Pretendo interagir com as mensagens de Paulo e Júlio buscando uma fresta dentro da argumentação que desenvolveram. Não é muito fácil, visto que cobriram uma área bem extensa da discussão a respeito do mito e a Bíblia.
Tenho consciência também que, de certa forma, esta mensagem deveria ser introdutória às dos colegas, mas esse problema se relativiza pela facilidade de utilizarmos um blog. Você pode lê-la e depois ler as mensagens anteriores. Ou não.
Tomarei como base afirmações do crítico literário canadense já falecido, Northrop Frye, no livro “O código dos códigos: a Bíblia e a literatura” (editado pela Boitempo em 2004).
O livro de Frye, segundo ele mesmo, surgiu quando constatou em suas aulas de literatura inglesa, principalmente ao discutir Milton e Blake, que seria praticamente impossível entendê-los, assim como muitos outros autores de fala inglesa, sem que conhecesse a Bíblia. Para o crítico, esses autores foram influenciados pelas Escrituras e seus textos estão impregnados dela.
Resolveu, então, escrever um livro sobre a Bíblia do ponto de vista da literatura. É de interesse para esta discussão o que é dito no cp. 1, intitulado “Linguagem 1”. Frye segue a proposta do filósofo italiano Giambattista Vico (1668-1744), que vê na história da humanidade três fases da linguagem: a poética, a heróica e a vulgar. Frye as rebatiza: hieroglífica, hierática e demótica. Segundo Vico, a primeira fase compreenderia um uso “poético” da linguagem, a segunda um uso “alegórico” e a terceira seria “descritiva”.
Essas fases são, para Frye, úteis para pensar a Bíblia dentro da história da linguagem. Dentro do período hieroglífico (poético) ele inclui “a maior parte da literatura grega anterior a Platão, sobretudo em Homero, ou nas culturas pré-bíblicas do Oriente Próximo, ou ainda muito do Velho Testamento [...] Nesse período há relativamente pouca ênfase na separação entre sujeito e objeto; ao invés disso, a ênfase recai sobre o sentimento de que sujeito e objeto estão interligados por uma energia ou poder comum a ambos” (2004, p. 28). Cita, para exemplificar, que nesse período as palavras são vistas como forças dinâmicas, que contém poder e que saber o nome de um Deus pode dar controle sobre ele. Importante também é saber que “Todas as palavras nesta fase da linguagem são concretas: em verdade não há abstrações” (2004, p. 29).
A segunda fase, a hierática (heróica ou nobre), iniciada com Platão, é assim denominada por ser produzida por uma elite intelectual. “Nesta segunda fase a linguagem é mais individualizada e as palavras tornam-se sobretudo a expressão exterior de pensamentos ou idéias anteriores. Sujeito e objeto tornam-se mais consistentemente separados e a ‘reflexão’, junto com sua ressonância de se olhar um espelho, vem ao proscênio verbal. As operações intelectuais da mente passam a distinguir-se das emotivas; assim torna-se possível a abstração, e o senso de que há maneiras válidas e não válidas de se pensar termina por desenvolver a concepção da lógica” (2004, p. 30). Fundamental para entender o novo momento é que “A base da expressão aqui está se movendo do metafórico, com seu sentido de identidade entre homem e natureza em termos de vida, poder ou natureza (‘isto é aquilo’), para uma relação muito mais metonímica (‘isto está no lugar daquilo’). Especificamente, palavras ‘estão no lugar’ de pensamentos, e são a expressão exterior de uma realidade interior” (2004, p. 30).
A terceira fase surge “[...] no século XVI, acompanhando algumas tendências da Renascença e da Reforma. Ela chega à ascendência cultural durante o século XVIII [...] Aqui partimos de uma separação muito clara entre sujeito e objeto, onde o sujeito se expõe, através da experiência dos sentidos, ao impacto de um mundo objetivo. O mundo objetivo é a ordem da natureza; o pensamento ou a reflexão seguem as sugestões da experiência dos sentidos e as palavras são o servomecanismo da reflexão. Prossegue o uso da prosa contínua [característico da fase anterior], mas todos os procedimentos dedutivos se vêem cada vez mais subordinados a um processo prévio indutivo e de coleta de material – os fatos” (2004, p. 36).
Bem, paro com as citações aqui, sob o perigo do tédio. Mas o importante para a discussão do mito é reconhecer a separação que se dá entre nossa linguagem e a da Bíblia. Enquanto estamos na terceira ou mesmo uma quarta fase, se pensarmos em termos de pós-modernidade, embora muito de nossa hermenêutica se construa sob os alicerces da terceira fase, a Bíblia está na primeira e na segunda fases. Isso gera um deslocamento interpretativo. Enquanto a Bíblia em determinados momentos usa uma linguagem poética para falar de Deus, do ser humano e do mundo, nós as interpretamos a partir da relação entre nós, sujeitos, e esses “objetos”, a partir da constituição “científica” dos fatos, característica da terceira fase. Isso fica claro quando Frye afirma que “Na terceira fase a literatura se adapta sobretudo através do que se chama de realismo, adotando categorias como probabilidade e plausibilidade como instrumentos retóricos” (2004, p. 50). É claro que o autor está falando de “literatura”, mas ela expressa os mecanismos que nós construímos para nossas relações humanas e com aquilo que nos cerca.
Por isso mesmo, devemos pensar que quando Bultmann propõe a desmitologização da Bíblia, ele está sob a pressão do encontro das três fases. E que a própria nomenclatura “mito”, como concebida hoje em termos sócio-históricos, é uma construção da terceira fase da linguagem estranha às duas anteriores.
Paro por aqui. Mas o livro de Frye tem um capítulo onde trabalha mais especificamente o mito. Acho que vale a pena voltar a ele.
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Professor Leonel,
ResponderExcluirSua explanação sobre o assunto possibilitou a compreensão da nomenclatura "mito" ligada às características da linguagem de primeira fase, quando analisadas pela Literatura Contemporânea.
Sônia,
ResponderExcluirA ideia era essa mesma. Fornecer um contexto para entender um termo que sofreu um desgaste histórico.
Olá Leonel ...
ResponderExcluirLegal, compreendi bem a questão. O texto citado ( Frye) ajuda ainda mais.
Leonel, seu texto me leva a ratificar que a interação do sujeito com o texto bíblico se dá por meio de um processo complexo, contraditório, dialético, dinâmico.
Vejo como um crime a tentativa de nós leitores da 3º e 4º fase, buscarmos a todo e qualquer custo a “razão” da fé.
Abraços.
Patrick,
ResponderExcluirOk. Obrigado!
Prof. Leonel,
ResponderExcluirPor motivos outros, mantenho o livro do Frye na gaveta; penso que está na hora de dá uma olhada nele. Parabéns pela clareza de expressão. Um abraço.
Francikley,
ResponderExcluirAcho que o livro de Frye vale a pena ser estudado na íntegra.