sexta-feira, 16 de abril de 2010

Você lê "de noite na cama"?

Para que lemos textos? Por que nos vemos "enfermos de literatura"? E, em especial, enfermos da literatura bíblica? Por que deciframos o cosmo como uma espécie de texto? Lemos imagens, expressões faciais, sinais dos tempos, nuvens, corpos e letras. Nossa mediação com o mundo é dada semioticamente. Só conhecemos a primeira realidade (a biológica) por meio de uma segunda realidade que a constrói o tempo todo, humanizando-a (como coisas que amamos, tememos, como lar ou exílio, etc). Nossos gestos e posturas corporais diante dos textos são formas de início de deciframento. Se eu leio um texto em pé, em público, com voz impostada, pausada, já dou início a um longo e complexo processo interpretativo. Este texto se transformará em imagens em minha cabeça, em sequência de imagens, delas escolherei as que afetivamente me dão prazer ou dor (preterindo e eliminando outras), as associarei a outras tantas até as primeiras se perderem. De um texto com o qual meu corpo iniciou a leitura eu produzirei textos para outros e assim ao infinito. Portanto, congelar a interpretação na perícope, no seu contexto original, na etimologia da linguagem original, nos cânones formais de gênero, no sentido histórico e depois dizer "uma vez achado o texto correto, no tempo correto, com os métodos corretos, vamos à hermenêutica..." é um divertido contrasenso, uma vez que o leitor (exegeta) já iniciou sua leitura na escolha do texto (que em algum momento, em sua biografia de adolescente o fascinou, que o fez ficar trancado em casa lendo, ao invés de correr atrás de uma bola ou de garotas...), com o seminário onde se matriculou, depois com a disposição dos livros em sua biblioteca (faça o exercício, mapeie sua biblioteca por regiões: o que está acima - abaixo, na direita - na esquerda), nos que escolheu pra ler, nas frases que sublinhou, na forma como começou sua aula, nos devaneios que se permitiu (ou não) durante a mesma. Ou seja, você está lendo o texto da mesma forma que está lendo o mundo ao seu redor o tempo todo. Por que este texto? Aí saio em defesa do exegeta: por que na sua polissemia ele me permite construir meu mundo, humanizá-lo. Poderia ser outro texto? Poderia sim. Mas sempre um texto, que me penetra os sentidos para que eu faça o melhor dele, para que eu me enrosque na sua teia de palavras e ele me salve da falta de sentido humano do mundo. E se quero dele me libertar pra ler outros textos, deito-me no divã e lá vem a rede de palavras de novo. E o texto vira outro texto. Estamos nos envolvendo narcisicamente em tecidos o tempo todo.
Assim, caro blogueiro, caro leitor, se você lê a Escritura "de noite na cama" você já está fazendo uma exegese de confessionário, de ursinho de pelúcia, de "boa noite, eu te amo, benzinho", de "quero um salmo bonito pra me consolar" ou "um milagre com o qual sonhar". Pode ser tudo isso ou mais. Mas no fundo, não é muito diferente da leitura do engravatado que entra num prédio vetusto, diz bom dia aos seus alunos, põe um Novum Testamentum Graece sobre a mesa, faz chamada e diz: "nossa perícope de hoje é um apoftegma da Fonte Q". Ele já está lendo há muito tempo, com seu corpo, seus gestos e com os locais e tons com que o faz.  E a fantasia da sua leitura é: "ninguém sabe que já leio escondido faz tempo, nem eu mesmo".

Um comentário:

  1. Rogerio Lima de Moura17 de abril de 2010 às 19:58

    Professor Paulo, o que eu mais gosto na disciplina chamada exegese é saber que o texto não pode ser aprisionado, agarrado.A interpretação não é linear, é contínua.O texto sempre vai ser interpretado de diversas maneiras. Tolo é aquele que parafraseando o Rubem Alves tenta "engaiolar o pássaro" da interpretação de um texto, o tornando sem graça e sem novidade. Abraço!

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