quarta-feira, 12 de maio de 2010

Uma mulher convicta e um mestre constrangido

O título da mensagem pretende salientar a relação tensa entre a mulher cananeia e Jesus Cristo.

Pode parecer estranho afirmar que Jesus está "constrangido" no relato. Intérpretes propõem que sua ação objetivava conduzir a mulher a uma fé mais profunda... Não sei não.

A mulher já foi descrita pelo Júlio. Resta Jesus.

Depois de um embate com religiosos provindos de Jerusalém (15.1-20) ele se dirige para uma região gentílica no litoral: os lados de Tiro e Sidom. O que foi fazer ali? O narrador não nos dá essa informação. Do mesmo modo como foi ele retornou, em uma andança sem fim em torno do mar da Galileia que começa em 14.13 e vai até 16.12.

Onde ocorre a cena? Novamente não há uma identificação clara. Pode-se pressupor que eles estavam andando em alguma estrada ou caminho, visto que os discípulos dizem a Jesus: "[ela] vem clamando atrás de nós" (v. 23), o que indica um processo de deslocamento.

Diante do apelo de teologicamente correto: "Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de mim" (v. 22), Jesus silencia. Os discípulos, incomodados, sugerem a Jesus que a mande embora (v. 23). A resposta de Jesus: "Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel" se dirige aos discípulos, e não à mulher. Talvez pensemos que ele profere essas palavras para ela e que, diante de tal afirmação, ela insiste. Mas não é isso. Ele nem se dá ao trabalho de falar com a cananeia. A resposta aos discípulos significa: não quero nem falar com ela (coisa típica de fariseu!).

Quando o narrador afirma que "ela, porém, veio e o adorou" (v. 25), pode indicar que a mulher estava a uma certa distância e que, por isso, nem teria ouvido Jesus. Se essa interpretação estiver correta, sua insistência não se dá por ter ouvido a frase de Jesus, mas simplesmente por que ele a ignorou e continou em seu caminho.

Apenas no v. 26 vemos Jesus se dirigindo à mulher, e ainda de forma ríspida. Ele propõe uma cena, uma espécie de mini-história. Nesse momento, ele se torna o narrador. A historinha tem como personagens os "filhos" e os"cachorrinhos", forma típica dos judeus se autodenominarem e de nomearem os gentios. "Não se dá o pão dos filhos aos cachorrinhos", diz Jesus. A mulher concorda. Mas, ao responder, ela interage com a história, tornando-se co-narradora.

Notem que o tema do alimento/pão é uma constante nos blocos que incluem esse texto. Aparece em 15.2,20; 15.32-39; 16.5-12. Mas neste momento não há espaço para tratar desse aspecto.

Ao propor a "mesa" como cenário (v. 27), ela acentua a diferença entre judeus e gentios, visto que em torno dela se pratica a comunhão ou a exclusão. Mas, mesmo excluída, ela insiste que ainda pode receber algo da mesa. Vejam que ela assume o papel dos cachorrinhos proposto por Jesus. Ela não está entre os filhos, tudo bem. Nesse aspecto, ela compartilha o ponto de vista ideológico do narrador Jesus(como diriam os teóricos da literatura). Mas ao dar outro rumo à história, ela se impõe como narradora sobre o primeiro narrador, Jesus.

Ela não está entre os filhos, mas tem uma "filha". E esse é o caráter ambíguo que a narrativa deixa um tanto solto. Se os filhos comem da mesa, a filha não poderá comer das migalhas? Sim, poderá. E por isso mesmo Jesus exalta a fé da mulher, curando sua filha. E a cura é efetuada de modo a constrastar com a relutância de Jesus durante praticamente toda a história. Se ele demorou mesmo para conversar com ela, agora, de modo imediato, a cura se dá: "e, desde aquele momento, sua filha ficou sã".

A mulher é a protagonista. Jesus se opõe a ela, mas, ao final, se deixa guiar pela sua fé. E se ela tivesse desistido, não haveria cura? Muito provavelmente. É por isso que o texto se apresenta, não como uma prova do poder de Jesus, mas como testemunho do que a fé pode fazer.

3 comentários:

  1. Pois é Leonel, apesar de tanta falação sobre "intenção original", "historicidade" do texto, etc., muitos intérpretes desse texto lêem Jesus a partir do dogma cristológico. Jesus não precisa ser "salvo" de sua constrangedora contextualidade. Era um judeu, e embora não fosse tão anti-gentílico como a religião oficial, não podia deixar de ser influenciado pela forma de construção da identidade judaica de então. Ele, porém, diferentemente de muitos de sua época, aprende - ouve a mulher (por causa da insistência dela!), debate com ela (algo que um líder religioso judeu típico não faria), cede aos seus argumentos e amplia sua visão a partir desse debate.
    Uma pergunta interessante poderia ser acrescentada: que Jesus estava fazendo pelos lados de Tiro e Sidom, se ele fora enviado apenas às "ovelhas perdidas israelitas"?
    Aliás, e esse será tema de meu próximo post, a semiótica tem muito interesse na maneira como o texto constrói a espacialidade-temporalidade...

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  2. De acordo com alguns comentários que consultei, o termo "cachorrinhos" nesta perícope não é o mesmo termo usado para descrever, pejorativamente, gentios e outros grupos de pessoas fora de Lei. É, mais, um termo para o animal doméstico, aquele de quem se cuida em casa. Não será esta alternativa mais consistente com o fato de que é da boca da mulher que vem a frase?

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  3. Anônimo,

    Bem, o termo é primeiramente utilizado por Jesus (v. 26). E mesmo que a tua hipótese esteja correta, convenhamos, filhos são muito diferentes de cachorrinhos.

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