Como disse na mensagem anterior, a carta a Filemon, por constar como último escrito de Paulo, ocupa igual papel de importância. Afinal, pensariam os responsáveis pelo fechamento do cânon cristão: " - o que teria um texto de cunho pessoal a dizer dentro da Escritura Sagrada?"
Tem, e muito a dizer. Não em uma perspectiva teológica abstrata, ocupada em determinar e descobrir o que passa pela mente de Deus e quais suas ordenanças para os seres humanos. Tem a dizer quando pensamos o cristianismo como um grupo de seguidores de Jesus que vivem historicamente em tensão dialética com a sociedade e consigo mesmo, como indivíduos e como um grupo com identidade própria.
É nesse contexto que vale a pena analisar Filemon. O Júlio seguiu um caminho: a relação pessoal - institucional. Eu tomo outra trilha. A das relações frágeis do cristianismo apresentadas na carta.
E aqui há um dado importante, que é reconhecer como o social é incorporado no literário. Em outras palavras, como os dados de contexto e determinação histórica e social são inseridos e, portanto, manipulados, retrabalhados no texto que lemos, propondo, a partir daí, outra realidade social.
Vejam o termo "prisioneiro". Paulo utiliza-o para referir-se a si mesmo como "prisioneiro de Cristo" (v.1 e 9), embora ele seja, de fato, prisioneiro do império romano. O termo é usado também em relação a Epafras, "prisioneiro comigo" (v. 23). Em que sentido? Prisioneiro em Cristo como Paulo? Ou prisioneiro do império, assim como Paulo? Nesse campo semântico podemos mencionar "escravo" (v. 16), atribuído a Onésimo em sentido concreto.
Mas o "prisioneiro" Paulo pode ter um "servo" (v. 13), referindo-se à gratidão da qual Filemon lhe é devedor, mas que é vivenciada por Onésimo, pelo menos por um tempo. Paulo, prisioneiro, sente "liberdade" para "ordenar" algo a Filemon. Ao mesmo tempo, o "escravo" Onésimo deve ser recebido por seu senhor como "irmão caríssimo" (v. 16).
As referências acima demonstram como os elementos concretos são retrabalhados por Paulo gerando, por vezes, novos sentidos, e às vezes sentidos ambíguos. O que determina essas escolhas? A visão "teológica" que coloca todos em um mesmo nível, como cristãos e, ao mesmo tempo, apresenta escala de valores, sendo Paulo, apóstolo, alguém com autoridade sobre outros cristãos.
Essas relações teológicas, no entanto, não são fixas, determinantes. Elas também assumem aspectos dinâmicos e tensos. O apóstolo espera "obediência" de Filemon ao receber novamente Onésimo. Mas ele "espera". Não pode exigir. Filemon ainda detém o poder supremo sobre seu escravo a partir das leis romanas. Cabe a ele decidir se abrirá mão de seu direito ou não. Mesmo o apelo a Filemon para que lembre que deve serviço de gratidão a Paulo é apenas um "apelo", sem força de ordenança.
Portanto, a carta releva que o cristianismo opera a partir dos elementos contextuais em que vive, sejam eles concretos ou simbólicos. Sobre ou ao lado deles, constrói uma visão própria de mundo que, para existir e funcionar, "depende" da adesão dos seguidores. Por isso mesmo, o cristianismo se constrói a partir de "estruturas frágeis" que não podem ser negadas.
Isso é muito importante em tempos em que o denominacionalismo, com suas doutrinas, definições e cargos tem se tornado mais importante do que o cristianismo; em tempos em que profetas, apóstolos e sei lá mais o quê tem se dado o direito de dirigir vidas de pessoas e determinar o que devem fazer ou não. Tudo isso é uma negação do caráter frágil do caminho de Jesus em que somos chamados a seguir.
Por isso mesmo é necessário fé, tolerância, humildade e amor. De todos para com todos. Quando essas características cristãs são abandonadas, surge a sombra negra e tenebrosa das instituições religiosas a oprimirem os cristãos e a sociedade.
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Filemon - pessoal versus institucional
Gosto de ler essa pequena cartinha - um bilhete - sob a ótica da polêmica pessoal versus institucional. Isto tem a ver com minha biografia cristã. Em minha conversão, tornei-me membro de uma igreja evangélica cuja ideologia era basicamente a "mude a pessoa que a sociedade muda junto". Uma ideologia confusa - que confundia o pessoal e o institucional, subordinando este àquele. Depois, ao longo da minha trajetória no cristianismo, fui ficando ecumênico e "latino-americano", descobrindo uma nova ideologia: "não basta mudar a pessoa, é preciso transformar a sociedade". Então, o institucional subordinava o pessoal. Posições opostas, mas dentro do mesmo binarismo. Dois fracassos.
Agora estou aprendendo - tenho certeza que uma alternativa àquelas ideologias é possível, mas não posso descrevê-la contundementemente - um outro jeito de pensar e viver a fé cristã na sociedade globalizada. Pessoal e institucional se sobredeterminam o tempo todo, um tentando incorporar e assimilar o outro à sua lógica. Não conseguem, por isso sempre se posicionam contra, um é o verso-reverso-anverso do outro.
