quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Ano Novo e Férias

Caras e caros amigos e amigas deste "blogue". Como vocês já viram, com exceção do Leonel, que não para nunca de trabalhar, o Paulo e eu já estamos um pouco de férias (do blog, pois foi exatamente o acúmulo de atividades burocráticas do fim de ano e de semestre letivo que nos impediu de cumprir nossa prazerosa atividade de blogar biblicamente).

Fica aqui meu desejo a todas e todos vocês que permanentemente se renovem, pois não acredito em "ano novo", apenas em pessoas que se renovam e se deixam renovar por Deus, Pai e Mãe, Irmã, Irmão e Amigo/a, que faz novas todas as coisas.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Natal!!!

Aproveito a proximidade do natal para deixar uma pequena mensagem.

Em tempos de desesperança...

... Como deixar de crer diante da mensagem natalina?

... Como abandonar a fé, quando o improvável dos improváveis ocorreu?

... Como não amar e crer nas crianças, se o Salvador tornou-se uma delas?

... Como se manter cético se os magos, vindos de lugares distantes, creram?

... Como não ser tocado, se humildes pastores se encheram de alegria e deixaram os campos para adorar o recém-nascido?

... Como olhar para baixo, quando os céus se abriram e anjos desceram para anunciar o nascimento do Salvador?

... Como não amar os familiares, se José e Maria cercaram o recém-nascido de carinho, amor e o livraram de seus inimigos?

... Como ser apenas religioso, se os religiosos se mantiveram indiferentes ao nascimento de Jesus, o Cristo?

... Como não acreditar e lutar pela paz, se a chegada de Jesus aviva a profecia: “a bota com que anda o guerreiro na batalha e as vestes revolvidas em sangue serão queimadas”?

... Como desprezar os idosos, se dois deles, Simeão e Ana, estiveram entre os primeiros a reconhecer a criança nos braços de Maria como o Salvador?
... Como murmurar frente às dificuldades da vida, se o Rei dos Reis repousou sobre uma manjedoura?

... Como desistir, se Deus não virou as costas para nós, mas enviou-nos seu único filho?

... Como, passado o natal, voltar à velha vida, se Jesus é o Emanuel, o Deus eternamente conosco?

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Filemon, Igreja Primitiva, dinheiro... e nós

Escrevo quase imediatamente após o Júlio para não perder o embalo e as ideias.

Seguindo o raciocínio do Júlio, e acrescentando aquilo que disse anteriormente, é minha vez de perguntar: Por que nos escritos neotestamentários o dízimo é praticamente ausente? Por que, quando se fala em dinheiro, é no contexto de ofertas específicas para fins específicos e não como uma contribuição periódica?

A resposta se encontra, se não na totalidade, pelo menos em grande parte pela estrutura da Igreja Primitiva. Como ela existia a partir da estrutura da casa greco-romana, ela não precisa de quase nada para sua existência. Os pastores/presbíteros viviam de sua profissão. Não havia templo para ser custeado e nem funcionários para serem pagos. Os pobres eram cuidados por suas famílias.

As situações que exigiam ações financeiras específicas eram determinadas missões apostólicas ou missionárias, pobres sem famílias, ou pobres de outras igrejas como a de Jerusalém ajudada pelos crentes gentios. Talvez esqueça alguma coisa, mas nada muito além disso.

Interessante. Como a igreja dos primórdios cresceu mesmo pobre e sem dinheiro. E nós...

Concordo totalmente com o Júlio. E nós, protestantes históricos, não fiquemos apontando o dedo para práticas neopentecostais. Nós vivemos e nos estruturamos em torno do dinheiro.

Uma igreja, para ser organizada, precisa ter recursos, e isso significa, acima de tudo, ter condição para pagar seu pastor, pagar aluguel para ele, manter o templo etc. Observem que nenhum desses tópicos foi central para a Igreja Primitiva.

Gastamos muito do nosso tempo e dinheiro preocupados com reformar/construir/pintar nossos templos.

E o que é pior, muitas igrejas possuem investimentos para tempos piores. Não sei se há nada pior do que isso!!!

Sim, há algo pior do que isso. Uma igreja com dinheiro investido em aplicações convivendo, ao mesmo tempo, com pobres em seu meio que quase não tem dinheiro para comer, para vestir os filhos, para educá-los dignamente, para oferecer-lhes condições mínimas de saúde. Sem falar em lazer.

Parece que os ricos de nossos igrejas assim como seus presbíteros não se preocupam com isso. A preocupação é ver quanto foi arrecado no mês passado. Se a receita aumentou ou não e outras coisas irritantes.

Paro por aqui. O Júlio é o responsável por este desabafo. Mas é difícil viver com um igreja que se secularizou tanto e ao mesmo tempo radicaliza cada vez mais seu discurso conservador.

Que Deus nos ajude!

Estruturas e Insucesso Eclesial

O post do Leonel me deu uma deixa para entrar na discussão. Ele afirmou a importância da estrutura familar não-nuclear para o desenvolvimento do cristianismo primitivo, e a ausência de estrutura similar em nossos dias, que seria reponsável pelo insucesso do cristianismo. Não vou discutir com o que o Leonel nos apresentou. Darei um passo a mais na conversa.

Por que igrejas têm fracassado tão redondamente na vivência concreta do Evangelho especialmente nesta primeira década do século XXI? Porque suas estruturas institucionais são cópias descaradas das estruturas excludentes do sistema capitalista. As igrejas se tornaram em postos de arrecadação de fundos - fac-símiles de agências bancárias. Não para a benemerência, mas para a acumulação. Não para a partilha, mas para o lucro. Não para a missão, mas para legitimar a omissão. Os templos não são lugares de comunhão, mas de ajuntamento de invidíduos isolados em si mesmos - todos com os olhos voltados para o poderoso Messias que dirige a coisa que chamamos de culto.

Porque suas estruturas discursivas são arremedos do Evangelho. A boa-nova é tão misturada com a falsidade de Mamom que não se trata mais da mensagem da vida, e sim da mensagem da morte. Esse "evangelho" culpabiliza as vítimas e glorifica os vitimadores. Reduz a fé a uma espécie de obra meritória ou ao esforço sacrificial de dar seu dinheirinho para receber um dinheirão do papai do céu - afinal, não somos todos filhos do rei? Reduz a santidade à moral pequeno-burguesa de ser honesto, trabalhar duro, não fazer mal ao vizinho, não entrar em conflito com ninguém, especialmente com as impessoais estruturas de morte e seus representantes empresariais e pessoais. Reduz a missão à ilusão de "subir na vida" pelo próprio esforço, com Deus como alavanca e consolo em meio ao árduo trabalho de trilhar os caminhos de Mamom, o grande mágico que faz do "dinheiro na mão: solução", escondendo de todos que "dinheiro na mão é vendaval" (Paulinho da Viola "Pecado Capital", 1976).

Filemon e a estrutura eclesiológica do cristianismo primitivo

Se no post anterior discorri sobre os aspectos frágeis que envolviam o cristianismo nascente e que podem ser discernidos na pequena carta a Filemon, neste irei focar, por outro lado, um aspecto estrutural positivo desse cristianismo. Isso significa que os primeiros cristãos viviam em uma espécie de dialética existencial, se equilibrando entre elementos sensíveis e frágeis, por um lado, e usufruindo de estruturas estáveis, por outro.

Abordo a organização eclesiológica do cristianismo daqueles tempos. Não em termos de dons, funções, teologia etc. Mas de um ponto de vista mais concreto: a existência e vivência real dos grupos cristãos. Para isso, tomo especificamente o papel de Filemon como exemplo.

Inicialmente, alguns dados: Filemon é um colaborador de Paulo (v. 1); recebe uma igreja em sua casa (v. 2); tem reanimado o coração dos santos (v. 7); deverá hospedar Paulo no futuro e deveria receber com frequência outros pregadores itinerantes (v. 22).

Essas informações permitem concluir com uma boa dose de certeza que ele era o responsável, o líder da igreja doméstica em sua casa. Ele seria, então, o pastor dessa comunidade. Ou, para usar o termo neotestamentário, o presbítero dela.

E aqui abordo a questão estrutural. O cristianismo primitivo herdou a estrutura das famílias grego-romanas e hebraicas. Era costume do apóstolo Paulo se hospedar em casas e geralmente seus membros eram convertidos (At 16.15, 33; 18.8). São comuns também as citações a igrejas domésticas em seus escritos (Rm 16.5 [os "irmãos que se reúnem com eles" também diz respeito às igrejas domésticas - Rm 16.14, 15], Cl 4.15).

É necessário dizer primeiramente que essas famílias eram diferentes de nossa família nuclear organizada a partir de pai-mãe-filhos. Elas eram constituídas pelo páter-família, o chefe e responsável; pela esposa e filhos; por escravos; por parentes; e por amigos. Em geral essa família possuía um comércio que funcionava na própria casa, que era grande e comportava entre 40 a 60 pessoas.

O que me ajuda entender esse tipo de família são a famílias de coronéis do ciclo do café paulista do sec. XIX e início do XX. A estrutura era semelhante. Tanto nesta quanto na família greco-romana os parentes e amigos poderiam participar do negócio da família ou então serem prestadores de serviço em troca de acolhimento e proteção.

Isso significa que esse tipo de família não funcionava unicamente a partir de laços de sangue, mas de relações sociais e econômicas que traziam estabilidade e segurança ao grupo.

O cristianismo, como disse, assumiu essa estrutura e isso foi muito importante. Vejam como as figuras de páter-família e presbítero são praticamente idênticas em 1 Tm 3.1-7 (ali "bispo" é sinônimo de "presbítero", como ocorre em Tt 1.1-7). O governo e liderança familiar são centrais, também o testemunho da sociedade é fundamental. Notem como se dá a relação no v. 5: o presbítero precisa saber governar sua casa para poder governar a igreja de Deus. Por quê? Simplesmente por que a casa se torna a igreja!

Por isso mesmo o relacionamento de Timóteo com os crentes deve ser aquele das relações familiares (1 Tm 5.1-2), e as orientações familiares visam todos: maridos, mulheres, filhos e escravos. Por quê? Por que essas relações se estruturam dentro da família/igreja e elas podem definir o sucesso ou insucesso de ambas.

Como fiz referência anteriormente, quando o páter-famílias se convertia todos os membros da casa o seguiam: esposa, filhos, parentes, amigos e escravos. Toda a estrutura da casa era afetada. No entanto, havia casos raros em que alguém não adotava a religião da casa, ou então, um membro de uma casa não cristã se tornava cristão. Isso gerava tensões, como pode ser visto em 1 Pe 2.18-19; 3.1.

Bem, voltemos a Filemon. Provavelmente ele era o presbítero/pastor da igreja doméstica de sua casa (embora o título não seja usado para ele, possivelmente pelo fato de que Paulo não queria enfatizar esse aspecto). Onésimo, exceção à regra, não aderiu à fé e, o que é pior, fugiu. O que fazer?

A questão não era apenas de relacionamento entre senhor - escravo. Era entre um líder cristão e alguém que estava submetido à estrutura dirigada por ele. A decisão de Filemon, castigar o escravo fugido ou perdoá-lo e recebê-lo como irmão em Cristo afetaria todo o grupo familiar/cristão reunido em sua casa. Afinal, se houvesse outros escravos, como eles reagiriam? Como os outros membros da casa julgariam a atitude de Filemon?

Nesse caso, a estrutura da igreja doméstica era muito importante. Qualquer que fosse a decisão de Filemon, provavelmente ela não seria questionada, nem pelo apóstolo Paulo. Ele possuía o direito espiritual que provinha de uma estrutura já estabelecida e central para toda a sociedade. Nesse caso, posso dizer mesmo que a autoridade espiritual derivava e tinha como suporte a autoridade familiar e social.

Essa estrutura foi responsável pelo desenvolvimento do cristianismo. Ela proveu estruturas para os cristãos, segurança para pregadores e apóstolos itinerantes, e mesmo respeito social diante de outras famílias.

Penso em nós hoje e acho que a inexistência de tal estrutura (e julgo ser impossível resgatá-la) é um dos pontos responsáveis por insucessos da igreja.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Filemon e as estruturas frágeis do cristianismo

Como disse na mensagem anterior, a carta a Filemon, por constar como último escrito de Paulo, ocupa igual papel de importância. Afinal, pensariam os responsáveis pelo fechamento do cânon cristão: " - o que teria um texto de cunho pessoal a dizer dentro da Escritura Sagrada?"

