Posto minha última mensagem sobre 1 Samuel 1. Não que o assunto se esgote aqui, mas sempre é interessante deixar espaços em aberto para que os leitores contribuam com suas interpretações.
Foco neste post a questão dos conflitos presentes no texto. Eles se manifestam no desenvolvimento do enredo conforme descrevo abaixo.
O versículo 5 introduz o primeiro conflito. Ele já está em germe no versículo 2 quando o narrador informa que Penina possuía filhos e Ana não. Mas a tensão propriamente dita será construída a partir do bloco de versículos 5-8. Todas as tensões giram em torno da questão filho x não filho. Ainda no versículo 5 o leitor é introduzido ao conflito mais profundo – entre Deus e Ana.
Outro conflito se configura no versículo 6: Penina x Ana. Há uma espécie de complô entre Deus e Penina contra Ana. O Senhor se opunha a Ana, visto que a havia deixado estéril. Agora Penina se junta ao Senhor para humilhá-la, assumindo, ambos, a posição de antagonistas. Se em um primeiro momento não está claro que Ana é a protagonista, nesta segunda tensão começa a se delinear sua posição central na narrativa.
Ainda outro conflito coloca em oposição Elcana e Ana (v. 8). Tal oposição não se manifestou anteriormente na relação entre eles. Mas já era pressentida. Elcana não consegue dar fim à angústia de Ana, por isso sua pergunta inicialmente não recebe resposta. Indiretamente, sua questão: “Não te sou eu melhor do que dez filhos?”, traz à tona as tensões já existentes entre Ana, o Senhor e Penina. O círculo conspiratório contra Ana se fecha.
A partir do versículo 9 Ana ganha posição de destaque como protagonista. O texto tem seu ponto alto em sua busca por resolução. Devemos lembrar que é justamente nesse ponto que o narrador dá a deixa ao leitor para interagir com a protagonista através do tempo psicológico ao omitir o conteúdo de sua oração. Tal estratégia fará com que o leitor crie a expectativa de, à semelhança de Ana, experimentar a ação transformadora do Senhor em sua própria vida.
Ela come e bebe, se levanta e vai orar – ela busca a resolução. Deus é o responsável por seu sofrimento, por isso deve-se concluir que ele tem a responsabilidade de desfazer o mal causado. Mas Ana não está disposta a esperar passivamente. Ela assume uma postura ativa e sai em busca de ajuda.
Esta é uma resolução parcial, pois não sabemos o que acontecerá. Também, de certo modo, a tensão se intensifica, visto que agora Ana interpela o Senhor para resolver o conflito entre eles. Quando pensaríamos que a partir desse momento os problemas seriam resolvidos, surge outra tensão e uma nova humilhação. O narrador age desse modo para dramatizar a narrativa. Eli a tem por embriagada, pois na intensidade de sua oração ela move os lábios sem emitir som. A oração silenciosa era algo estranho à época. Nesse momento, nem o leitor, nem qualquer outro personagem tem conhecimento do conteúdo da oração. A tensão com Eli é também a tensão com Deus, pois o sacerdote é seu representante.
No versículo 17 se dá a resolução do conflito com Eli. O último a confrontá-la é o primeiro a reatar relacionamento com ela. O sacerdote lhe dá uma palavra de encorajamento, esperançoso de que Deus atenda ao seu pedido. Em função dessa palavra o versículo 18 nos diz que o semblante de Ana já não era triste. No versículo 19 ela já participa da adoração com sua família. O verbo se encontra no plural, ao contrário do versículo 3, quando a adoração era um ato individual de Elcana. Ana demonstra crer na palavra do sacerdote e, pela fé, sua tensão com o Senhor começa a ser resolvida.
A próxima resolução liga-se a Elcana e prossegue paralelamente à resolução da tensão com o Senhor. O filho gerado é a resposta da pergunta: “Não te sou eu melhor do que dez filhos?” (v. 8). Não! É a resposta categórica, embora implícita. Melhor é o presente de Deus a Ana! É interessante notar que Deus apenas se lembra, mas quem concebe é Ana (v. 19-20). A protagonista ainda permanece em primeiro plano.
No final, Ana recusa-se a voltar ao templo antes de poder confirmar a consagração do menino. Sem o menino desmamado, o santuário continuaria a representar humilhação para ela. Nesse sentido, não haveria ainda resolução do conflito entre ela e Deus.
Quando finalmente volta a Siló, com o filho já desmamado, se dá a resolução final. Ana cumpre todo o processo cultual para consagrar a vida de Samuel a Deus. Portanto, o ponto central da narrativa não é a questão de Ana poder ou não conceber e as implicações pessoais que isso poderia gerar. A questão é, sim, a falta de um filho, mas não um filho para ela, e sim um filho para Deus – Ana entrega, como expressão de gratidão, o filho gerado àquele que permitiu que ela concebesse.
