sexta-feira, 2 de abril de 2010

O texto hebraico de Gn 22,1-19 e traduções

Você poderá baixar o texto de Gn 22,1-19 com uma tradução de trabalho no seguinte endereço:
http://www.4shared.com/file/255556467/92ba72b3/Genesis_22_TM_e_traducao.html

e, no endereço a seguir, o texto hebraico e algumas versões modernas:
http://www.4shared.com/file/255559792/3f6d34fc/Genesis_22_TM_traduo_e_verses.html

Gn 22 sob o olhar literário

Leonel.

Gn 22 e o leitor

Entre várias possibilidades de análise de Gn 22, vou explorar aquilo que Eric Auerbach, crítico literário alemão e que analisou esse mesmo texto, chamou de “segundo plano”.

O segundo plano é um recurso que o narrador (aquele que conta a história) utiliza para chamar o leitor para participar da construção do sentido do texto. Para tanto, ele deixa aspectos da história em aberto, sem detalhes, até mesmo de modo ambíguo em alguns momentos. O leitor, ao identificar tais ausências, deverá preenchê-las com seu conhecimento, sentimentos, opções etc. Ou seja, o narrador conta com a experiência de vida do leitor para que o sentido do seu texto se complete.

Essa é a razão pela qual as narrativas bíblicas em certos momentos geram desconforto para alguns intérpretes, visto que elas se apresentam de certo modo abertas, sem um sentido exato definido.

No caso de Gn 22 o segundo plano pode ser percebido:

- depois da ordem para que Abraão fosse para determinado lugar a fim de sacrificar seu filho. O v. 3 diz que ele e o filho saíram e, no v. 4, ao “terceiro dia” ele “ergueu os olhos” e viu o lugar de longe. Auerbach lembra que nada é dito acerca da viagem de 3 dias. Não há nenhuma descrição da jornada, de lugares, de conversas que poderiam ter sido feitas, das noites passadas sob as estrelas, da comida. Nada. E aí o leitor é convidado a participar da história. Por que nada é dito? Por ter sido uma viagem repleta de sentimos de dor, de sofrimento, de perda. Afinal, pai e filho caminham em direção a um lugar de onde apenas um deles voltaria. Portanto, a ausência de detalhes realça o vazio do coração de um pai que sofre. Esse aspecto é realçado pelo levantar de olhos de Abraão. O olhar cabisbaixo expressa visivelmente o que se passava no coração daquele pai que sofria diante da ordem divina. A compreensão dessa ausência se dá por intermédio das possíveis experiências de dor sofridas anteriormente pelos leitores.

- na ausência divina no desenvolvimento da narrativa. De fato, ele aparece apenas no início (v. 1-2) e no final (v. 15-18). O restante do texto descreve o conflito e a dor de Abraão. Ele está sozinho com o filho. Deus está ausente. Isso convida o leitor novamente a preencher esse espaço deixado em branco. Por que Deus se ausenta? Para deixar o patriarca assumir a decisão a ser tomada. E, de fato, a decisão é feita. Deus se manifesta apenas depois disso. No último momento. Desse modo, o texto lembra que que os leitoes também, diante das questões que se apresentam, muitas vezes conflitantes com valores que possuímos, são deixados para decidir sozinhos. Parece difícil? Claro que é. Mas esse é o processo que Deus disponibiliza para que o leitor amadureça.

- uma última observação. O narrador diz que Deus pôs Abraão “à prova” (v. 1). Somente nós, leitores, sabemos disso. Afinal, Deus irá se manifestar novamente ao ancião apenas no final da história. Para Abraão havia apenas a ordem sem sentido, desconexa, até mesmo contrária àquilo que conhecia do Deus que o havia chamado. Aí entra uma questão linguística interessante. O termo traduzido por “provar” é importante. De certa forma, o que define se a pessoa será “provada” ou “tentada” é ela mesma. Se, diante de um problema, ela reagir positivamente, como Deus deseja, ela foi provada e aprovada. Se, pelo contrário, sua resposta ao problema foi negativa, com um resultado igualmente negativo, essa situação se definirá como uma “tentação” para ela. Diante disso, o leitor deve decidir: Abraão foi provado ou tentado? Provado, é claro, responderá. Mas, ao mesmo tempo, é questionado: diante de situações semelhantes, você será tentado ou provado? Como reagirá?

(o livro de Erich Auerbach chama-se: "Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental". Ed. Perspectiva. A discussão sobre Gn 22 está no primeiro capítulo: A cicatriz de Ulisses).

Um olhar: semióticos, plurais, crentes

Sou o Júlio. Professor, pastor, doutor, leitor. Faculdade Unida; Escola Superior de Teologia; FAENOR; FTML; FTL; SBL; SOTER; IPIB; CEBI; etc. Siglas-identidades-distrações.