Tem, e muito a dizer. Não em uma perspectiva teológica abstrata, ocupada em determinar e descobrir o que passa pela mente de Deus e quais suas ordenanças para os seres humanos. Tem a dizer quando pensamos o cristianismo como um grupo de seguidores de Jesus que vivem historicamente em tensão dialética com a sociedade e consigo mesmo, como indivíduos e como um grupo com identidade própria.

É nesse contexto que vale a pena analisar Filemon. O Júlio seguiu um caminho: a relação pessoal - institucional. Eu tomo outra trilha. A das relações frágeis do cristianismo apresentadas na carta.

E aqui há um dado importante, que é reconhecer como o social é incorporado no literário. Em outras palavras, como os dados de contexto e determinação histórica e social são inseridos e, portanto, manipulados, retrabalhados no texto que lemos, propondo, a partir daí, outra realidade social.

Vejam o termo "prisioneiro". Paulo utiliza-o para referir-se a si mesmo como "prisioneiro de Cristo" (v.1 e 9), embora ele seja, de fato, prisioneiro do império romano. O termo é usado também em relação a Epafras, "prisioneiro comigo" (v. 23). Em que sentido? Prisioneiro em Cristo como Paulo? Ou prisioneiro do império, assim como Paulo? Nesse campo semântico podemos mencionar "escravo" (v. 16), atribuído a Onésimo em sentido concreto.

Mas o "prisioneiro" Paulo pode ter um "servo" (v. 13), referindo-se à gratidão da qual Filemon lhe é devedor, mas que é vivenciada por Onésimo, pelo menos por um tempo. Paulo, prisioneiro, sente "liberdade" para "ordenar" algo a Filemon. Ao mesmo tempo, o "escravo" Onésimo deve ser recebido por seu senhor como "irmão caríssimo" (v. 16).

As referências acima demonstram como os elementos concretos são retrabalhados por Paulo gerando, por vezes, novos sentidos, e às vezes sentidos ambíguos. O que determina essas escolhas? A visão "teológica" que coloca todos em um mesmo nível, como cristãos e, ao mesmo tempo, apresenta escala de valores, sendo Paulo, apóstolo, alguém com autoridade sobre outros cristãos.

Essas relações teológicas, no entanto, não são fixas, determinantes. Elas também assumem aspectos dinâmicos e tensos. O apóstolo espera "obediência" de Filemon ao receber novamente Onésimo. Mas ele "espera". Não pode exigir. Filemon ainda detém o poder supremo sobre seu escravo a partir das leis romanas. Cabe a ele decidir se abrirá mão de seu direito ou não. Mesmo o apelo a Filemon para que lembre que deve serviço de gratidão a Paulo é apenas um "apelo", sem força de ordenança.

Portanto, a carta releva que o cristianismo opera a partir dos elementos contextuais em que vive, sejam eles concretos ou simbólicos. Sobre ou ao lado deles, constrói uma visão própria de mundo que, para existir e funcionar, "depende" da adesão dos seguidores. Por isso mesmo, o cristianismo se constrói a partir de "estruturas frágeis" que não podem ser negadas.

Isso é muito importante em tempos em que o denominacionalismo, com suas doutrinas, definições e cargos tem se tornado mais importante do que o cristianismo; em tempos em que profetas, apóstolos e sei lá mais o quê tem se dado o direito de dirigir vidas de pessoas e determinar o que devem fazer ou não. Tudo isso é uma negação do caráter frágil do caminho de Jesus em que somos chamados a seguir.

Por isso mesmo é necessário fé, tolerância, humildade e amor. De todos para com todos. Quando essas características cristãs são abandonadas, surge a sombra negra e tenebrosa das instituições religiosas a oprimirem os cristãos e a sociedade.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Filemon - pessoal versus institucional

Gosto de ler essa pequena cartinha - um bilhete - sob a ótica da polêmica pessoal versus institucional. Isto tem a ver com minha biografia cristã. Em minha conversão, tornei-me membro de uma igreja evangélica cuja ideologia era basicamente a "mude a pessoa que a sociedade muda junto". Uma ideologia confusa - que confundia o pessoal e o institucional, subordinando este àquele. Depois, ao longo da minha trajetória no cristianismo, fui ficando ecumênico e "latino-americano", descobrindo uma nova ideologia: "não basta mudar a pessoa, é preciso transformar a sociedade". Então, o institucional subordinava o pessoal. Posições opostas, mas dentro do mesmo binarismo. Dois fracassos.

Agora estou aprendendo - tenho certeza que uma alternativa àquelas ideologias é possível, mas não posso descrevê-la contundementemente - um outro jeito de pensar e viver a fé cristã na sociedade globalizada. Pessoal e institucional se sobredeterminam o tempo todo, um tentando incorporar e assimilar o outro à sua lógica. Não conseguem, por isso sempre se posicionam contra, um é o verso-reverso-anverso do outro.

Volto ao bilhete paulino. A polêmica é simultaneamente institucional e pessoal. Paulo, na cadeia, escravo do Império, escreve um bilhetinho ao dono de um escravo fugido - Filemon, carcereiro existencial de Onésimo (útil), inútil servidor. Reconhece o direito do proprietário. A instituição da escravidão não é condenada, não é denunciada, não é demonizada. Apenas é reconhecida como um dado, como elemento da facticidade social no império. Paulo brinca, joga com a facticidade. O vocabulário do bilhete flutua o tempo todo entre o pedir e o ordenar, entre o pessoal e o institucional. Não se trata de negar o institucional pelo pessoal.

É diferente. Trata-se de pensar o institucional a partir do pessoal (e vice-versa). A questão é a dos limites. Paulo pede a Filemon que faça o bem. O bem não pode ser imposto, não pode ser institucionalizado. Bondade é ação pessoal, é paixão humana. Instituições são impessoais, desumanas, apesar de feitas e dirigidas por seres humanos - demasiadamente humanos, brincando com Nietzsche. O pessoal não pode invadir o institucional e vice-versa. Por isso, Paulo pede, suplica, roga, apela ao coração de Filemon. Assim, estabelece limites: quando lidamos com pessoas, sempre temos de tratá-las de modo pessoal, nunca institucional.

A instituição dá a Onésimo uma identidade: escravo. Paulo oferece outra: irmão. O contrato social despersonaliza e desumaniza ao tentar humanizar. A aliança divina personaliza e humaniza ao dizer à instituição: fique dentro de seus limites - não use as pessoas, não as abuse, não faça delas escravas. Mas a instituição, embora despersonalizadora, não é demonizada. Eu diria, tem um lugar (lugarzinho????). Pois em um mundo marcado pelo pecado, é preciso também despersonalizar e institucionalizar os mecanismos de sujeição, de dominação, de opressão, de exclusão. Senão, teríamos de ser bonzinhos com as instituições dominadoras. Mas, instituições não são pessoas. Têm de ser tratadas institucionalmente, e não pessoalmente. Que a escravidão permaneça enquanto instituição. Que a irmandade permaneça como modo de ser e de viver em conjunto.

Pessoas são seres vivos, cujo direito à vida é insuperável. Instituições não. Elas não são seres, são coisas, efeitos de ações e relações. Assim, podem morrer. Melhor, devem morrer. E morrem!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Relações literárias, teológicas e sociais em Filemon

Proponho um novo texto para discussão.

Neste caso, opto pela pequenina carta do apóstolo Paulo a Filemon, última de suas cartas no cânon cristão.

Cabe lembrar aqui seu espaço canônico. As cartas paulinas estão divididas, certamente por um critério de importância implícito, em dois grandes grupos: cartas para comunidades e cartas pessoais. Aquele começa com Romanos e termina com 2 Tessalonicenses. O grupo das pessoais inicia com 1 Timóteo e termina com Filemon.

As cartas às igrejas são mais importantes do que aquelas a indivíduos. E, entre estas, a de Filemon ocupa o último lugar.

Talvez sua desimportância tenha motivos razoáveis. Talvez não. O fato é que é um texto muito interessante para ser analisado a partir de diversos ângulos. Aqui proponho alguns deles.

O literário, ligado à estrutura das cartas greco-romanas.

O teológico, vinculado à discussão a respeito da relação do apóstolo com seus discípulos e amigos, e de seu caráter bivalente como "prisioneiro".

O social, que engloba o papel de Paulo dentro do cristianismo, e, principalmente, sua relação com outro cristão, Filemon, a partir do escravo fugitivo e agora tornado cristão, Onésimo. Reside aqui o principal e mais interessante assunto desta cartinha.

Como o cristianismo, com uma mensagem libertadora, se movia entre os grilhões da escravidão tão comum naqueles tempos? Como o cristianismo geria as tensões internas entre senhores e escravos? E muitas outras perguntas.

Como podem ver, esta primeira mensagem é meramente provocadora. O objetivo é propor um diálogo.

sábado, 23 de outubro de 2010

Cantares. Amor público ou privado?

O texto que temos discutido, assim como o livro que o contém devem, necessariamente, despertar uma série de questionamentos de nossa parte, como cristãos do século XXI.

Obviamente elas se inserem, antes mesmo de aspectos técnicos de interpretação, como a exegese do texto hebraico, em uma história da leitura e da interpretação do livro. Essa faceta já foi abordada, mas aproveito para destacar apenas um aspecto. O fato de que toda leitura é uma releitura, é uma apropriação que gera sentidos a partir do encontro de um texto imutável com leitores mutáveis, muito mutáveis. Já discutimos isso no blog.

É esse fato epistemológico que deve nortear não apenas as análises acadêmicas, mas também nossa postura como leitores em busca de fruição e de orientação (norma, segundo o Júlio) em Cantares. Quero dizer que precisamos ter consciência de que quando interpretamos o livro como um libelo ao amor, como uma proclamação de seu poder, essa interpretação só é possível pelo contexto em que vivemos hoje.

Certamente a 80 anos ela seria, se não impossível, pelo menos muito rara. No contexto de casamentos tratados como negócios que visavam a manutenção do poder de dinastias e relações políticas entre famílias, o olhar para Cantares seria outro.

Dentro desse contexto quero entrar no tema de meu post. A revolução sexual dos anos 60 trouxe a discussão e liberação sexual, exemplificadas na descoberta da pílula anticoncepcional. O interessante é que, na contramão, a igreja passou a tratar o sexo quase que exclusivamente como algo privado. Isto é, não era assunto para ser abordado em público. No Brasil, o tema vinha à tona apenas quando se tinha que disciplinar meninas pegas com "barriga grande".

Amor: público ou privado? Essa é a dúvida agônica pela qual a igreja evangélica passa atualmente. Pode-se dizer que a igreja tem tratado do assunto com seus membros mediante classes e encontros de casais. Bem, fora as raras exceções, os temas são os de sempre, e geralmente não atingem os problemas que deveriam. Se não, por que entre os evangélicos continua a aumentar o número de divórcios? E muito provavelmente outros problemas, como o aborto não são tão raros?

O amor e o sexo são tratados publicamente quase como uma brincadeira. Fala-se aquilo que todos sabem, aquilo que é pasteurizado e que não chocará ninguém e não trará denúncias de líderes moralistas, que dirão que seus pastores e lideranças estão falando de obcenidades. Enquanto isso, suas famílias, suas filhas...

O amor, e, principalmente o sexo, são temas públicos na sociedade. Mas de forma banalizada. O Júlio abordou essa questão em seu último post. As sacanagens são exaltadas, as piadas picantes são constantes, e a pureza das meninas do interior é execrada. Além do sexo ser visto como uma fonte imensa de renda através da mídia que nos traz filmes, propagandas, livros etc, etc, etc.

E nós? O amor e o sexto continuam no privado. E, nesse caso, somos parecidos com a sociedade. Há sacanagem e há moralismo. Desculpem a rudeza.

Mas é mais do que hora de trazermos nossas questões à tona. De termos a coragem evangélica (que vem do envangelho) de falarmos a verdade, para que A Verdade, Jesus Cristo, nos liberte de nossos temores, fraquezas e mesmo vícios.

Somos nós, em tese, que temos condições de discutir e praticar o amor/sexo de forma bonita, prazerosa, santa. Se não recuperarmos esse privilégio, continuaremos sendo uma fraca e triste imagem, seremos com o Quixote, "Cavaleiros da Triste Figura", em um mundo semelhante a nós: escuro, triste e doente.

Talvez, contrariando um pouco a proposta de Cantares, seja hora de "despertarmos o amor". Isso é arriscado. Mas é a comunidade de Jesus Cristo, habitada pelo Espírito Santo, que deve assumir esse risco.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Cantares: "regra de fé e prática"

O título deste post é, certamente, provocativo. Talvez até abusivo. Mas não o trocarei.

Por quê?

