Bem, agora meu interesse recai sobre Elcana, o marido de Ana. Que paixões textuais de Elcana podemos encontrar?
Elcana, como já dito pelo Leonel, é personagem secundário. Está na narrativa para realçar características da personagem principal, Ana. Secundário enquanto personagem, mas primário na sociedade israelita [pelo menos na sociedade de papel] - ele é apresentado (1,1) como efraimita (tribo de importância em Israel naqueles tempos) e quatro gerações de antepassados são nomeadas (sinal de status social elevado naqueles tempos). É, também, apresentado como fiel seguidor de YHWH dos Exércitos (1,3), indo anualmente a Siló para participar da festa de YHWH com as mãos cheias, como ensinava o Deuteronômio. Enfim, é marido de duas esposas, Ana e Penina, a primeira, estéril (provisoriamente), a segunda, mãe de "todos os filhos e filhas" de Elcana. Como fiel adorador, ao sacrificar, comia parte do animal sacrificado na companhia de sua família, distribuindo às esposas e filhos as porções devidas.
Bem, aqui é que o retrato passional de Elcana é manifesto no texto: dele se diz que "amava" a Ana (´ähëb - o verbo está no perfeito qal, indicando que, de fato, ele a amava). Por que ele a amava, dava a Ana uma porção diferenciada da refeição litúrgica (o TM é de difícil tradução. As duas opções são antagônicas - ou ele dava a Ana porção "única", menor do que a dada a Penina, ou ele lhe dava uma porção "dupla". Para efeitos de interpretação, no final das contas, não há dificuldade, na medida em que o que importa semanticamente é que a porção de Ana era diferente da de Penina). O verbo amar não é usado constantemente para se referir à relação entre esposos na BH, de modo que seu uso aqui deve ser destacado. O texto modaliza a relação de Elcana e Ana como relação de amor da parte dele para com ela. É interessante, posto que se esperava dos inferiores que amassem os superiores - este uso do verbo amar é comum na literatura de cunho deuteronomista na BH. Ao descrever Elcana como alguém que ama sua esposa, o texto, de certa forma, inverte os papéis sociais, e subordina Elcana a Ana. O sentimento de Elcana, assim, pode ser descrito como forte, intenso, pois de outra forma ele poderia ter se divorciado da esposa que não lhe dava filhos.
A intensidade do amor de Elcana é explicitada no verso 8, em que pergunta a Ana: "Não te sou eu melhor de que dez filhos?" Pergunta típica de marido excessivamente amoroso. Ana sofre e ele tenta compensar seu sofrimento dando-lhe o melhor de si, chegando ao ponto de tratá-la diferenciadamente de Penina e seus filhos. Excesso de amor, carência de justiça. Ao tentar ajudar Ana, Elcana não vê a situação do ponto de vista dela, mas da dele mesmo. O amor de Elcana é tão intenso que o torna egocêntrico e injusto para com Penina. Tão intenso que o torna idólatra - pois Elcana assume o papel de YHWH e cumula Ana de bênçãos - mas às expensas de Penina.
Amor tão grande que Elcana perde o discernimento e se mete em confusões insolúveis. Pena que a narrativa se afaste do drama familiar e se concentre em Ana e Samuel. Eu gostaria muito de saber como era o dia-a-dia da família adrministrada amorosamente, mas de forma pouco inteligente, por Elcana.
Uma tríplice pergunta: O amor de Elcana era tão afetado pelo patriarcalismo, que se tornou egocêntrico, idólatra e injusto? Ou, o amor de Elcana era tão verdadeiro e intenso, que se tornou egocêntrico, idólatra e injusto? Ou, o amor é uma paixão tão complicada e perigosa que se não for bem dosado (pessoal e socialmente) inevitavelmente se torna egocêntrico, idólatra e injusto? Afinal de contas, como diz a poetisa de Cantares, "o amor é forte como a morte". Se o amor não fosse perigoso, não seria melhor descrevê-lo como "forte como a vida"? ...
terça-feira, 29 de junho de 2010
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