Conclui-se, a partir dessa análise, que a mensagem central do texto é o conflito relacional entre Ana e o Senhor demonstrado na esterilidade e solucionado na concepção. Não existe dramaticidade em torno da esterilidade. A ausência de filhos na narrativa não enfatiza as questões sociais que se seguiriam se fosse aplicada uma interpretação unicamente histórica, mas sim o problema no relacionamento com Deus que isso implica. Não ter filhos significava ser esquecida por Deus. Por isso Ana diz que o Senhor se “lembrou” dela. Esse conflito relacional é resolvido porque Deus deixa de se opor a ela e se torna seu aliado. Segundo as próprias palavras de Ana: “Por este menino orava eu; e o SENHOR me concedeu a petição que eu lhe fizera (v. 27)”.
Na conclusão há um momento de adoração envolto por um sentimento de gratidão quando os pais entregam a vida de Samuel ao Senhor. É significativo recordar que existem três momentos de adoração na narrativa, esboçando começo, meio e fim. No versículo 3 a adoração significa humilhação para Ana, quando só Elcana adora; no versículo 19 Ana adora por fé, por causa da palavra do sacerdote; e agora, no versículo 28, ambos adoram com gratidão devido à consagração de Samuel. Nessa adoração Elcana e Ana estão em situação de igualdade. Ir ao templo para adorar, o que antes era um peso para Ana, agora é motivo de gratidão e de identificação com seu esposo.
sábado, 3 de julho de 2010
terça-feira, 29 de junho de 2010
Paixões e Valores em I Sm 1 - de novo
Bem, agora meu interesse recai sobre Elcana, o marido de Ana. Que paixões textuais de Elcana podemos encontrar?
Elcana, como já dito pelo Leonel, é personagem secundário. Está na narrativa para realçar características da personagem principal, Ana. Secundário enquanto personagem, mas primário na sociedade israelita [pelo menos na sociedade de papel] - ele é apresentado (1,1) como efraimita (tribo de importância em Israel naqueles tempos) e quatro gerações de antepassados são nomeadas (sinal de status social elevado naqueles tempos). É, também, apresentado como fiel seguidor de YHWH dos Exércitos (1,3), indo anualmente a Siló para participar da festa de YHWH com as mãos cheias, como ensinava o Deuteronômio. Enfim, é marido de duas esposas, Ana e Penina, a primeira, estéril (provisoriamente), a segunda, mãe de "todos os filhos e filhas" de Elcana. Como fiel adorador, ao sacrificar, comia parte do animal sacrificado na companhia de sua família, distribuindo às esposas e filhos as porções devidas.
Bem, aqui é que o retrato passional de Elcana é manifesto no texto: dele se diz que "amava" a Ana (´ähëb - o verbo está no perfeito qal, indicando que, de fato, ele a amava). Por que ele a amava, dava a Ana uma porção diferenciada da refeição litúrgica (o TM é de difícil tradução. As duas opções são antagônicas - ou ele dava a Ana porção "única", menor do que a dada a Penina, ou ele lhe dava uma porção "dupla". Para efeitos de interpretação, no final das contas, não há dificuldade, na medida em que o que importa semanticamente é que a porção de Ana era diferente da de Penina). O verbo amar não é usado constantemente para se referir à relação entre esposos na BH, de modo que seu uso aqui deve ser destacado. O texto modaliza a relação de Elcana e Ana como relação de amor da parte dele para com ela. É interessante, posto que se esperava dos inferiores que amassem os superiores - este uso do verbo amar é comum na literatura de cunho deuteronomista na BH. Ao descrever Elcana como alguém que ama sua esposa, o texto, de certa forma, inverte os papéis sociais, e subordina Elcana a Ana. O sentimento de Elcana, assim, pode ser descrito como forte, intenso, pois de outra forma ele poderia ter se divorciado da esposa que não lhe dava filhos.
A intensidade do amor de Elcana é explicitada no verso 8, em que pergunta a Ana: "Não te sou eu melhor de que dez filhos?" Pergunta típica de marido excessivamente amoroso. Ana sofre e ele tenta compensar seu sofrimento dando-lhe o melhor de si, chegando ao ponto de tratá-la diferenciadamente de Penina e seus filhos. Excesso de amor, carência de justiça. Ao tentar ajudar Ana, Elcana não vê a situação do ponto de vista dela, mas da dele mesmo. O amor de Elcana é tão intenso que o torna egocêntrico e injusto para com Penina. Tão intenso que o torna idólatra - pois Elcana assume o papel de YHWH e cumula Ana de bênçãos - mas às expensas de Penina.