Porque quando a Bíblia diz pra gente que amar é bom, que gozar é bom, que viver é bom - ela tem de ser mesmo a regra da fé e a regra da prática. O problema é que a gente escolhe mal os textos que servirão de regra ...

Mas há outro problema também. A metáfora da "regra" é muito restritiva, excessivamente diretiva. Como usá-la? Desconstrutivamente. Imaginando uma regra que não seja regra, a regra-não-regrada-nem-regradora da fé e da prática. Uma regra-desregrada, diferida derrideanamente - entendida como mera e pálida lei que sonha em ser justiça.

Cantares é regra nesse sentido desconstruído. O amor é para ser praticado segundo a regra - a regra de não-ter-regra, a regra de se deixar surpreender e conduzir pelo amor que está aquém da regra, sob a regra, anterior à regra. O amor cuja regra-desregrada é I Coríntios 13 - tudo pode, tudo espera, tudo crê, tudo suporta ...

Uma regra que desregra as técnicas e as performances "sexuais" dos especialistas em transa, sexo, orgasmo & Cia. Ltda. Uma regra que desregra as interdições, tabus e mandamentos dos especialistas, pseudo-derrideanos, em diferir (sic!) a prática do ato sexual e aprisioná-la ao sagrado-matrimônio-legitimado-pelo-cartório-não-tão-sagrado-assim.

Ou, como poderia ter dito Paulo, "contra estas coisas, não há regra!"

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Quando o amor é o centro...

Belíssimo e dificílimo o texto escolhido pelo Júlio.

Acho que todos sabemos das dificuldades a respeito da canonização de Cantares e de como ele foi recebido a partir de uma leitura alegórica - judeus: Deus e Israel; cristãos - Cristo e a Igreja, que visava desviar o desconforto sentido diante de um livro bíblico que fala sobre amor/sexo.

Há, também, homéricas discussões a respeito da estrutura de Cantares. Temos dois personagens: Salomão e a Sulamita; ou três: Salomão, a Sulamita, e o pastor, sua paixão? Neste segundo caso, Salomão é o vilão que deseja roubar a moça e levá-la para seu harém.

Mas essa leitura pressupõe um enredo bem elaborado. No entanto, outros intérpretes vêem o livro como uma coleção de canções de amor sem maiores nexos.

Portanto, a questão interpretativa é séria e complexa. O que me parece é que não é possível manter a intepretação alegória, seja judaica ou cristã. Desta última entendemos, pelo menos na prática. O viés moralista e puritano de muitos se escandaliza com um texto que fala de amor. Amor, paixão, e nada mais.

Isso é claro. Afinal, em um contexto onde tudo é visto como serviço a Deus e do ponto de vista de uma missão a ser cumprida, onde a própria família tem como "tarefa e missão" propagar o conhecimento de Deus, como fica esse negócio de amor, ou pior, de sexo? E mesmo explícito.

Acho esse livro fantástico por isso mesmo. Ele não opera a partir de uma ótica missiológica ou de uma ética de serviço a Deus. Há aqui uma inversão. O tema é o amor. Desejado, correspondido, não correspondido. Amor carnal, desejo, e outros termos mais quentes...

Muitos se constrangem com isso. E têm uma vida conjugal, sexual, de intimidade detonada. Nessas questãos, o moralismo não adianta nada.

Acho que por isso mesmo o texto escolhido pelo Júlio apresenta uma expressão: "Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, que não acordeis, nem desperteis o amor, até que este o queira" (8.4), que é meio inigmática, mas que é, ao mesmo tempo, importante, pois se repete em 2.7 e em 3.5.

O amor é fogo e forte como a morte (8.6). O que fazer? Bem, a tradição puritana e moralista tem tentado aplacá-lo com leis e regras. Sem sucesso.

Mais importante do que isso é humildemente ter ciência do seu poder. O poder que faz com que a moça anseie por beijar seu amado, mesmo na rua, e por isso deseja que ele seja seu irmão, única possibilidade de duas pessoas se beijarem em público no antigo Israel. Ela deseja levá-lo para a casa da mãe, deseja um canto para fazer sexo com ele. É isso!

Ela é uma mulher tomada pelo amor, pelo desejo. Isso é errado? Talvez para alguns. Mas, para o livro, é uma realidade. É o amor e o desejo como centro da vida. Isso é errado na ótica cristã? Talvez. Mas é um fato vivido por muitos de nós. E aí compreendemos o que se diz no livro: há tempo certo para despertar o amor. Uma vez desperto, ele é um poder incontrolado.

Isso pode fazer mal? Pode, claro. Mas pode fazer bem, muito bem. Ao coração e ao corpo.

Precisamos ler Cantares. Sem amarras, com coragem, sem medo ou vergonha. Redescobrir os prazeres e a sacralidade do amor.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Amor e Opróbrio - Cantares (7,13-) 8,1-4

"(7,13) As mandrágoras exalam perfume, e às nossas portas há toda sorte de excelentes frutos, novos e velhos; eu os guardei para ti, ó meu amado. Oxalá fosses como meu irmão, que mamou os seios de minha mãe! quando eu te encontrasse lá fora, eu te beijaria e não me desprezariam! Eu te levaria e te introduziria na casa de minha mãe, e tu me instruirias; eu te daria a beber vinho aromático, o mosto das minhas romãs. A sua mão esquerda em minha nuca, e a sua direita me abraçaria. Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, que não acordeis nem desperteis o amor, até que ele o deseje."

Uma introdução contextualizante. Após algumas semanas de impedimentos não-desejados, retomamos as nossas conversas com um pequeno texto que também trata, dentre outras questões, de impedimentos.

1. Delimitando a perícope. Comecei em 7,13 (7,14 no TM) e terminei em 8,4. Decisão arbitrária, embora não solitária. Boas razões também nos levariam a delimitar a perícope em 8,1-3. Preferi 7,13-8,4 que me parece oferecer uma palavra poética completa. Os verbos no perfeito de 7,13 são complementados pelos verbos no imperfeito de 8,1 (o caminho da realidade para o desejado). O amor impedido nos versos 1-3 clama por sua autonomia no verso 4.

2. Notinhas semióticas greimasianas. Do ponto de vista da narratividade, temos um sujeito buscando entrar em conjunção com o objeto de seu desejo (seu amado). Um anti-sujeito se interpõe no programa de busca e oferece impedimentos, interditando a conjunção. O anti-sujeito tem a seu favor o contrato de veridicção matrimonial na sociedade vétero-israelita. O sujeito da busca questiona esse contrato matrimonial, propondo uma alternativa - o contrato de veridicção da afetividade.

3. Mais notinhas. Do ponto de vista da discursividade. A tensão narrativa é espacializada: a amante (o sujeito abstrato da narratividade é discursivizado como mulher) busca a união com o amado no movimento "para dentro da casa" - começa o encontro amoroso "na rua" e o consuma "em casa". Afinal de contas, é "em casa" que se pode encontrar em estado "terminado" o ambiente amoroso: dentro de casa estão guardadas as frutas, as bebidas, o leito, etc. Na rua o ambiente amoroso está em estado de incoatividade. É lugar de mandrágoras (7,13) fruto cujo cheiro se dizia ser afrodisíaco. É lugar de comércio, com aromas, cores, sabores às portas, convidando, seduzindo ...

4. O impedimento. O contrato de veridicção (pertence ao nível narrativo) matrimonial é o que impede a conjunção de amante-amado. A casa não é espaço privado (como na cultrua brasileira descrita por DaMatta) - a casa é espaço da família e a família é simultaneamente pública e privada, mais pública do que privada. A mulher não pode levar seu amado para casa, pois a casa é "paterna" - precisa do consentimento, mais, precisa do contrato matrimonial - "deixará o homem seu pai e sua mãe...". O amor, experimentado pela amante como força autônoma, está institucionalizado: há de se casar para poder amar. Moralismo? Não creio. Subjugação do amor à sobrevivência econômica. Casar não é mero juntar trapos, mas garantir herança para os mais jovens, futuro para a família, sobrevida aos velhos. O amor, porém, não se submete ao contrato econômico-social. É outro tipo de contrato, é como a relação com o irmão: afeto, fusão no corpo da mãe. Alguns comentaristas que li falaram de um desejo pervertido da amante pelo irmão de sangue! Não entenderam nada. Trata-se de outro contrato: a legitimidade no próprio afeto, no próprio corpo, no próprio desejo.

5. O amor. Sobre amor é melhor falar pouco. Amor é frágil fortaleza. Desejo. Semioticamente falando, desejo é virtual, é busca da realização; mas ainda não realizado. Escatológico, diríamos em linguagem teológica da história da salvação - já inaugurado, mas não consumado. Amor é virtualidade corpórea - corpos, braços, abraços, beijos. Amor é virtualidade pedagógica - o amado instrui a amada - enquanto esta seduz o amado, o dirige, o guia para dentro da casa. Amor é virtualidade erótica, enebriante, intoxicante, vinhos e romãs, mandrágoras e rosas. Como cantou a dama do rock paulistano: "amor é divino, sexo é animal; amor é bossa nova, sexo é carnaval".

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Ausências e novidades

Faz algum tempo que não postamos mensagens.

Justificamos a ausência, de certo modo, em função das atividades de cada um de nós. Compromissos/aulas/produção de textos que chegam como grandes ondas e quase nos afogam.

Por outro lado, a falta de mensagens traz, em contrapartida, uma boa notícia. Estamos organizando os posts do blog para serem editados em formato de livro. As negociações estão praticamente certas.

Estamos muito contentes com essa possibilidade. Afinal, temos tido enorme prazer com a experiência de desenvolver juntos este blog e o fato de podermos levar nossas mensagens para outro suporte nos anima.

Manteremos o formato blog no livro, apenas retirando os comentários por questões de direitos autorais. Quando tivermos mais detalhes noticiaremos.

Outra notícia é que estamos estudando iniciar um novo ciclo no blog com um formato diferenciado de interação. Quando estiver definido, avisamos vocês.

É isso. Com o pedido de desculpas seguem as boas notícias que têm nos motivado a continuar com a "Bíblia sob três olhares".

terça-feira, 31 de agosto de 2010

O mito dá o que falar


"Mito, fantasia e ficção são os motores da vida humana..." (Júlio Zabatiero)

"A compreensão da mitologia equivale a um recordar" (Iuri Lotman)

Muito rico o embate entre a visão de Leonel (crítico literário) e do Júlio (semiólogo). Não sei onde me posicionar. Gosto de Frye porque ele resgata a linguagem mítica e a devolve ao seu devido lugar na cultura ocidental. E neste lugar reconhece um papel de destaque para a Bíblia. Mas não li ainda o seu Anatomy of Criticism onde ele fundamenta sua leitura do mito e das fases evolutivas da linguagem (e da literatura). Não creio que ele tenha compartilhado da visão ingênua (para hoje, não no seu tempo) de Vico. Em todo o caso, concordando com o Júlio, rejeito o evolucionismo. A linguagem humana é constituída de muitas camadas sobrepostas, concomitantes. O mito é a mais profunda delas. E não é a abelhuda da ciência que vem a desbancar a velha e arrogante senhora. Por outro lado, apesar de gostar de semiótica, em especial da semiótica da cultura (Lotman, Uspensky), tenho a impressão de que mito não é a verdadeira praia deles. O livro de Roland Barthes, Mitologias, por exemplo, é mais uma crítica da ideologia na sociedade burguesa que uma análise da constituição e funções da linguagem mítica.

Meu momento atual em relação ao mito é de buscar novos caminhos. Minha formação em teoria de mito é alicerçada em Eliade e Campbell. Rendo tributo aos meus mestres e seguirei indicando sua leitura. Também me impressionou o famoso artigo de Lévi-Strauss: A Estrutura dos Mitos. Mas ele me deixa frustrado pelo fato dele analisar basicamente o seu elemento paradigmático. E mito é narrativa, antes de tudo narrativa, talvez relacionada a um rito. Bem, aqui temos mais um vespeiro. São ambos relacionados? Qual deles tem prioridade lógica e cronológica? Se se relacionam dialeticamente, como isso acontece? Muitos vespeiros...

