Flusser. Pós-história. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 157, grifos dele)
“A pequena minoria que sofre a consciência do absurdo do jogo social inventou substituto da fidelidade, chamado ‘engajamento’, que possa proporcionar sensação da liberdade. [...] Tal qual a fidelidade, o engajamento assume responsabilidade. Sacrifica a disponibilidade, a mobilidade social, em prol de específico relacionamento. Mas há profunda diferença entre fidelidade e engajamento. O engajamento se fundamenta sobre decisão deliberada, a fidelidade sobre espontaneidade. Ninguém se decide ser fiel: a fidelidade é mantida. Para dizê-lo em termos arcaicos, convenientes ao assunto: engajamento é fidelidade sem amor.” (Vilém Flusser. Pós-história. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 157, grifos dele)
Dois exemplos dessa incapacidade contemporânea de pensar e de viver a fidelidade: (a) fidelizar e fidelidade se tornaram termos do comércio e serviços – como os consumidores podem escolher entre diversos fornecedores dos mesmos produtos e serviços, as empresas oferecem vantagens para quem for fiel – assim, a fidelidade é despersonalizada e mercantilizada; (b) fiel era outro nome para o membro de igreja – pois havia a expectativa de permanência da pessoa em uma igreja local ao longo de sua vida, salvo motivo de força maior – hoje em dia, as igrejas possuem clientes, freqüentadores, consumidores “desfidelizados”.
Algumas das principais conseqüências dessa incapacidade de viver em fidelidade são: (a) a despersonalização das relações interpessoais, que bloqueia a possibilidade de reconhecimento nas suas três esferas: pessoal, jurídico-política e sócio-identitária; (b) a despolitização da vida em sociedade, que reduz a democracia a uma questão de consumo e o compromisso político a uma questão de preferências privadas; (c) a subversão da liberdade, que não é mais o poder- viver para o bem do próximo (assim já em Kant e Hegel, no mundo moderno), mas o poder-consumir para a auto-satisfação; (d) a mercantilização das crenças e práticas religiosas, que reduz a fé ao consumo de bens e sensações religiosas e reduz Deus ao “gênio” da lâmpada maravilhosa.

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