quarta-feira, 7 de abril de 2010

O Sacrifício de Isaque: de Auerbach a Saramago.

Gosto muito da abordagem de Auerbach sobre o relato de Gênesis 22, analisado em contraste com a cicatriz de Ulisses, referência ao relato da Odisséia. Com muita sensibilidade ele consegue nos despertar para a sofisticação da narrativa de Gênesis, sofisticação essa que é praticamente desprezada pelos exegetas histórico-críticos, que se interessam muito mais pelos estratos e motivações originais, ou, pelo menos, anteriores ao texto "artisticamente" acabado. Há uma idéia pré-concebida de que o que tem arte não vem do povo ou da história do povo. Qualquer embelezamento estético - e, portanto, sofisticado - do texto procederia da corte. Temos muito a aprender, portanto, com a perspectiva lançada por Auerbach e, a meu ver, brilhantemente seguida e desenvolvida por Robert Alter (A Arte da Narrativa Bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2008).

Li nas últimas férias Caim, de José Saramago. Foi uma leitura deliciosa e irreverente. Aliás, na linha de Manual da Paixão Solitária de Moacyr Scliar. O último, aliás, muito mais sofisticado e divertido. Trata-se de duas obras que, com muito humor, recriam a subvertem as narrativas bíblicas. Uma escrita por um português "rabugento" que não gosta da Bíblia e do seu deus, outra criada pelo brasileiro de origem judaica que trata suas escrituras com mais carinho. Mas o que os une é o humor. Esta é uma chave hermenêutica preciosa para lidar com o texto bíblico, chave esta que desprezamos sistematicamente nos currículos teológicos, quando não a amaldiçoamos de vez. Mas, pergunto, como é possível lidar com a seriedade dos textos tidos como sagrados, domingo a domingo (pressupondo de ninguém agüente fazer "hora silenciosa" todo santo dia!), anos a fio? E no caso dos exegetas? Cursos de Pentateuco, Sinóticos, Profetas, Cartas Paulinas, a cada semestre, sempre relendo, retraduzindo, revisitando as fichas amareladas? Semestre após semestre? Quem aguenta a santidade destas linhas? Por que não poderíamos rir de textos que amamos, uma vez que os amamos? Rio-me de amigos, rio com eles. Por que não deste texto cujo deciframento me consome mais tempo que o cuidado de coisas essenciais e práticas? Não quero dizer com isso que o texto de Saramago (o mais querido dos "rabugentos") seja um livro de humor. Tem humor, mas quer ser protesto. Mas não funcionou para este leitor aqui como um grande protesto. Mas quase me matou de rir quando, ninguém menos que o assassino primordial, Caim, salva Isaque do golpe fatal que estava por ser desferido pelo seu próprio pai. E os impropérios que solta ao saber que o próprio deus o havia mandado? E quando chega atrasado o anjo que tinha como tarefa salvar Isaque? E tenta, a despeito de seus problemas hidráulicos nas asas, assumir o papel que na verdade foi de Caim? O riso que esta narrativa segunda me causou, me permitiu exorcizar um pouco do horror do original. Me fez sentir um pouco ridícula a idéia de um deus que manda matar o filho único, tema recorrente em toda a Escritura. Me perguntei também se o autor/redator do texto não poderia ter percebido as possibilidades de leitura, inclusive esta, no seu enigmático relato. Se ele não o fez, o texto sim o fez.

No caso dos textos do Novo Testamento me lembrei que faço há alguns anos algo semelhante ao começar meus cursos introdutórios de Sinóticos (ou de Jesus Histórico, no tempo em que acreditava neste tema) com o filme A Vida de Brian, de Monty Python. Como não passar mal de tanto rir com o sermão da montanha (Blessed are the Cheesemakers...)? Mas como também não pensar a história de Jesus a partir dos nós narrativos que o filme nos propõe na história de Brian? Como não renovar o amor pelo texto dos evangelhos após rir um pouco da história que se anuncia trágica e séria? Este riso interpretativo me lembra o riso carnavalesco medieval estudado por Bakhtin. Um riso subversivo, inversor de papéis, renovador de mundo. Renovador de leitura.
Mas ele ainda não me liberta dos horrores da narrativa de Gênesis 22. Isso é outra história. Ele só me habilita para ler mais uma vez.

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