Como já devo estar aborrecendo os leitores deste blog, que deveria - supostamente - lidar com a Bíblia, farei uma lista de questões que me ocupam a respeito do mito e do roteiro de leituras que tenho seguido.

a) Dei-me conta muito recentemente de que não entendo de mito ao ler duas obras primas de Roberto Calasso: "Ka" e "As núpcias de Cadmo e Harmonia". No primeiro ele narra os mitos da índia clássica, no segundo nos presenteia com uma bela leitura dos mitos gregos. Para ele os mitos só podem ser narrados. Mas na sua narrativa segunda dos mitos ele faz emergir sutilezas, temas recorrentes, variantes desprezadas mas fundamentais, a poesia e os temas ancestrais. 

b) Além do prazer estético com que os mitos nos presenteiam, para nós, teólogos e estudiosos de religião, é uma linguagem fundamental, anterior e mais poderosa que os dogmas, formadora de estruturas imaginárias da sociedade. Ou seja, quem quer estudar religião e seu papel na sociedade tem que estudar os mitos, uma vez que estão nas camadas mais profundas e duradouras de sua cultura e em estrutura psíquica. As ciências da religião começaram no século XIX como uma descoberta e elucidação de crenças e superstições de povos exóticos, mas de interesse por serem colonizados (Max Müller, Frazer e Tylor). Mas curiosamente o tema foi relativamente deixado de lado pelas ciências da religião, voltada, no Brasil, em especial, mais para estudos sociológicos. Quem hoje em dia trabalha com o mito, mantendo a vivacidade de seu estudo, são teóricos da linguagem e historiadores (entre eles os historiadores da religião). Sobre o papel que a mitologia pode ter para os estudos de história deixo como exemplo as obras de Hilário Franco Júnio, A Eva Barbada e Os Três Dedos de Adão, ambas com o sub-título "Ensaios de Mitologia Medieval". 

c) O mito não pertence apenas ao passado. Ele é uma força presente na cultura, que se faz novamente presente em novas narrativas. Quando lemos alguns autores (Kafka, Proust, Joyce, Tolstoi, Dostoievski, Saramago, Guimarães Rosa, Borges, Sábato, entre tantos e tantos outros) sentimos um arrepio que só pode vir do mito. Eles não refletem apenas e profundamente o seu tempo, mas há algo de mapeamento de mundo, de explicação da condição humana, de constatação do demoníaco no mundo, de forças antagonistas de criação e de caos, de reflexão sobre a invencibilidade da morte, de esperanças frágeis e teimosas. Para tentar entender esta estranha continuidade recorri a Eleazar Meletinski (da escola de semiótica Iuri Lotman. um curto circuito!?). Para ele o mito não importa apenas por seu aspecto de narração arcaica,  mas também como força mitopoética, mito-criadora. Desde este ponto de vista o mito está mais vivo do que nunca, em especial na arte. Mas... e na religião?


d) Na religião o mito foi colocado de castigo no cantinho ("tu no teu cantinho e eu no meu..."). Afinal quem envergonharia mais a religião no momento histórico (da modernidade) em que a burguesia quer expressar o evangelho com valores, com visão de mundo positiva e moderna? Os currículos teológicos sistematicamente desprezam a mitologia e a teoria do mito. Me lembro que no seminário estudei lógica formal (hoje estudaria o método ver-julgar-agir), ou seja, "coisas claras e distintas", adjetivos estes que nunca se aplicam ao mito. O lado demoníaco, caótico e nebuloso do cosmo e da existência humana são sistematicamente ocultados. O incosciente se estuda em aulas de teologia prática, mas não como conceito fundamental para entender a cultura. Gilbert Durand então, nem se menciona. Somos pobres bultmanianos dos trópicos.


e) Voltemos à Bíblia (pobre, esquecida neste blog!). Fazemos uma leitura absolutamente ingênua e adocicada da mesma. Cremos que nela encontramos imagens solares, guias certeiros para a vida, valores morais, rotas para a felicidade. Mas o que descobriríamos se exercitássemos uma leitura que permita revelar nas suas narrativas fundamentais tensões irreconciliáveis do cosmo e da existência humana? E se a Bíblia for um grande e complexo código de relações traumatizantes dos homens com sua divindade? Calasso nos ensina que a religião grega é formal e centrada nos rituais uma vez que é perigoso demais estar próximos aos deuses, fonte de todo o poder. Javé seria menos selvagem e perigoso? 

f) Deixemos a Bíblia. Uma negligência de todos nós na área de humanas: Acreditamos que as palavras habitam algum lugar por aí, fora de nossos corpos. Estudamos os diferentes sistemas da linguagem desprezando pesquisas que há mais de 20 anos nos mostram que a linguagem (e o mito, portanto) são funções do corpo. Nossa cognição do mundo se dá por esquemas metafóricos originados em nossas experiências corporais básicas. E há outros autores que vão mais longe, que mostram que nossas mentes são literárias, que criam projeções parabólicas e campos de mistura conceitual. Na metáfora está a origem. Isto não teria nada a dizer sobre a origem da religião e da sua linguagem por excelência, o mito?

Há outros autores na lista: Jean-Pierre Vernant, Marcel Detienne, G. S. Kirk, Eric Csapo, Jonathan Smith, Borges. Mas sobre eles comentaremos em outra ocasião.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Compartilhando óculos, lentes, saberes ...

Respondo à resposta do Leonel à minha resposta à sua resposta ..........

1. De fato, para um tema tão instigante como o do mito, há uma variedade de opções teóricas interessantes e legítimas. Um ponto em que concordamos (os três blogueiros) é o da superação do racionalismo positivista na maneira de avaliar a veracidade do mito. Nesse sentido, faço coro à fala do Leonel sobre o efeito negativo da proposta bultmanniana do mito na discussão teológica;

2. Havia terminado meu último post indicando que uma visão epistêmica do mito não impede que outras visões (também parciais) apresentem suas definições, o que Leonel nos ajudou com sua apresentação da noção de mito em Aristóteles. De fato, a polêmica com relação ao mito na exegese não se dá contra a "literatura", mas contra o racionalismo, ou positivismo, ou qualquer outro ismo que reduza o valor de verdade de outros modos humanos de produzir saber, atribuindo somente à "ciência" o acesso e o domínio da verdade e da validade (dando nome aos bois - a exegese histórico-crítica e a histórico-gramatical);

3. Estou tentando terminar a reescrita do um pequeno livro sobre história cultural de Israel nos tempos bíblicos. Nesse livro lido o tempo todo com a problemática da verdade, pois os fundamentalismos dominam o campo. Por um lado, os fundamentalismos de cunho religioso (judaico ou cristão) que enxergam nos relatos bíblicos descrições "positivistas" de fatos = "se está escrito assim, aconteceu exatamente dessa maneira". Por outro lado, temos os fundamentalistas historicistas que, de antemão, enxergam nos relatos bíblicos descrições míticas de fatos, ou seja = "está escrito assim, então só pode ter acontecido de outro jeito". As Escrituras judaicas não podem ser lidas desse jeito, mesmo quando desejamos reconstruir a história antiga do povo judeu - é preciso muita sutileza hermenêutica e histórica para, do "mito" chegar à "história cientificamente reconstruída";

4. Terminando. Não me sinto capaz de oferecer uma definição de mito. Acho melhor destacar algumas características que ressaltam à luz das discussões acadêmicas sobre o tema: (1) mito é uma forma de construção de saber sobre a vida humana no mundo, cuja veracidade e validade estão subordinadas aos critérios de validação intercultural e intersubjetiva; (2) mito é uma forma de comunicação que, além da qualidade estética e preferência pela forma narrativa, visa constituir identidades, projetos de vida, legitimar modos de exercício de poder, etc., de modo que sua validade não pode ser estabelecida apenas no campo isolado do jogo de linguagem mítico; (3) mito é uma forma de produzir saber que compete com as chamadas formas "modernas" de produção de saber verdadeiro, mas, simultaneamente, está inserida nessas formas modernas de produzir saber, por vezes até estruturando o modo científico ou racional supostamente verdadeiro em oposição ao modo mítico não-verdadeiro; (4) mitos exigem sensibilidade hermenêutica, que começa no "princípio de caridade" (D. Davidson, filósofo da linguagem, define o PC como a 'aceitação da racionalidade da enunciação do outro', independentemente de aceitarmos a validade ou veracidade de seu conteúdo), passa pela crítica e pelo conflito de interpretações, e chega à recriação de textos, saberes, jeitos de viver.

Mitos nos fazem viver a vida. Nem todos os mitos, porém, valem a pena...

sábado, 28 de agosto de 2010

Óculos devolvidos... volto para o Mito e a literatura

Bem, devolvo os óculos para o Júlio. De fato, eles ficam melhor nele do que em mim. Afinal, não sou linguista e em questões ligadas à história da linguagem sou pouco mais que um leigo.

Mas acho que o diálogo que travamos a partir de alguns autores foi bem interessante. Aceito e acho pertinentes as correções que o Júlio propôs à visão do Northrop Frye, mesmo que existam discussões muito complexas e metodologias variadas a respeito da relação língua e texto.

E, é bom que se diga, eu e Júlio concordamos em vários pontos. Daí que a diversidade exposta nas mensagens, com aberturas e fechamentos, é um ponto alto que deve ser prezado neste blog.

Posto isto, quero comentar mesmo que rapidamente a questão do mito e literatura. Acho, sinceramente, que os teólogos, principalmente a partir de biblistas como Bultmann, ao incorporarem o termo “mito” aos estudos bíblicos, sob uma ótica própria à teologia e a conceitos relacionados à concepção da própria Bíblia, geraram bastante confusão.

Penso, inclusive, que é praticamente impossível, diante de posições já definidas a décadas, que alteremos substancialmente a discussão, como os próprios colegas têm colocado.

No entanto, acho que, pelo menos no campo literário, é possível alguma observação a mais. Parto, então, da Poética de Aristóteles, que trabalha o muthos – mito. Para ele, o mito é uma "imitação de ações", conceito vinculado ao de mimesis (=representação). Mas não apenas isso. É mais. É também uma "composição dos atos", uma ordenação da história contada na narrativa. Em outras palavras, o mito pode ser identificado com o “enredo”.

Uma outra observação deve ser apresentada. Para Aristóteles o mito, proposto na análise da tragédia, diferencia-se da história pelo fato de que esta cobre grandes blocos temporais, descritos em sequência cronológica. Já o mito, embora trabalhe questões totalizantes também, está mais restrito e não se prende ao cronos. O mito possui uma lógica interna ligada ao desenvolvimento de uma trama, mas não é necessariamente atrelado e refém da história.

Por isso mesmo o termo mito foi utilizado para classificar relatos de origem de povos antigos, que incluíam elementos sobrenaturais como deuses relacionando-se com seres humanos. Destaque-se que, nesses casos, salvo um engano, a definição de tais relatos como mitológicos se dá a partir de um preconceito racionalista que, por não aceitar a existência de seres celestes e divinos, classifica narrativas a respeito deles como irreais, ou seja, mitológicas.

Por outro lado, o positivo, acho que é possível afirmarmos que a história da humanidade se desenvolve muito mais a partir do conceito de mito do que de história. E que as nossas próprias vidas estão inseridas em uma perspectiva mitológica, entendida como um enredo em desenvolvimento, com variações e relativizações temporais onde, inclusive, seres “sobrenaturais”, para alguns de nós, estão presentes e atuantes.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Mito, Linguagem, Óculos

Em resposta à resposta de Leonel ao meu texto em resposta ao dele (hehehehehehe) ...

1. Para deixar mais claro em que discordo do post em que Leonel descreve a concepção de linguagem de Frye (seguindo Vico): não aceito o evolucionismo da linguagem em três fases, penso que é melhor dizer que a linguagem é um conjunto simultâneo de jogos e que as três "fases" de Vico-Frye são apenas "jogos". Discordar do viés evolutivo não é a mesma coisa que afirmar que a linguagem é ahistórica. É afirmar que as variações da linguagem não seguem um padrão evolutivo, mas apenas um padrão histórico. Ou seja, discordo da filosofia de história de Vico, adotada e reinterpretada por Frye. Penso que Frye confunde coisas diferentes: (1) historicidade das línguas, que variam ao longo dos eixos tempo-espaço-pessoa; e (2)evolução dos modos de validação da verdade, que ele acopla à evolução dos modos de funcionamento da linguagem. Discordo, por exemplo, da descrição que Frye faz da era hieroglífica (poética) em que teria havido uma espécie de fusão sujeito-objeto mediante energia divina ou similar - não vemos isso nos textos sapienciais egípcios ou mesopotâmicos, não vemos isso em textos técnicos-agricolas, não vemos em textos "astronômicos", mas vemos em textos religiosos, em textos mágicos e semelhantes.

2. Penso que, dito isto, fica claro que concordo com Leonel quando ele descreve a variação histórica das línguas naturais (variação, mas não evolução, pois este termo tem um registro teleológico, enquanto o termo variação é histórico, mas não teleológico). O vocabulário se altera, o sentido dos vocábulos se altera, etc. - ao longo, mais uma vez, dos eixos de tempo, espaço e pessoa (história, sociedade, cultura...). Também concordo com o novo post do Leonel, quando afirma a preponderância do fator religioso na época do AT. Mas, de novo, isso não corresponde a uma fase evolutiva, mas a um arranjo dos jogos de linguagem, tanto na formulação dos saberes, quanto na validação dos saberes.