Amor tão grande que Elcana perde o discernimento e se mete em confusões insolúveis. Pena que a narrativa se afaste do drama familiar e se concentre em Ana e Samuel. Eu gostaria muito de saber como era o dia-a-dia da família adrministrada amorosamente, mas de forma pouco inteligente, por Elcana.
Uma tríplice pergunta: O amor de Elcana era tão afetado pelo patriarcalismo, que se tornou egocêntrico, idólatra e injusto? Ou, o amor de Elcana era tão verdadeiro e intenso, que se tornou egocêntrico, idólatra e injusto? Ou, o amor é uma paixão tão complicada e perigosa que se não for bem dosado (pessoal e socialmente) inevitavelmente se torna egocêntrico, idólatra e injusto? Afinal de contas, como diz a poetisa de Cantares, "o amor é forte como a morte". Se o amor não fosse perigoso, não seria melhor descrevê-lo como "forte como a vida"? ...
Elcana, como já dito pelo Leonel, é personagem secundário. Está na narrativa para realçar características da personagem principal, Ana. Secundário enquanto personagem, mas primário na sociedade israelita [pelo menos na sociedade de papel] - ele é apresentado (1,1) como efraimita (tribo de importância em Israel naqueles tempos) e quatro gerações de antepassados são nomeadas (sinal de status social elevado naqueles tempos). É, também, apresentado como fiel seguidor de YHWH dos Exércitos (1,3), indo anualmente a Siló para participar da festa de YHWH com as mãos cheias, como ensinava o Deuteronômio. Enfim, é marido de duas esposas, Ana e Penina, a primeira, estéril (provisoriamente), a segunda, mãe de "todos os filhos e filhas" de Elcana. Como fiel adorador, ao sacrificar, comia parte do animal sacrificado na companhia de sua família, distribuindo às esposas e filhos as porções devidas.
Bem, aqui é que o retrato passional de Elcana é manifesto no texto: dele se diz que "amava" a Ana (´ähëb - o verbo está no perfeito qal, indicando que, de fato, ele a amava). Por que ele a amava, dava a Ana uma porção diferenciada da refeição litúrgica (o TM é de difícil tradução. As duas opções são antagônicas - ou ele dava a Ana porção "única", menor do que a dada a Penina, ou ele lhe dava uma porção "dupla". Para efeitos de interpretação, no final das contas, não há dificuldade, na medida em que o que importa semanticamente é que a porção de Ana era diferente da de Penina). O verbo amar não é usado constantemente para se referir à relação entre esposos na BH, de modo que seu uso aqui deve ser destacado. O texto modaliza a relação de Elcana e Ana como relação de amor da parte dele para com ela. É interessante, posto que se esperava dos inferiores que amassem os superiores - este uso do verbo amar é comum na literatura de cunho deuteronomista na BH. Ao descrever Elcana como alguém que ama sua esposa, o texto, de certa forma, inverte os papéis sociais, e subordina Elcana a Ana. O sentimento de Elcana, assim, pode ser descrito como forte, intenso, pois de outra forma ele poderia ter se divorciado da esposa que não lhe dava filhos.
A intensidade do amor de Elcana é explicitada no verso 8, em que pergunta a Ana: "Não te sou eu melhor de que dez filhos?" Pergunta típica de marido excessivamente amoroso. Ana sofre e ele tenta compensar seu sofrimento dando-lhe o melhor de si, chegando ao ponto de tratá-la diferenciadamente de Penina e seus filhos. Excesso de amor, carência de justiça. Ao tentar ajudar Ana, Elcana não vê a situação do ponto de vista dela, mas da dele mesmo. O amor de Elcana é tão intenso que o torna egocêntrico e injusto para com Penina. Tão intenso que o torna idólatra - pois Elcana assume o papel de YHWH e cumula Ana de bênçãos - mas às expensas de Penina.
Amor tão grande que Elcana perde o discernimento e se mete em confusões insolúveis. Pena que a narrativa se afaste do drama familiar e se concentre em Ana e Samuel. Eu gostaria muito de saber como era o dia-a-dia da família adrministrada amorosamente, mas de forma pouco inteligente, por Elcana.
Uma tríplice pergunta: O amor de Elcana era tão afetado pelo patriarcalismo, que se tornou egocêntrico, idólatra e injusto? Ou, o amor de Elcana era tão verdadeiro e intenso, que se tornou egocêntrico, idólatra e injusto? Ou, o amor é uma paixão tão complicada e perigosa que se não for bem dosado (pessoal e socialmente) inevitavelmente se torna egocêntrico, idólatra e injusto? Afinal de contas, como diz a poetisa de Cantares, "o amor é forte como a morte". Se o amor não fosse perigoso, não seria melhor descrevê-lo como "forte como a vida"? ...
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