terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A vida em análise – Lei e Graça. 5.1-12.

Terminada a grande seção da carta na qual Paulo procura argumentar a favor de suas posições teológicas, tem início novo bloco, agora com exortações práticas visando novas posturas dos gálatas.

O bloco vai de 5.1-6.10. E pode ser dividido em três unidades: 5.1-12, com advertências sobre a submissão à Lei (que será abordada nesta mensagem); 5.13-26, com advertências contra a carne; 6.1-10, com diversas exortações de caráter positivo. Da forma como proponho a divisão, fica claro que as duas primeiras unidades possuem caráter predominantemente negativo, enquanto que a última é orientada por uma perspectiva positiva.

Como Júlio em seu último post tratou do primeiro bloco, com a discussão a respeito da liberdade cristã, farei pequenos apontamentos ao texto.

O capítulo 5 inicia retomando o tema do anterior: a liberdade. Em 4.31 o apóstolo conclui sua argumentação afirmando que ele e os gálatas, e, por decorrência, todos os cristãos, são filhos da mulher livre, isto é, de Sara, filhos da aliança da graça. Agora ele desenvolve de modo concreto esse aspecto. Infelizmente, pelo contexto religioso em que os cristãos da Galácia viviam, Paulo precisa esclarecer inicialmente o preço a ser pago por eles.

O tema da Lei retorna. Tema e ponto de discórdia central na carta. Ponto de apoio dos judaizantes que estavam infiltrados entre os gálatas. E tema a ser esclarecido por Paulo, o que de fato foi feito em toda sua argumentação.

Agora, entretanto, não há mais argumentos. Pelo contrário, afirmações categóricas são feitas sem temor. Uma oposição central é construída: Lei x graça. O instrumento concreto da Lei junto aos gálatas é a circuncisão. E a prova concreta do apego à graça é a fé. São elementos e posturas irreconciliáveis. Ou vive-se uma ou outra. Nunca as duas ao mesmo tempo.

Indo do concreto para o abstrato, o fato dos gálatas ou alguns deles estarem ou terem se submetido à circuncisão significava, no plano teológico, que eles estavam ligados à Lei e, portanto, desligados ou fora do alcance da graça. Com isso, se tornavam escravos da Lei, uma vez que ela exige fidelidade total. É necessário cumpri-la toda.

Por outro lado, Paulo insta que eles vivam pela fé, evidência da relação com Cristo mediante a graça. E que a fé, necessariamente, há de redundar em ações concretas de amor (v. 6).

Paulo aproveita as exortações para fustigar os judaizantes (v. 7-8) e para enviar um recado: tais pessoas sofrerão a condenação (v. 10), sem maiores especificações, deixando entrever, pela linguagem velada, que possivelmente os gálatas e tais pessoas sabiam do que se tratava.

Uma questão que foge da argumentação de Paulo está no v. 11: “Eu, porém, irmãos, se ainda prego a circuncisão...”. Não é possível definir com clareza o que isto quer dizer. Hipoteticamente pode-se pensar que em algum momento os judaizantes usaram como argumento para enfraquecer Paulo o fato de que ele foi anteriormente um judeu legalista mais radical do que todos eles. Talvez se possa pensar também que os inimigos do apóstolo estavam divulgando falsas informações, dizendo que Paulo ainda era a favor da circuncisão.

Pensando contextualmente, parece-me que o mais importante neste texto é o chamado à coerência feita por Paulo. Ou se está de um lado ou do outro. Não é possível viver nos dois lados. Não se pode submeter-se à circuncisão e, ao mesmo tempo, afirmar viver sob a graça.

Como isso é difícil, principalmente em termos de vida cristã. Temos uma tendência à incoerência. Com a mesma prontidão com que afirmamos que um amigo ou irmão querido, diante de um erro, deve ser compreendido pelos demais, frente ao mesmo erro acusamos e julgamos outros com quem não temos afinidade.

Qual a extensão da graça em nossa vida? Em quais áreas ela está presente, se manifestando pela fé e amor? Qual a extensão da Lei em nós? Em que áreas ela se manifesta mediante circuncisões metafóricas?

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Alegoria – problema ou solução? – 4.21-31 – Parte II

Passo agora à análise do texto.

A perícope se organiza de forma clara. Começa com uma pergunta (v. 21) dirigida aos gálatas, como Paulo já fez anteriormente (3.1-5; 4.9, 15-16), identificada pelo pronome da segunda pessoa plural (vós). Em seguida o próprio apóstolo responde a pergunta (v. 22-30) utilizando a alegoria do texto bíblico. A conclusão (v. 31) vem na forma de afirmação na qual o próprio Paulo se inclui, indicada pelo pronome da primeira pessoa plural (nós, implícito).