3. Concordo, ainda, com as afirmações relativas ao exílio do jogo de linguagem mítico (ou sagrado, ou religioso) na Modernidade, mas concordo apenas e tão somente enquanto exílio do jogo de linguagem, e não enquanto superação evolucionária de um tipo de linguagem. Adorno & Horkheimer, por exemplo, na Dialética da Ilustração, ofereceram um interessante argumento em prol da afirmação do caráter mítico de elementos da meta-narrativa (linguagem pós Adorno...) moderna. Ou seja, o jogo de linguagem mítico continuou sendo jogado na Modernidade, mas camuflado, ocultado sob o manto do jogo da racionalidade. Neste caso, discordo do Leonel quando ele afirma que o homem moderno "negou Deus e abandonou o vocabulário relativo a ele" - o que os modernos fizeram (negando ou não negando a existência de Deus) foi secularizar o vocabulário religioso cristão medieval - salvação se tornou humanização, imagem de Deus se tornou dignidade da pessoa, escatologia se tornou progresso, poder pastoral se tornou poder estatal, etc. Os pós-modernos (afirmando ou não a existência de Deus) ressacralizaram vocábulos secularizados, mas não promoveram um "retorno" aos sentidos pré-modernos. (Lembro: os termos modernos e pós-modernos são usados aqui apenas exemplarmente, posto que há inúmeros modos modernos e pós-modernos em cooperação e conflitividade.)

4. Por fim, não vejo nada de problemático em utilizar o termo mito para nomear uma determinada característica literária - seja um gênero textual, o enredo, etc. Como a linguagem técnica é dependente da língua natural, muita vez somos obrigados a usar a mesma palavra da língua natural para expressar diferentes conceitos na língua artificial da "ciência". Basta apenas que saibamos que o termo é polissêmico.

Ufa! Fico por aqui, e aguardo a resposta do Leonel. Quem sabe também o Paulo mete a colher dele, assim eremos vários posts-respostas-propostas.

sábado, 21 de agosto de 2010

Mito e linguagem. Por favor, pode me emprestar os seus óculos?

A reação do Júlio ao meu post – Mito e Linguagem – foi deveras substancial.

Li, reli e, ao invés de achar, como poderia parecer em uma primeira leitura, que o Júlio se opôs utilizando outra via teórica, penso exatamente o oposto. Acho que estamos falando a mesma coisa a partir de ângulos diferentes, ou, seguindo o subtítulo desta mensagem, com óculos diferentes.

Por isso mesmo, peço o favor do Júlio para usar o óculos que utilizou, não do ponto de vista teórico, mas sim do argumentativo, para desenvolver os parágrafos abaixo. Obviamente esses óculos ficam muito melhor nele do que em mim.

A língua é fruto da vida social, econômica, política, psicológica, religiosa etc, etc, etc de um povo. Por isso mesmo, povos sob condições diferentes de vida e em momentos diferentes tendem a ter variações linguísticas. Isso se dá mesmo dentro de um determinado idioma. O português do Brasil é diferente do de Portugal. O inglês da Inglaterra, dos EUA, do Canadá, da Austrália, da Escócia e demais países que falam esse idioma possue variações. Por quê? Pela vivência específica e particular de cada um desses povos.

Mas acho que a discussão vai mais além. Ela trata de aceitar ou negar que a língua evolua. Bem, isso também é uma verdade. Em uma direção ela tende, pelo menos do ponto de vista de seu uso, a buscar simplificações. No português tivemos, a título de exemplo: vossa mercê, voismecê, você, ocê. Por outro lado, dentro de questões que visam expressar linguisticamente novas realidades, temos inovações, complicações e atribuições de novos sentidos. A cinquenta anos termos como pen drive, disco rígido, mouse, software, deletar, e outros, ou existiam com outro sentido ou simplesmente não existiam. O vocabulário da informática surge a partir da evolução tecnológica. Isso é claro com o hebraico bíblico e o grego coiné, que utilizam um vocabulário relacionado com certo arco temporal, social e tecnológico.

E, nesse contexto, é claro também que as culturas que viveram sob as línguas bíblicas as utilizaram nas diversas expressões de suas vivências. Concordo plenamente com o Júlio a esse respeito (acho que tudo o que disse até agora também está em concordância!). O vocabulário para a guerra era um, o do culto era outro, o do amor outro e assim por diante. Mas, não devemos negar, o contexto religioso, com seu vocabulário, era preponderante.

O que se vê na modernidade é a exclusão do espiritual e de seu vocabulário. Por isso mesmo, quando vemos dois crentes se cumprimentando e dizendo: “A paz do Senhor”, isso soa muito estranho. Convém lembrar também que o vocabulário do sentimento e do amor também foi relegado a em um canto escuro das relações interpessoais.

Concordo com o Júlio que os antigos não eram pré-racionais. Eles tinham sua racionalidade, mas o fato é que ela era guiada, em maior ou menor proporção, pela realidade de Deus ou dos deuses. O homem moderno, com sua racionalidade, negou Deus e abandonou o vocabulário relativo a ele. O pós-moderno resgasta a espiritualidade e a relação com Deus e com os deuses de uma forma ainda não muito bem definida.

Concordo também que mito não deve ser entendido com antagonista da razão. Penso que não foi isso que quis dizer. Quis dizer, utilizando Frye, que aquilo que o racionalismo intitula de mito encontra sua expressão e vivência em formas de linguagem estranhas a esse homem racional, em um mundo onde narrativas e poemas que falavam de Deus ou deuses eram totalmente compreensíveis... e racionais.

Para finalizar, o mito, do ponto de vista literário, como descrito por Aristóteles, deve ser compreendido como enredo, trama. Por isso, Não há um ser humano que não viva seu mito ou que não sonhe com ele. Mas, como disse na mensagem anterior, acho que vale a pena gastar uma mensagem para discorrer sobre isso.

Bem, devolvo os óculos ao Júlio, agradecendo por ajudar-me a ver melhor o tema em discussão.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Mito e Linguagem, outro olhar

O Leonel apresentou uma visão da linguagem a partir de texto de N. Frye, em que ele propõe uma descrição totalizante da linguagem, em modo evolutivo e moderno. Desejo dialogar com essa proposta de modo relativamente oblíquo, na medida em que o faço a partir de uma descrição alternativa, não evolutiva e, talvez, não tão moderna da linguagem.

Prefiro pensar a linguagem a partir do diálogo com pensadores como Charles S. Peirce, Ludwig Wittgenstein, Donald Davidson e Algirdas Greimas. Para tal tipo de pensadores (e eles não concordam entre si ...), a linguagem tem de ser pensada a partir do processo comunicativo que se caracteriza pela intersubjetividade no mundo (físico, social, cultural...). Em tais teorias, o foco se desloca da evolução dos modos de linguagem (que para eles não faz sentido) para os usos concretos da linguagem em seus variados contextos intersubjetivos. Em outras palavras, diferentes tipos de linguagem sempre coexistiram e atenderam a diferentes necessidades e expectativas comunicacionais em arranjos diferenciados ao longo do tempo e espaço.

Por exemplo: quando egípcios, israelitas, cananeus (etc.), nos tempos bíblicos, precisavam resolver problemas “práticos” (tais como construir uma casa, plantar um campo, colher uma lavoura, vencer uma batalha, etc.), eles utilizavam os jogos de linguagem apropriados para tais problemas, dentre os quais, o jogo “descritivo” ou “racional-instrumental” das relações de causa-efeito, cálculo e objetividade. Eles não eram pessoas pré-racionais que somente jogavam o jogo poético da linguagem. Eles sabiam articular os diferentes jogos necessários na realização das diversas atividades e ações da vida em comum. Por exemplo: ao entrar em batalhas, a preparação prévia em oração, consulta a oráculos, sacrifícios (etc.) não substituía o treinamento militar, as estratégias de confronto, a inteligência (etc.).

Em que se diferenciavam, então, os “antigos” de nós “modernos”? Basicamente no modo de articular os diferentes jogos de linguagem envolvidos na consecução das ações e atividades da vida em comum. Por exemplo: os racionalistas modernos negaram igual validade aos jogos de linguagem por eles nomeados como “não-racionais” (em que não predominam cálculo, objetividade, causalidade) e, em escala ainda mais inferior, aos nomeados como “irracionais” (em que cálculo, causalidade e objetividade são subordinados a desejo, passionalidade, subjetividade). A fim de outorgar validade superior (ou única) a seu jogo preferido de linguagem, os racionalistas desqualificaram os outros jogos e criaram a ilusão de que o que eles faziam não era um jogo de linguagem, mas o único uso verdadeiro da linguagem.

Daí terem eles inventado as oposições binárias irredutíveis a partir das quais iniciamos as discussões sobre mito e bíblia – história versus mito; razão versus fé; objetividade versus subjetividade; ciência versus fantasia; etc. Os anti-racionalistas entraram no jogo com a mesma atitude e só reverteram a polaridade dos binarismos, atribuindo valor positivo ao mito, a fé, à subjetividade e à fantasia – e valor negativo aos seus opostos.

Concluindo a minha fala-escrita para que a discussão possa continuar. Não vale muito a pena, então, pensar no mito como um modo de pensamento distinto da razão, ou da história; nem como um gênero textual específico que trata de deuses e monstros; nem como a verdade em oposição à falsidade racionalista. O que chamamos de mito é apenas um dos variados jogos de linguagem que jogamos constantemente em nossos esforços de comunicação com outras pessoas na busca de nossos objetivos de vida. A tarefa “científica” (do jogo científico de linguagem) seria, então, descrever o jogo mítico da linguagem e suas articulações possíveis com outros jogos de linguagem – mas sempre a partir de situações comunicacionais concretas. (Por isso em meu post anterior fiz questão de frisar o modo “exagerado” da minha argumentação, que visava ressaltar a inadequação da discussão da questão a partir do binarismo, pois não estava jogando o jogo científico ...)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Mito e linguagem

Pretendo interagir com as mensagens de Paulo e Júlio buscando uma fresta dentro da argumentação que desenvolveram. Não é muito fácil, visto que cobriram uma área bem extensa da discussão a respeito do mito e a Bíblia.

Tenho consciência também que, de certa forma, esta mensagem deveria ser introdutória às dos colegas, mas esse problema se relativiza pela facilidade de utilizarmos um blog. Você pode lê-la e depois ler as mensagens anteriores. Ou não.

Tomarei como base afirmações do crítico literário canadense já falecido, Northrop Frye, no livro “O código dos códigos: a Bíblia e a literatura” (editado pela Boitempo em 2004).

O livro de Frye, segundo ele mesmo, surgiu quando constatou em suas aulas de literatura inglesa, principalmente ao discutir Milton e Blake, que seria praticamente impossível entendê-los, assim como muitos outros autores de fala inglesa, sem que conhecesse a Bíblia. Para o crítico, esses autores foram influenciados pelas Escrituras e seus textos estão impregnados dela.

Resolveu, então, escrever um livro sobre a Bíblia do ponto de vista da literatura. É de interesse para esta discussão o que é dito no cp. 1, intitulado “Linguagem 1”. Frye segue a proposta do filósofo italiano Giambattista Vico (1668-1744), que vê na história da humanidade três fases da linguagem: a poética, a heróica e a vulgar. Frye as rebatiza: hieroglífica, hierática e demótica. Segundo Vico, a primeira fase compreenderia um uso “poético” da linguagem, a segunda um uso “alegórico” e a terceira seria “descritiva”.

Essas fases são, para Frye, úteis para pensar a Bíblia dentro da história da linguagem. Dentro do período hieroglífico (poético) ele inclui “a maior parte da literatura grega anterior a Platão, sobretudo em Homero, ou nas culturas pré-bíblicas do Oriente Próximo, ou ainda muito do Velho Testamento [...] Nesse período há relativamente pouca ênfase na separação entre sujeito e objeto; ao invés disso, a ênfase recai sobre o sentimento de que sujeito e objeto estão interligados por uma energia ou poder comum a ambos” (2004, p. 28). Cita, para exemplificar, que nesse período as palavras são vistas como forças dinâmicas, que contém poder e que saber o nome de um Deus pode dar controle sobre ele. Importante também é saber que “Todas as palavras nesta fase da linguagem são concretas: em verdade não há abstrações” (2004, p. 29).