Volto ao bilhete paulino. A polêmica é simultaneamente institucional e pessoal. Paulo, na cadeia, escravo do Império, escreve um bilhetinho ao dono de um escravo fugido - Filemon, carcereiro existencial de Onésimo (útil), inútil servidor. Reconhece o direito do proprietário. A instituição da escravidão não é condenada, não é denunciada, não é demonizada. Apenas é reconhecida como um dado, como elemento da facticidade social no império. Paulo brinca, joga com a facticidade. O vocabulário do bilhete flutua o tempo todo entre o pedir e o ordenar, entre o pessoal e o institucional. Não se trata de negar o institucional pelo pessoal.
É diferente. Trata-se de pensar o institucional a partir do pessoal (e vice-versa). A questão é a dos limites. Paulo pede a Filemon que faça o bem. O bem não pode ser imposto, não pode ser institucionalizado. Bondade é ação pessoal, é paixão humana. Instituições são impessoais, desumanas, apesar de feitas e dirigidas por seres humanos - demasiadamente humanos, brincando com Nietzsche. O pessoal não pode invadir o institucional e vice-versa. Por isso, Paulo pede, suplica, roga, apela ao coração de Filemon. Assim, estabelece limites: quando lidamos com pessoas, sempre temos de tratá-las de modo pessoal, nunca institucional.
A instituição dá a Onésimo uma identidade: escravo. Paulo oferece outra: irmão. O contrato social despersonaliza e desumaniza ao tentar humanizar. A aliança divina personaliza e humaniza ao dizer à instituição: fique dentro de seus limites - não use as pessoas, não as abuse, não faça delas escravas. Mas a instituição, embora despersonalizadora, não é demonizada. Eu diria, tem um lugar (lugarzinho????). Pois em um mundo marcado pelo pecado, é preciso também despersonalizar e institucionalizar os mecanismos de sujeição, de dominação, de opressão, de exclusão. Senão, teríamos de ser bonzinhos com as instituições dominadoras. Mas, instituições não são pessoas. Têm de ser tratadas institucionalmente, e não pessoalmente. Que a escravidão permaneça enquanto instituição. Que a irmandade permaneça como modo de ser e de viver em conjunto.
Pessoas são seres vivos, cujo direito à vida é insuperável. Instituições não. Elas não são seres, são coisas, efeitos de ações e relações. Assim, podem morrer. Melhor, devem morrer. E morrem!
Agora estou aprendendo - tenho certeza que uma alternativa àquelas ideologias é possível, mas não posso descrevê-la contundementemente - um outro jeito de pensar e viver a fé cristã na sociedade globalizada. Pessoal e institucional se sobredeterminam o tempo todo, um tentando incorporar e assimilar o outro à sua lógica. Não conseguem, por isso sempre se posicionam contra, um é o verso-reverso-anverso do outro.
Volto ao bilhete paulino. A polêmica é simultaneamente institucional e pessoal. Paulo, na cadeia, escravo do Império, escreve um bilhetinho ao dono de um escravo fugido - Filemon, carcereiro existencial de Onésimo (útil), inútil servidor. Reconhece o direito do proprietário. A instituição da escravidão não é condenada, não é denunciada, não é demonizada. Apenas é reconhecida como um dado, como elemento da facticidade social no império. Paulo brinca, joga com a facticidade. O vocabulário do bilhete flutua o tempo todo entre o pedir e o ordenar, entre o pessoal e o institucional. Não se trata de negar o institucional pelo pessoal.
É diferente. Trata-se de pensar o institucional a partir do pessoal (e vice-versa). A questão é a dos limites. Paulo pede a Filemon que faça o bem. O bem não pode ser imposto, não pode ser institucionalizado. Bondade é ação pessoal, é paixão humana. Instituições são impessoais, desumanas, apesar de feitas e dirigidas por seres humanos - demasiadamente humanos, brincando com Nietzsche. O pessoal não pode invadir o institucional e vice-versa. Por isso, Paulo pede, suplica, roga, apela ao coração de Filemon. Assim, estabelece limites: quando lidamos com pessoas, sempre temos de tratá-las de modo pessoal, nunca institucional.
A instituição dá a Onésimo uma identidade: escravo. Paulo oferece outra: irmão. O contrato social despersonaliza e desumaniza ao tentar humanizar. A aliança divina personaliza e humaniza ao dizer à instituição: fique dentro de seus limites - não use as pessoas, não as abuse, não faça delas escravas. Mas a instituição, embora despersonalizadora, não é demonizada. Eu diria, tem um lugar (lugarzinho????). Pois em um mundo marcado pelo pecado, é preciso também despersonalizar e institucionalizar os mecanismos de sujeição, de dominação, de opressão, de exclusão. Senão, teríamos de ser bonzinhos com as instituições dominadoras. Mas, instituições não são pessoas. Têm de ser tratadas institucionalmente, e não pessoalmente. Que a escravidão permaneça enquanto instituição. Que a irmandade permaneça como modo de ser e de viver em conjunto.
Pessoas são seres vivos, cujo direito à vida é insuperável. Instituições não. Elas não são seres, são coisas, efeitos de ações e relações. Assim, podem morrer. Melhor, devem morrer. E morrem!
Assinar:
Postagens (Atom)