Como o cerne da discussão na carta é a validade e interpretação da Lei, Paulo volta a ela a partir de uma pergunta. Ele não discute a interpretação da Lei, mas sua própria razão de ser e, com isso, sua relevância para a atualidade de seus leitores. Para isso, tem como ponto de partida o alto grau de reverência que os gálatas nutriam para com a Lei (“os que quereis estar sob a lei”). Sua pergunta é provocadora: “acaso não ouvis a lei?”. “Ouvir” revela a prática do contato com as Escrituras naquele momento, visto que praticamente não havia cópias privadas dos textos sagrados. O contato com eles se dava, via de regra, nas reuniões em que se faziam as leituras litúrgicas. Mas a ideia também é de que não basta ouvir, mas sim compreender, aplicar.

Ao responder sua própria pergunta (v. 22-30) Paulo entra no campo dos adversários. Afinal, os legalistas haviam ensinado e convencido os cristãos da Galácia a se submeterem à Lei. Agora o apóstolo adentra esse terreno para, nele, questionar o real entendimento da Lei pelos gálatas. E o faz utilizando a alegoria. Qual a função dela? Deixar de lado a argumentação que visa o convencimento, uma vez que traz consigo a ideia de que você vence o outro (visto que ele está em dúvidas sobre a validade desse método – v. 20). O objetivo agora é atrair o oponente por outro caminho. É tratá-lo como igual, como alguém que tem conhecimento. Segundo Betz, Paulo “leva os gálatas a encontrar a verdade por eles mesmos” (Hermeneia, Galatians, p. 240).

Para Paulo, neste momento “ouvir” a Lei significa compreender seu sentido alegórico.
Em sua exposição, Paulo cita livremente o AT. Afinal, ao dizer que Abraão teve dois filhos (v. 22) ele omite outros (cf. Gn 25.1-6). Mas estes não interessam para sua alegoria. Mais importante do que os filhos são suas mães: Hagar e Sara (que não é mencionada, mas subentendida). Elas apresentam a dualidade: liberdade x escravidão, que é um tema desenvolvido na carta (2.4; 3.26-28). As mulheres representam duas alianças, duas formas de Deus tratar com o ser humano.

Os v. 22 e 23 apresentam a seleção de temas do AT. A partir do v. 24 Paulo introduz a interpretação alegórica. O nascimento segundo “a carne”, de forma natural, e o nascimento segundo “a promessa”, de forma sobrenatural, tem um sentido para Paulo. Aí está a alegoria. É preciso compreender que ela não surge do nada. O texto permite essa abertura. É como se o próprio texto nos questionasse: o que isso que eu disse quer dizer? Aquele que vem do nascimento natural significa a vida que Israel experimentara e experimenta naquele momento, que segundo Paulo é de escravidão. Essa aliança provém da escrava Hagar e vincula-se ao monte Sinai, onde a Lei foi dada a Moisés. Isaque, por sua vez, é o filho da promessa, livre, anterior à Lei e, portanto, sem necessidade de submeter-se a ela.

A conclusão de que os gálatas são “filhos da promessa, como Isaque” (v. 28) não é nova. Ela já foi afirmada em 3.29 em função da relação com Cristo. A novidade é que esse fato implica na negação da filiação vinculada a Hagar e à escravidão trazida pela Lei.

O v. 29 traz outra aplicação da alegoria. Assim como no passado, quando o nascido sob a carne perseguida o nascido segundo promessa, agora isso se dá novamente. Os cristãos são perseguidos pelos judeus e pelos cristãos legalistas. O que fazer? Negar o filho da escrava e sua aliança (v. 30). As duas alianças são irreconciliáveis. Portanto, indiretamente Paulo está dizendo que os judaizantes não devem fazer parte da comunhão dos cristãos gálatas.

Segundo Betz, o v. 31 conclui o bloco de 3.1-4.31 sob o tema da liberdade, que será retomado a partir de 5.1.

Paulo se inclui na conclusão (“somos”). Ele também é filho da mulher/aliança livre. Por que faz isso? Certamente para buscar identificação e proximidade com os gálatas. Ao trabalhar os textos do AT de forma alegórica, desenvolvendo afirmações que os gálatas não apenas entenderiam, mas também concordariam, o apóstolo firma laços de identidade e comunhão.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Alegoria – problema ou solução? – 4.21-31 – Parte I

A alegoria, definitivamente, é um sério problema hermenêutico. E isso desde os inícios da história da interpretação cristã. Afinal, um método que parece desprovido de método ou fundamentos tem tudo para ser um problema. Pelo menos para a hermenêutica historicista.