A segunda fase, a hierática (heróica ou nobre), iniciada com Platão, é assim denominada por ser produzida por uma elite intelectual. “Nesta segunda fase a linguagem é mais individualizada e as palavras tornam-se sobretudo a expressão exterior de pensamentos ou idéias anteriores. Sujeito e objeto tornam-se mais consistentemente separados e a ‘reflexão’, junto com sua ressonância de se olhar um espelho, vem ao proscênio verbal. As operações intelectuais da mente passam a distinguir-se das emotivas; assim torna-se possível a abstração, e o senso de que há maneiras válidas e não válidas de se pensar termina por desenvolver a concepção da lógica” (2004, p. 30). Fundamental para entender o novo momento é que “A base da expressão aqui está se movendo do metafórico, com seu sentido de identidade entre homem e natureza em termos de vida, poder ou natureza (‘isto é aquilo’), para uma relação muito mais metonímica (‘isto está no lugar daquilo’). Especificamente, palavras ‘estão no lugar’ de pensamentos, e são a expressão exterior de uma realidade interior” (2004, p. 30).

A terceira fase surge “[...] no século XVI, acompanhando algumas tendências da Renascença e da Reforma. Ela chega à ascendência cultural durante o século XVIII [...] Aqui partimos de uma separação muito clara entre sujeito e objeto, onde o sujeito se expõe, através da experiência dos sentidos, ao impacto de um mundo objetivo. O mundo objetivo é a ordem da natureza; o pensamento ou a reflexão seguem as sugestões da experiência dos sentidos e as palavras são o servomecanismo da reflexão. Prossegue o uso da prosa contínua [característico da fase anterior], mas todos os procedimentos dedutivos se vêem cada vez mais subordinados a um processo prévio indutivo e de coleta de material – os fatos” (2004, p. 36).

Bem, paro com as citações aqui, sob o perigo do tédio. Mas o importante para a discussão do mito é reconhecer a separação que se dá entre nossa linguagem e a da Bíblia. Enquanto estamos na terceira ou mesmo uma quarta fase, se pensarmos em termos de pós-modernidade, embora muito de nossa hermenêutica se construa sob os alicerces da terceira fase, a Bíblia está na primeira e na segunda fases. Isso gera um deslocamento interpretativo. Enquanto a Bíblia em determinados momentos usa uma linguagem poética para falar de Deus, do ser humano e do mundo, nós as interpretamos a partir da relação entre nós, sujeitos, e esses “objetos”, a partir da constituição “científica” dos fatos, característica da terceira fase. Isso fica claro quando Frye afirma que “Na terceira fase a literatura se adapta sobretudo através do que se chama de realismo, adotando categorias como probabilidade e plausibilidade como instrumentos retóricos” (2004, p. 50). É claro que o autor está falando de “literatura”, mas ela expressa os mecanismos que nós construímos para nossas relações humanas e com aquilo que nos cerca.

Por isso mesmo, devemos pensar que quando Bultmann propõe a desmitologização da Bíblia, ele está sob a pressão do encontro das três fases. E que a própria nomenclatura “mito”, como concebida hoje em termos sócio-históricos, é uma construção da terceira fase da linguagem estranha às duas anteriores.

Paro por aqui. Mas o livro de Frye tem um capítulo onde trabalha mais especificamente o mito. Acho que vale a pena voltar a ele.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Não há mitos na Bíblia!

O Paulo lançou bem o debate, explicou os parâmetros da questão e deixou a bola na marca do pênalti. Vou dar meu chute, sob inspiração cazuziana: "exagerado"!

O título do post é deliberadamente ambíguo. Parece libelo fundamentalista, mas também pode ser uma tirada desconstrucionista. Porém, para mim, não é nenhuma dessas duas coisas. Deixe-me explicar: para mim não há mitos na Bíblia, porque a Bíblia é mito; é fantasia; é ficção. Na Bíblia há textos mais ou menos históricos, mais ou menos "científicos", mais ou menos filosóficos. E mesmo esses textos, são mítico-históricos; mítico-filosóficos, etc., etc., etc.

Primeiro argumento. Quando a gente lê obras de História de Israel por historiadores críticos ou mesmo fundamentalistas, uma das brigas é a da fidedignidade. Para os críticos, o relato do êxodo não é fidedigno, porque não se pode provar cientificamente que Israel esteve no Egito, etc. Para os fundamentalistas, o relato do êxodo é fidedigno, porque Deus tem poder suficiente para livrar Israel do Egito, etc. Inútil discussão. Perda de tempo. Por quê? Porque o termo fidedigno está sendo sacaneado na discussão. Fidedigno é aquilo que é "merecedor de fé". Mas nem os críticos, nem os fundamentalistas estão disputando sobre a fé, ambos disputam sobre a verdade, sobre a ciência, sobre a razão. Ambos defendem o critério de que a veracidade do texto está na correspondência do relato com o fato!

Segundo argumento. Se a Bíblia é mito, fantasia, ficção, a sua fidedignidade não depende da facticidade dos relatos, poemas, etc. Depende do projeto de vida que ela propõe. E se ela é mito, seu projeto de vida também é mítico, de modo que a adesão não é por "argumentos" ou "razões" (ao modo moderno desses termos), mas por paixões, por valores, por identificações (e se você precisa de uma autoridade racional para esta tese, leia Spinoza, ou Kierkegaard, ou Rorty, ou Derrida, ou Adorno e Horkheimer, ou Benjamin, ou Vattimo, ou ...). Em outras palavras, o mito pede resposta subjetiva, e não objetiva. E se a resposta é passional, subjetiva, não se trata de aceitar os detalhes, de deslindar os mistérios, mas de adotar a proposta já "filtrada", dialogada, incorporada em nosso modo mítico de ver e viver o mundo. Assim, posso aceitar o projeto de vida libertador dos antigos israelitas, sem me ocupar de sacrifícios, templos, reis, tribos ...

Terceiro argumento. Mito, fantasia e ficção são os motores da vida humana, e não a ciência, a objetividade e a razão instrumental moderna. Estas últimas são coisas boas e muito úteis. Precisamos delas, não podemos viver sem elas (imagine um hospital sem ultrassom, ressonância magnética, anestesia...). Mas não são elas que nos fazem acordar de manhã para viver mais um dia. Saio da cama diariamente porque mitos, fantasias e ficções se apossam do meu corpo e não deixam que a objetividade de um mundo vazio e sem sentido me faça cair em depressão. É a fantasia da felicidade, é o mito da boa vida, é a ficção da solidariedade transformadora que me tiram da cama e me fazem viver, abraçar minha esposa, beijar meu neto, dar um "pedala robinho" na nuca do meu filho, trabalhar, ler, estudar, ensinar, bloguear ...

Quando me perguntam por que creio em Deus, a única resposta que consigo oferecer honestamente é: "por que Ele e eu conversamos todos os dias". Não há mitos na Bíblia. Bíblia é mito! Fé é fantasia! Exegese é ficção! "Exagerado!"

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Bíblia: Mentira ou Mito?

Sob o título provocador (mas não escarnecedor) "Bíblia: Mentira ou Mito?" eu gostaria de propor uma discussão metodológica sobre um dilema dos estudos bíblicos do século XX, e que me parece longe de estar resolvido no começo deste novo século.
O tema é antigo e não cabe aqui neste blog um tratamento histórico do problema. Mas podemos levantar questões básicas para reavivá-lo. O conceito de Mito é um verdadeiro patinho feio no universo dos estudos bíblicos. A exegese científica nascida do liberalismo do século XIX tinha como tarefa desvelar o texto bíblico de sua roupagem mítica. Este é o contexto no qual os milagres, atribuídos ao universo mítico e supersticioso dos primeiros cristãos, deveriam ser explicados por causas naturais (ou pela teoria do engodo). É este também o contexto que nos fez dividir as tradições sobre Jesus de Nazaré em tradições de um Jesus histórico e as de um Cristo da . Se substituirmos a palavra da fé por mito, teremos uma contraposição fundamental na qual o tratamento do mito foi inserida. Bultmann não foi, portanto, o primeiro, mas sim o mais ingênuo dos desmitologizadores. Ele propos sem escrúpulos despir o texto bíblico de sua roupagem exótica e envelhecida que era o mito, para, com novas vestes da filosofia existencialista heideggeriana poder torna-lo relevante para o homem moderno. O resultado do projeto foi muito desastroso. A teologia de João e a de Paulo não queriam dizer muito mais que abandonar a idolatria pecaminosa da pretensa autosuficiência humana e abrir-se ao futuro de Deus. Mas não obstante o visível empobrecimento da mensagem evangélica no projeto de desmitologização de Bultmann, a rejeição do Mito teve escola em outras vertentes teológicas.
A Teologia da Esperança e as demais teologias políticas, incluindo a Teologia da Libertação, resistiram ao Mito contrapondo-o ao conceito de história ou de revelação de Deus na história, ou ainda contrapondo a compreensão cíclica de história de (algumas) vertentes míticas à dinâmica escatológica da história da salvação. O Êxodo acontece na história, movendo-se em direção a uma nova realidade, não e um eterno recomeço ou o retorno a um tempo de origem idílico. Creio que de modo inverso, mas análogo, o conservadorismo teológico fundamentalista ou conservador evangélico também é filho do Iluminismo, ou seja, não quer partilhar de estruturas de pensamento confusas, ambigüas e primitivas, mas tornar o evangelho perfeitamente compreensível e positivo para o senso comum do homem burguês. Trata-se de uma compreensão essencialista e ingênua da linguagem bíblica que nega as virtudes míticas de sua expressão em prol de uma positividade histórica.
Uns dos problemas mais importantes desta discussão não é apenas nos defendermos do racionalismo positivista ou do historicismo messiânico, mas em saber se há vantagens em redescobrir e em revalorizar a estrutura mítica da linguagem bíblica. Talvez para retomarmos esta discussão devamos nos perguntar sobre o que é o Mito e que implicações traz para a leitura da Bíblia o reconhecimento do caráter mítico de sua linguagem.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Leitores e práticas de leitura

Pois bem. Eis-nos de volta à discussão sobre hermenêutica!

Esse fato é relevante, pois indica a necessidade que temos de melhor definir nossos procedimentos para que os resultados de nossa interpretação possam ser melhor avaliados.

O último post do Júlio foi muito didático e esclarecedor. Concordo plenamente que mediante textos podemos chegar ao leitor ideal proposto pelo autor/narrador. Embora nem sempre ele se encaixe muito bem no leitor real, o que pode gerar leituras e interpretações variadas, com observou o Júlio. Penso que, nesse sentido, editores de livros são importantes também por exercerem uma espécie de co-autoria. Nos textos que publicam eles colocam marcas da forma como acham que os livros serão melhor recebidos pelos leitores. São os chamados "paratextos". Incluem-se neles os textos de 4a. capa e orelhas, as apresentações, e a própria diagramação. Todos esses elementos pressupõem um tipo de leitor e procuram influenciá-lo. Podemos falar disso em outro momento.

O que queria chamar a atenção é para a dificuldade de definir o leitor. Umberto Eco e outros fazem isso, como o Júlio já indicou. Mas há um elemento precário na teoria. Achar que o leitor será exatamente aquilo que o autor propõe. Como já disse, isso pode acontecer e acontece. Daí eu julgo necessário o estudo das "apropriações" dos textos (Michel de Certeau fala disso em "A invenção do cotidiano", editora Vozes). Ou seja, conferir como os leitores se apropriam, dão sentido ao que lêem. Em textos antigos como a Bíblia, é impossível analisar como os primeiros leitores agiram. O que é viável é estudar os leitores que deixaram pistas de suas leituras.

Esse é um campo de pesquisa fascinante para mim. Hoje em dia me motivo mais a estudar, não a interpretação oficial das denominações cristãs, mas mais como, na base, as pessoas estão lendo e interagindo com os textos lidos. Como um cristão católico tradicional, ou um carismático, ou então um pentecostal, ou neopentecostal, ou presbiteriano, ou, ou, ou... se apropriam das leituras feitas. Como bem salientou Chartier, essa pesquisa não é fácil, visto que ela pressupõe que os leitores deixem registros das leituras. Mas é possível. Um exemplo apenas. Muitos leitores da Bíblia têm o costume de grifar textos que consideram importantes. Pois bem, pode-se tomar várias bíblias grifadas de uma determinada comunidade cristã e analisá-las procurando um padrão que as una e revele que tipo de textos bíblicos são mais importantes para eles e como isso pode-se sugerir determinadas hipóteses explicativas.

Bem, por agora é isso!