Textos são entroncamentos de diversos discursos e práticas. Por isso, oferecem a quem os lê diversas possibilidades de compreensão, diálogo, apropriação, deformação. Entroncamentos mostram possibilidades, mas também criam temores. Ah! Antigo e sempre presente temor de pegar o caminho errado. Textos são máquinas do tempo onde passado presente e futuro se encontram e reencontram constantemente. Encontros e reencontros podem gerar prazer, alegria, esperança; mas também frustração, medo, dor, desespero. Textos são frágeis universos de sentido, contra-sentido, sem-sentido, além do sentido, aquém do sentido. Sentido – sentimento, significado, significação, direção, sensação. Por isso, textos demandam diferentes olhares. Propõem as mais variadas leituras de si mesmos. Convidam à imaginação, criação, análise, conversação. Textos que valem a pena ser lidos jamais cessam de ser lidos. Cada leitura, fechando uma porta, abre várias outras, especialmente quando a polícia da verdade insiste em dizer que só há uma porta...

Para começar: Gênesis 22,1-19. Estranha e familiar narrativa. Relato de um quase assassinato legitimado pela própria divindade. Filho morto pelo pai. É claro, a mãe foi deixada de fora da narrativa. Entroncamento de discursos pró-vida e pró-morte; discursos da realeza e do povão; discursos judaicos, cristãos, muçulmanos, filosóficos, literários, cinematográficos, e tantos mais. Figuras míticas-emblemáticas: Abraão, Isaque, Jumento, Empregados, Caminho, Altar, Fogo, Lenha, Faca, Mensageiro-Anjo, Carneiro, Montanha, Matagal. E, é óbvio, a figura mais estranha desta narrativa: YHWH-Deus. Reparou nas ações de YHWH-Deus? Chama Abraão, tenta Abraão (ou testa Abraão?), ordena-lhe sacrificar seu filho amado, descobre que Abraão O teme. Mas manda mensageiro na hora de impedir a morte de Isaque. Omite-se na hora H? Supremo Poder ou Suprema Indiferença? Ou?

Temor e Tremor? Fé? Angústia? Obediência? Pai? Morte? Vida? Holocaustos? Semi-nômades? Reis? Intrigas? De que nos fala este estranho e tão familiar texto? Genealogias. Arqueologias. Recepções. Transmissões. Entroncamentos. Rizomas. Enfim, olhares. Para não dizer toques, gustações, olfações, audições!

Olhar literário

João Leonel.

Minha formação acadêmica é um tanto variada. Fiz teologia no Seminário Presbiteriano do Sul, Campinas, SP. Mestrado em Ciências da Religião com concentração em Bíblia na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Doutorado em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente curso pós-doutorado em História da Leitura no Centro de História da Cultura, Universidade Nova de Lisboa, Portugal.

O Olhar Literário

Partindo da constatação de que a Bíblia é constituída de textos que em sua diversidade tem em comum objetivos retóricos claros, seja orientação, instrução, consolo, convencimento etc, o olhar literário dará atenção especial às estratégias literárias utilizadas para alcançar tais objetivos. O pressuposto de trabalho, portanto, é que os livros e textos bíblicos, antes de serem uma mera coleção de ditos desconexos, são intencionalmente organizados e estruturados visando atingir seus ouvintes/leitores. Em consonância com seu propósito, este olhar dará prioridade à análise sincrônica, ou seja, ao trabalho com o texto em sua forma final, mas utilizará igualmente, quando necessário e útil, dados de análise diacrônica com o objetivo de elucidar questões históricas pertinentes aos textos bíblicos.

Os três olhares

Todos são muito bem-vindos a este blog. Como consta na descrição acima, queremos exercitar um olhar múltiplo sobre a Bíblia. Temos consciência de que, em geral, a interpretação das Escrituras é uma prática individual e solitária, pelo menos em um nível acadêmico ou próximo dele. É exatamente essa constatação que desafiou os editores do blog a buscarem construir um caminho oposto, alternativo. O tempo dirá se conseguimos desenvolver algo que seja útil e proveitoso.

Queremos praticar a interdisciplinaridade tão falada mas pouco praticada na área teológica. Os autores do blog possuem formação bíblica em comum, mas especificações diferenciadas a partir de suas áreas de interesse. A partir desse contexto, nosso desejo é, cônscios de que cada um de nós não consegue abarcar a totalidade da complexidade dos conteúdos bíblicos individualmente, fazermos um trabalho coletivo e solidário de interpretação.

Seguiremos a seguinte metodologia: semanalmente escolheremos um texto bíblico a  ser comentado. Cada um dos editores postará um comentário seguindo sua abordagem particular. A partir das três mensagens, trocaremos opiniões e proporemos complementações.

As próximas mensagens trarão uma rápida  apresentação dos editores e as descrições dos três olhares que serão exercitados neste blog, cada um deles pertinente à área de pesquisa acadêmica de seus representantes.

Esperamos que gostem e que aproveitem aquilo que será escrito aqui!

 João Leonel, Júlio P. T. Zabatiero, Paulo Nogueira
Editores