Paulo conclui a seção anterior (4.20) afirmando estar “perplexo a vosso respeito”, expressão que contém elevado grau de desânimo. Parece que ele tem grandes dúvidas a respeito de seu poder de convencimento. Mesmo o argumento relacional desenvolvido em 4.12-20 parece não surtir efeito. O que fazer? Utilizar a alegoria bíblica. Para Paulo, pelo menos, ela é o último e mais importante argumento a ser usado. Se lembrarmos que ele está concluindo a Probatio, o momento na carta em que procura provar sua posição com a utilização de diversos argumentos, é surpreendente, pelo menos para nós, intérpretes cristãos, que ele tenha reservado a alegoria para o final.

Obviamente não há espaço para discussões aprofundadas sobre a alegoria neste post, mas há uma questão de base que podemos abordar.

A hermenêutica/exegese historicista tem como pressuposto a premissa de que os textos bíblicos devem testemunhar a realidade dos eventos que descrevem. Desse ponto de vista, textos narrativos remetem o leitor aos fatos históricos que são seu fundamento. E textos argumentativos remetem o leitor ao contexto histórico produtor da relação entre remetente e destinatário. Portanto, os textos estão sempre e indissoluvelmente ligados aos fatos dos quais dão testemunho.

Diante dessa postura teórica toda proposta que veja o texto transcender ao papel de testemunha é vista negativamente. O texto deve ser um servo da história. Se não for, ele torna-se perigoso, pois se abre para sentidos não controláveis, diriam os hermeneutas historicistas. Por isso a interpretação alegórica tão presente nos primeiros séculos do cristianismo foi negada, principalmente a partir da Reforma Protestante e por círculos fundamentalistas contemporâneos.

Essa preocupação com a libertação de sentido dos textos bíblicos é saudável? Talvez, mas o problema é a concepção de texto inadequada ou pelo menos limitadora que tal perspectiva contém. Afinal, todo texto transcende. Não há texto que se encerre em si mesmo. Todo texto é um ponto de partida. E mesmo os historicistas devem concordar com essa afirmação. Afinal, para eles, os textos bíblicos são um ponto de partida para a reconstrução histórica. Isso significa que, para os hermeneutas historicistas, o texto também transcende. O problema é que é uma abertura limitada e fechada. O texto sai de si para logo em seguida tornar-se vassalo de reconstruções, hipotéticas, diga-se de passagem, de fatos históricos.

Todo texto, do ponto de vista pragmático, está inacabado. Obviamente ele traz propostas de sentidos ligadas ao seu autor. Mas a compreensão, que envolve mais do que o sentido primeiro, está aberta à espera do leitor. Esse é um aspecto mais do que normal em textos literários. Todo leitor, durante e após a leitura, reflete sobre o(s) sentido(s). O grau de aproximação daquilo que o autor pretendia depende de inúmeros fatores. É claro que o leitor pode chegar a conclusões totalmente díspares daquilo que o texto apresenta. Mas, de modo geral, toda leitura apresenta uma relação entre texto e os aspectos constituintes do mundo do leitor que exercem influência em sua compreensão.

Portanto, ao lermos uma obra, somos lançados por ela a vários níveis de reflexão. Em outras palavras, o texto transcende a si mesmo. E é bom que seja assim. O texto bíblico não foge a esse processo. Ao lermos a Bíblia, também somos lançados à frente, e não para trás, em busca de reflexões que façam sentido para nós.

Digo tudo isso para que entendamos que a alegoria praticada largamente nos inícios do cristianismo, e em Gálatas por Paulo, faz parte desse processo de relacionamento de leitores com textos. Com a alegoria, o intérprete pergunta-se sobre a ampliação e aprofundamento do sentido de diversos textos. O texto está ligado apenas ao passado? Diz respeito apenas a narrativas de fatos ocorridos com este ou aquele homem ou mulher bíblico? Não. As narrativas são pontes para ligar sentidos e vivências.
Concluso lembrando que a alegoria não nega o aspecto histórico do texto bíblico. Não estamos diante de uma opção: ou o sentido histórico ou o sentido alegórico. Essa aporia não é verdadeira. Volto a dizer, a alegoria transcende o sentido histórico, mas não o nega.

Acabei deixando de comentar o texto bíblico. Faço isso na próxima mensagem.