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Leitura e Conhecimento Enciclopédico

Em meu último post utilizei um termo da semiótica de Umberto Eco - o "conhecimento enciclopédico" - para destacar o fato de que, em certo sentido, todo texto é simultaneamente velado e desvelado. Em outros posts, usei o termo "heterogeneidade constitutiva do sentido" para falar da presença de outros textos e discursos em um texto - no ato de sua produção - destacando que nem sempre o autor de um texto intencionou que outro texto estivesse presente em seu próprio.

Estes dois conceitos podem ser usados tanto para explicar aspectos da produção quanto da interpretação de textos. Por exemplo, em resposta ao post do Leonel, não podemos construir, com certeza, o perfil de uma comunidade cristã antiga a partir do texto bíblico. O que podemos construir com alguma certeza é o "leitor implícito" do autor do texto. No caso do evangelho de Marcos, a estrutura do texto, os gêneros utilizados, as relações intertextuais e interdiscursivas, todas supõem uma comunidade de leitores familiarizada com a Escritura judaica. Ou seja, para "Marcos" essa era a sua comunidade "implícita" - se a comunidade "real" correspondia, ou não, a essa comunidade implícita, é outra história, ou estória (é de bom senso supor que o autor conhecia bem a sua comunidade, mas não podemos ter certeza disto) ...

No caso do conhecimento enciclopédico ou da heterogeneidade constitutiva (e interpretativa), podem existir tantas diferenças entre autor e "primeiros leitores", que estes podem chegar a interpretações radicalmente distintas da(s) intencionada(s) pelo autor de um texto. Voltando a Marcos: um leitor antigo do Evangelho que não conhecesse as Escrituras judaicas faria uma interpretação distinta da de leitores que as conhecessem - e mesmo neste caso, diferentes formas de incorporar interdiscursivamente (ou enciclopedicamente) os textos da Escritura construiriam diferentes tipos de leitores.

Por isso, prefiro falar em "possibilidades de sentido" que texto e contexto proporcionam aos leitores. Duas pessoas da mesma cidade, da mesma época, da mesma religião, no I século, e.g., não interpretarão, necessariamente, da mesma maneira o mesmo texto. Ou - as "surpresas" que Marcos preparou em seu texto poderiam ser "conservadorismo" para alguns leitores; surpresas radicais para outros, heresias para outros, etc., etc. (dialogando mais diretamente com o post do Paulo). Por quê? Porque os seus conhecimentos enciclopédicos teriam sido diferentes (um faltou às reuniões de estudo de Isaías na sinagoga, enquanto aproveitava para namorar uma gentia que lhe ensinava mistérios de Ísis. Poderia ocorrer também que na leitura de um texto bíblico uma parte da comundiade se desligasse do culto e ficasse pensando na volta de Jesus e resultado: dois conhecimentos enciclopédicos distintos na mesma igreja ...);

Se aplicarmos estes fatos teóricos ao nosso trabalho de leitura, dois mil anos depois da escrita do texto, em outra cultura, com outra língua, com outras técnicas interpretativas, etc. etc., as diferenças entre nossa interpretação e a do próprio autor ou as dos primeiros leitores tendem a ser imensas. Em outras palavras, a descrição da identidade de Jesus que enxergo em Mc 1,9-11 pode ser absolutamente diferente da intencionada por Marcos ou da reconhecida por "sua" comunidade de primeiros leitores. De modo semelhante, minha leitura de Mc 1,9-11 não será idêntica à do Leonel, ou à do Paulo, ou à sua, cara leitora ou caro leitor ...

Caímos então no relativismo (o demônio que atormenta os preocupados exegetas e teólogos)? Não. Caímos em nós mesmos, apenas. Damos conta da finitude de nossa vida e da nossa leitura. Damos conta da precariedade de nossa "Verdade". Damos conta da fragilidade de nossos saberes. Se lidarmos bem com isso, aprenderemos a dialogar e a aprender uns com os outros. Se não, tentaremos classificar as pessoas entre as "como nós, que conhecem a verdade" e as "diferentes de nós, que não sabem nada"...

Cristologia, textos e leitores. Um diálogo com os colegas

Utilizo esta mensagem para dialogar com Paulo e Júlio. É o diálogo, o trabalho a várias mãos e línguas que produz frutos além do esperado. Daí inquiri-los, perguntar-lhes, dialogar. Sempre há um caldinho a mais para sair.

Júlio e Paulo, cada um a seu modo, reagiram às minhas duas mensagens a partir de ângulos em comum. Os dois olham para o diálogo proposto pelo narrador aos leitores e à palavra final deste. Sim, o leitor, mesmo que leia equivocadamente, sempre terá a última palavra.

Júlio propõe uma leitura velada do segredo messiânico no relato do batizado de Jesus, acessível apenas aos iniciados, àqueles que tem condições de identificar tradições textuais e discursivas complementares, e até contraditórias, que são retrabalhadas pelo autor do evangelho e disponibilizadas por seu narrador.

Diante disso, pergunto, tomando como ponto de partida uma proposição um tanto ingênua, que identifica o evangelho de Marcos como dirigido a gentios, e o de Mateus, por exemplo, a judeus cristãos, em função deste conter muitos textos do AT e, portanto (daí a ingenuidade), poder ser compreendido adequadamente por eles. Volto à pergunta: como trabalhar com essa perspectiva de análise se, como indica Júlio, Marcos contém uma complexa rede de textos do AT retrabalhados? Ou temos que alterar o tipo de imagem dos leitores proposta pela exegese tradicional?

Já Paulo, também trabalhando com questões de tradições, mas em um caminho pouco trilhado, indica práticas de leitura em comum entre autor e leitores do evangelho. Mas as estratégias narrativas visariam, mediante inovações e mesmo escândalos, chamar a atenção dos leitores. Os textos marcanos estariam marcados, então, pelo conhecimento antecipado que autor teria dos destinatários e o texto do evangelho visaria, mediante a surpresa, o escândalo, a mudança de padrões de sentimento, pensamento e comportamento.

Pois bem, diante disso pertunto aos dois: como podemos pensar as práticas de leitura e de interpretação da comunidade primitiva, ou do grupo leitor do evangelho de Marcos?

Parto do princípio de que o evangelho é uma literatura indireta, ou seja, ele é escrito e enviado a um grupo ou grupos de cristãos que o lerão. É provável que o autor tivesse um contato esporádico com os leitores. De qualquer forma, ele provavelmente não estaria presente para esclarecer pontos de controvérsia no texto.

Nesse contexto, outra questão. Visto como no período os textos existiam na forma concreta de rolos de pergaminho principalmente, e estavam localizados nas sinagogas ou casas/comunidades dos cristãos, seriam esses os lugares (públicos) de interpretação? Digo isso por que geralmente temos uma perspectiva anacrônica, pensando que cada cristão possuía sua Bíblia e a lia em casa como fazemos hoje. Bem, sabemos que não era assim. O acesso às escrituras era comunitário nas reuniões da sinagoga - igreja. Portanto, a interpretação também seria coletiva. Certo? Como isso pode interferir nas propostas textuais e dialógicas presentes no evangelho?

Fico por aqui, no aguardo.

sábado, 7 de agosto de 2010

Bola-fora como estratégia literária.

Nossa leitura acadêmica dos evangelhos é marcada por práticas escribais da história da tradição. Ou seja, um escritor ou redator (termo politica e exegeticamente correto) é alguém que teria em mãos uma concordância com os antecedentes de todos os conceitos que usa. Ele saberia que seus leitores em suas casas teriam o mesmo acesso aos seus instrumentos e acervo e que decifrariam seus enigmas, e referências cruzadas.
Até aqui a fantasia histórico-crítica.
Os evangelhos e, no caso, o Evangelho de Marcos, pressupõem horizontes culturais comuns entre escritor e leitores, o que não é o mesmo que pressupõe a história da tradição. Estes horizontes comuns procedem de práticas de leitura comuns. Mas leitura aqui deve ser entendida no sentido amplo, ou seja, o que se ouve em celebrações, em conversas, em leituras de fragmentos de textos, o que se completa dos fragmentos, as expectativas, etc. É dentro deste campo de expectativas originadas dos horizontes comuns que se dá o encontro hermenêutico entre autor (ou melhor, texto) e seus leitores. E é dentro deste horizonte comum que o autor (já estamos falando de autor? Credo!) cria. Criar não significa inventar do nada, mas fazer pequenas, sutís e não menos importantes mudanças no que se esperava que ele dissesse. Este é o caso do Evangelista Marcos. Ele inova, revoluciona, ao jogar com as expectativas de seus autores. O me parece é que esta é a função do tal "segredo messiânico". O segredo que Jesus pede de seus ouvintes parece ser uma estratégia marcana de dizer: olha, aqui tem coisa importante, aqui etá a forma como vejo as coisas. Este destaque só pode ser dado na narrativa, nas suas inversões e nos seus escândalos. Aliás, os escândalos de Marcos são tão absurdos que alguns têm que ser apresentados com bom humor. Vejamos brevemente dois casos.

Quando Jesus contradiz a confissão de Pedro de que ele é o Messias (Mc 8,29), ele proíbe Pedro de dizer isso, repreendendo-o severamente. E em seguida ensina aos discípulos que "era necessário que o Filho do Homem sofresse muito...", apresentando o caminho da cruz e do sofrimento. O que era escandaloso na história, era central para a narrativa de Marcos. A reação de Pedro é, por sua vez, a de repreender a Jesus severamente. Afinal, sofrer e morrer não é o que se espera de um Messias e muito menos de um Messias-Filho-do-Homem (vide Daniel 7!). Pois bem, aí vem a estratégia marcana de quebrar o ritmo de expectativas do leitor e ao mesmo tempo inserir algo sutilmente novo: ele faz Jesus ironizar Pedro. "Segue-me, seu Satanás". Ou seja, segue meu exemplo, o Messias mudou, não é o que você (inclusive você, leitor) esperava que ele fosse, mas o que ele foi, e o que lhe dá sentido: um Messias morto e ressuscitado. Segue-me? Isso mesmo. Esta é a melhor tradução do original grego. Mas onde já se viu um redator se permitir uma brincadeira deste tipo? rsss Mas foi isso que Marcos fez. Tanto que depois se volta para Pedro (e para todos os seus leitores) e diz: "Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me" (8,34).
 Alterações em relação ao que se espera acontecem não apenas na guinada de ações e palavras, mas também nos personagens envolvidos. É o que acontece na narrativa que se segue, em 9,1-8. Este é um dos textos mais enigmáticos da tradição evangélica. Trata-se de um relato epifânico com características visonárias, inserido logo após a revelação do sofrimento e da morte do Filho do Homem. A exegese histórico-crítica se vê tão perplexa diante desta narrativa que chegou até a considerá-la uma "narrativa pós-pascal fora de lugar". E, de certa forma é isso mesmo. No Apocalipse de Pedro, por exemplo, a transfiguração é o momento em que Jesus é transportado por dois anjos maravilhosos (Elias e Moisés) aos céus. Mas o problema criado pelo texto de Marcos não é tanto o lugar onde a experiência de contemplação do glorificado acontece, mas quem a legitima. Sabemos que na cena estão presentes três dos mais importantes discípulos (Pedro, Tiago e João). Na verdade a visão é deles (e de Marcos, nosso narrador). Ao lado de Jesus de vestes resplandescentes aparecem Elias e Moisés. É surpreendente que Elias acompanhe Moisés. Afinal o grande viajante celeste não era Elias (a despeito do seu arrebatamento), mas Enoque. Enoque e Moisés, os maiores personagens envolvidos com revelação. Mas Enoque é preterido por Elias. Seria isso uma interferência de uma tradição do Norte? Uma ligação entre o Elias milagreiro e o Jesus milagreiro? Ou o fato de que antes Elias e João Batista haviam sido associados pelos seus seguidores e que, se não era possível inserir na narrativa João Batista exaltado, pelo menos ele testemunharia a segunda voz celestial, como já fizera no batismo (Mc 1), ainda que como um Elias-João Batista.
 São estas pequenas alterações que fazem a diferença no todo. E todas seguidas de bom humor. O Filho do Homem morrerám seguido da ironia de Jesus ("Segue-me seu Satanás"). Elias no lugar de Enoque e a frase ingênua de Pedro: "Rabbi, é bom estarmos aqui; ergamos três tendas, uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias". Ele não sabia ainda que estava em êxtase! 

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Identidade messiânica de Jesus - revelação velada

Vou abordar o tema tratado pelo Leonel, mas a partir de outro viés - o das relações interdiscursivas. Uma das funções do evangelho é apresentar a identidade de Jesus como Messias - ou seja, o evangelho constrói a messianidade de Jesus enquanto teologia da igreja, para a igreja e para quem está fora da igreja (comunidade de discípulos, ainda não a "instituição"). Marcos apresenta, por exemplo, no relato do batismo de Jesus as características da messianidade do batizado, mas o faz mediante uma revelação "velada" ...

O texto de Marcos lê: "9. Naqueles dias veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo."

A identidade de Jesus é construída sutilmente por Marcos através de alusões e citações de textos vétero-testamentários e também de textos não canônicos. Por exemplo, na Bíblia do Peregrino encontramos a seguinte nota sobre Mc 1,9-11: “Ele vê “os céus se abrir” [sic] (o que pediam os israelitas em Is 63,19); o Espírito desce até ele (como anuncia Is 11,1[2])” (p. 2394). Na Tradução Ecumênica da Bíblia, lemos: “Os céus se rasgam como um tecido (cf. 15,38), sinal de que Deus intervém para realizar suas promessas (Is 63,19), aqui pelo envio do Espírito Santo (cf. Testamento de Levi 18,6 e de Judá 24,2)” (p. 1924, nota o), “Ao descer sobre Jesus, o Espírito o designa como sendo o salvador prometido (cf. Is 11,2; 42,1; 63,11)” (p. 1294, nota p), e “... como seu Filho (cf. Sl 2,7), seu bem-amado (cf. 12,6, que talvez recorde Gn 22,2.12.16), objeto de sua predileção (cf. Is 42,1)” (p. 1294, nota q). Na Bíblia de Jerusalém, temos: “Recebendo o Espírito, Jesus é “ungido” (1,1,+) como rei sobre o novo povo de Deus (I Sm 16,13: Jz 3,10). É o que a voz celeste lhe declara citando Sl 2,7; cf. Lc 3,22, completado por Is 42,1: Jesus é também o “servo” que ensinará o direito às nações. Para descrever a cena, Marcos inspira-se em Is 63,11-19: Jesus é apresentado como um novo Moisés (cf. Êx 2,1ss; Nm 11,17)” (p. 1759, nota e).

Há o indicativo de um discurso direto no v. 11 – a voz dos céus diz: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo. Na fala da voz dos céus há uma revelação "velada", pois o conteúdo vem do Antigo Testamento, de três textos diferentes: Gn 22,2.12.16; Sl 2,7 e Is 42,1. Ora, só entende o que a voz do céu diz quem conhece - e bem - o Antigo Testamento ou, pelo menos, um certo tipo de discurso messiânico da época do evangelho. No caso de Gn 22 temos uma relação intertextual denominada alusão, pois não há uma cópia literal do texto de Gênesis: “filho amado” - “a quem tu amas” (Gn 22). Nos casos do Sl 2,7 e de Is 42,1 a relação intertextual está na forma da citação, pois parte do texto é literalmente copiada: “Tu és meu filho” (Sl 2,7); “em ti me comprazo” (Is 42,1).

Constato, assim, que o texto revela que Jesus é o Messias, mas só consegue entender a revelação quem possui o conhecimento enciclopédico (Umberto Eco) necessário - ou seja, a revelação só é revelação para "iniciados", para estudiosos ou estudantes da Bíblia e da sua interpretação apocalíptico-messiânica. Ao mesmo tempo, o texto demanda de quem o lê um intenso trabalho teológico, pois faz com que o leitor ou leiroa tenha de decifrar as possibilidades de sentido constituídas pela abundante interdiscursividade nele presente. Como, por exemplo, entender um Messias que é rei, Moisés, escravo, filho, vítima sacrificial...?

Este pequeno olhar sobre Mc 1,9-11 mostra que não precisamos seguir a noção de "segredo messiânico" oferecida por Wrede e sempre de novo discutida na interpretação de Marcos - outras possibilidades são mais interessantes e menos anacrônicas, na medida em que não precisamos supor uma "racionalidade moderna" subjacente ao propósito autoral de Marcos, suposição que está presente na tese de Wrede.

sábado, 31 de julho de 2010

Cristologia, ocultamento e revelação no evangelho de Marcos. Segunda Parte

Na mensagem anterior descrevi o jogo de ocultamento/revelação criado pelo narrador em Marcos para trabalhar o tema da cristologia.

Ele cria dois horizontes: o dos personagens, que sabem pouco sobre Jesus, e o dos leitores, que tomam conhecimento de uma cristologia mais desenvolvida a partir das afirmações do narrador, de Deus e dos demônios.

A estratégia visa confrontar os leitores: se os discípulos seguem Jesus sem conhecê-lo plenamente, o que se dará no processo de discipulado, os leitores, privilegidos, são desafiados, a partir do conhecimento maior sobre Jesus, a segui-lo também.

Termo chave nesse processo é "evangelho". O texto todo de Marcos é definido como evangelho = boa nova sobre Jesus (1.1). E nos primeiros 8 capítulos o evangelho é o conteúdo da pregação de Jesus (1.14-15).

Mas em 8.27-35 há uma alteração de ênfase. A partir da declaração de Pedro de que Jesus é o Cristo (8.29), os discípulos passam a ter ciência de quem de fato é o mestre a quem seguem. Nesse sentido, eles começam a se associar ao conhecimento expresso por Deus, pelos demônios e compartilhado pelos leitores. Mas mesmo assim tal ciência é incompleta, visto que Pedro logo em seguida censura Jesus ao ouvir sua afirmação de que deverá sofrer, morrer e ressuscitar (8.32).

Diante disso, Jesus afirma claramente que tal postura provém de Satanás (8.33), que, sabendo quem ele é e qual o seu destino, se opõe a que isso aconteça. Mais do que isso, Jesus declara categoricamente que o discípulo deve segui-lo até o fim: deve se negar, tomar a cruz e segui-lo. Afinal, é necessário perder a vida por causa de Jesus e do "evangelho" (8.35).

O termo "evangelho" neste versículo é marcano e não se encontra em Mateus (16.25) e nem em Lucas (9.24). Portanto, faz parte da teologia do evangelista. Com a inclusão o narrador constrói outro patamar para o discipulado. Se inicialmente o evangelho é um chamado, um imperativo para seguir a Jesus, a partir de agora, tendo o conhecimento de que ele é o Cristo, o evangelho se torna um preço a ser pago no processo do discipulado.

A partir desse momento o ritmo narrativo diminui, e com ele diminui a sequência de curas e milagres que aceleraram a narrativa na primeira parte do evangelho, e passa a ocupar o primeiro plano o ensino aos discípulos e o conflito com os religiosos judeus. Esse será o centro do evangelho nesse segmento de Marcos.

Há aqui um claro ensinamento para o leitor. Jesus só pode ser conhecido quando se toma ciência de sua missão. Sem saber que ele deve sofrer, morrer e ressuscitar, não é possível se tornar discípulo dele, pela simples razão de que o discípulo deve seguir nesse mesmo caminho. A identidade de Jesus Cristo está intimamente associada com seu sacrifício.

Por isso mesmo é que, no final do evangelho, surge uma última afirmação cristológica a respeito de Jesus. Ela provém do centurião junto à cruz. Diante da morte de Jesus ele pode exclamar: "Verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus" (15.39).

No final de Marcos, o Jesus ressuscitado envia seus seguidores a pregar o evangelho (16.15). Isso implica em um recomeço do processo. Agora o evangelho será apresentado pelos discípulos como um chamado para seguir a Jesus, pessoas irão aderir a ele, e no desenvolvimento do discipulado elas aprenderão que é necessário que o evangelho se torne um preço a ser pago, mediante a imitação de Jesus Cristo etc.

Concluindo, parece-me que o reconhecimento das estratégias narrativas no evangelho de Marcos são fundamentais para que compreendamos como o tema da cristologia é trabalhado. O objetivo final é desafiar os leitores para assumirem um discipulado integral, cobrando que o conhecimento sobre Jesus se torne prático e que haja uma identificação com ele em seu sofrimento, morte e ressurreição.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Cristologia, ocultamento e revelação no evangelho de Marcos. Primeira parte

Começo neste post a comentar um dado que me parece central no evangelho de Marcos: a questão do ocultamento/revelação de Jesus Cristo.

Mas não o faço a partir da perspectiva tradicional ligada ao exegeta alemão W. Wrede, que propôs a teoria do "ocultamento messiânico" no início do século XX. Minha proposta é mais modesta, buscando aliar uma leitura literária do evangelho a um engajamento no discipulado proposto pelo texto.

Do ponto de vista da revelação, a primeira frase do evangelho é central: "Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus". Note-se que quem a profere é o narrador onisciente. Ele sabe que aquela pessoa da qual falará é especial. Ele é o Cristo, o ungido, o Filho de Deus". Esse é um conhecimento especial, e espera-se que, assim como ele o compartilha com os leitores no início do evangelho, ele faça o mesmo no seu desenvolvimento.

Mas não é bem isso que acontece. No próximo texto em que o narrador se refere ao Cristo, ele o faz utilizando o nome próprio "Jesus", nome muito comum naqueles tempos. Isso ocorrerá durante todo o evangelho. Ou seja, se no início o narrador transfere um conhecimento especial a respeito do protagonista do evangelho a nós, leitores, em seguida ele passa a referir-se a ele a partir de seu nome humano, histórico, sem qualquer grau de importância.

Tal comportamento gera um desequilíbrio na narrativa. Os leitores sabem quem é Jesus, mas os demais personagens envolvidos na história não.

Outro momento narrativo de revelação se dá quando Jesus é batizado (1.9-11). Nesse momento o Espírito desce sobre ele, e ouve-se uma voz do céu afirmando: "Tu és meu filho amado, em ti me comprazo"(v. 11). Convém reconhecer que, semelhantemente à informação concedida pelo narrador aos leitores, aqui há novamente uma situação externa à narrativa, uma voz que provém do céu, revelando algo a respeito daquele homem. E embora a voz se manifeste no plano da história contada, não há reação nenhuma a ela. Parece que a voz se dirige apenas a nós, leitores.

Um último elemento de revelação de Jesus são os demônios. Logo no início do evangelho aparece na sinagoga um possesso. O demônio reconhece imediatamente Jesus e diz: "Bem sei quem és: o Santo de Deus!" (1.24). Tal situação se repete em 3.11-12 (agora são inúmeros demônios que afirmarm ser Jesus o "Filho de Deus", conhecimento compartilhado com o narrador e com Deus); em 5.7 (o demônio afirma que Jesus é o Filho do Deus Altíssimo") etc.

Conclui-se, então, que no evangelho de Marcos há um grupo que possui um conhecimento privilegiado sobre Jesus: o narrador, Deus, os demônios e nós, leitores.

Por outro lado, há dados de ocultamento. Coloco nesse contexto as expressões de surpresa proferidas por homens e mulheres em geral, e pelos discípulos em particular, diante de atos poderosos operados por Jesus.

Por exemplo, na sinagoga de Cafarnaum, quando Jesus expulsa o demônio, a reação é: "Todos se admiraram, a ponto de perguntarem entre si: Que vem a ser isto? Uma nova doutrina! Com autoridade ele ordena aos espíritos imundos, e eles lhe obedecem! (1.27); após a cura do paralítico em Cafarnaum: "retirou-se à vista de todos, a ponto de se admirarem todos e darem glória a Deus, dizendo: Jamais vimos coisa assimn!"(2.12). Os discípulos, por sua vez, ao verem Jesus andando sobre as águas, reputam ser um fantasma e ficam apavorados (6.49). Após Jesus entrar no barco e o vento cessar, eles ficam "atônitos" (6.51).

Os dados e fatos descritos até aqui se circunscrevem tematicamente sob a ótica da pregação do evangelho (1.1; 14-15). É a pregação e a ação do evangelho que despertam reações em demônios, população e discípulos.

Neste ponto posso propor uma aplicação que penso ser uma estratégia do narrador. A pregação do evangelho por Jesus implica no chamamento de pessoas para segui-lo e para servi-lo (1.16-20; 1.31; 2.13-14 etc). Como notado acima, tais pessoas não conhecem plenamente Jesus (e muito menos não têm conhecimento do Cristo e nem do Filho de Deus). Mas elas o seguem. Andam com ele, são surpreendidas por ele, e algumas vezes decepcionadas por ele. Mas elas o seguem! Isso é diferente dos demônios, que sabem quem é Jesus, mas o temem e fogem dele.

Portanto, no nível do conhecimento, o narrador do evangelho de Marcos nos propõe algo muito sério a respeito do discipulado. Pessoas se tornaram discípulas no processo de seguimento. E nós, leitores? Nós sabemos muitos mais do que eles. Temos um conhecimento privilegiado a respeito de Jesus. Mas nós o seguimos? Ou será que nosso conhecimento está mais próximo daquele que os demônios possuem?

A partir do final do capítulo 8 a ênfase muda. Esse será o tema da próxima mensagem.