domingo, 6 de novembro de 2011

Questionamentos e amizade – Gl 4.1-20

Neste grande bloco, Paulo apresenta inicialmente um detalhamento, em caráter explicativo (4.1-7), sobre o que falara anteriormente (3.23-29). Em seguida, se utilizando de uma pergunta como fizera em 3.1-5, questiona novamente seus leitores (4.8-11). Por fim, o apóstolo faz uso do argumento da amizade para tentar fazer-se ouvir (4.12-20).

Em 4.1-7 temos uma espécie de nota explicativa a respeito dos versículos anteriores. Por que ela é necessária? Se anteriormente ele afirmou que, antes que viesse a fé, estavam todos sujeitos à lei, agora ele complementa o raciocínio, utilizando proposições jurídicas para dizer que o herdeiro, quando menor, não goza de seus direitos, sendo na prática igual a um escravo (4.1). Do mesmo modo, ele e os gálatas também estavam sujeitos aos rudimentos do mundo (4.3). Tal situação mudou com a vinda de Jesus Cristo, que permitiu que aqueles que permaneciam sob a lei fossem adotados como filhos por Deus (4.4-6). A situação presente, portanto, não é de escravidão, mas de filiação (4.7).

Em seguida (4.8-11) Paulo torna-se mais direto e agudo. Ele foca o passado dos gálatas. A vida sem Deus era caracterizada pela servidão aos rudimentos do mundo (4.8-9). É interessante observar que Paulo se abstém de criticar o politeísmo dos ouvintes. Seu argumento não foca esse aspecto. Para ele, a idolatria coloca o se humano sob a tirania de “rudimentos fracos e pobres” (4.9). Portanto, se os judeus estiveram sob a escravidão da Lei antes da manifestação de Jesus Cristo, os gálatas também se encontravam escravizados. O problema, para Paulo, é que seus leitores querem submeter-se novamente à escravidão que, por questões étnicas e religiosas, para não dizer teológicas, não dizia respeito a eles. Paulo está muito preocupado com a situação, a ponto de temer ter perdido seu trabalho (4.11).

É essa preocupação que o leva a 4.12-20. Para alguns comentaristas a utilização dos laços de amizade como argumento indica um destempero emocional do apóstolo. Mas parece não ser isso que ocorre. A linguagem é escolhida de modo cuidado para o fim pretendido. Paulo é bastante enfático. Termos e expressões como “vos suplico” (4.12), “enfermidade física” (4.13), “me recebestes como anjo de Deus” (4.14), “teríeis arrancado os próprios olhos para mos dar” (4.15),”tornei-me, porventura, vosso inimigo por vos dizer a verdade?” (4.16), “meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto” (4.19), dão o tom emocional que percorre todo o texto. O que Paulo pretende?

Inicialmente, resgatar a empatia dos gálatas. Para Paulo, ele e seus leitores são iguais (4.12). O estremecimento da relação fica patente quando o apóstolo afirma não estar ofendido (4.12). O restante da perícope é desenvolvido na tentativa de resgatar o relacionamento que parece estar quase perdido. Os termos alistados no parágrafo anterior dão testemunha disso. Tanto o esforço de Paulo para pregar o evangelho na região quanto o acolhimento amoroso que experimentou testemunham o início positivo das relações. No entanto, parece que o apóstolo tornou-se inimigo deles (4.16). Isso estaria acontecendo por influência de pessoas que desejavam afastar Paulo dos gálatas (4.17). Como Paulo combate tal influência? Chamando para si o privilégio de ter sido a mãe daqueles cristãos e de estar, por amor a eles, sofrendo novamente dores de parto (4.19). O final não é nada animador. Paulo não tem certezas a respeito deles. Pelo contrário, encontra-se “perplexo” (4.20).

Finalizo com uma reflexão. No contexto das disputas entre Paulo e os judaizantes que têm influenciado os gálatas a rejeitarem seu antigo mentor e seu ensino, este texto diz muito. É um momento em que Paulo, de certa forma abandonando questões teológicas, apela para aquilo que há de mais profundo e verdadeiro: o relacionamento. Nisto não há máscaras, desculpas, subterfúgios. É um momento muito intenso, mas que somente é possível em função da história que Paulo construiu juntamente com seus leitores.

Pergunto-me quantos líderes e pastores da atualidade teriam condições de se colocarem no lugar do apóstolo. Temo que a maioria se deixaria guiar por duas opções. A primeira, diante dos problemas, simplesmente abandonaria o campo e migraria para outra igreja onde pudesse ser compreendido e seu ministério tivesse condições de progredir. Afinal, por que deveria continuar “dando murro em ponta de faca?” Essa é uma visão empresarial cada dia mais presente nas comunidades evangélicas, bem distante da visão que o apóstolo Paulo tinha de ministério: “Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a Igreja” (Cl 2.24).

A outra possibilidade seria exatamente contrária à primeira. O pastor assumiria o papel de mártir, daquele que, embora certo, sofre, frente a uma igreja, segundo ele, errada, corrompida, adúltera, que precisa ser corrigida, disciplinada e “aprender quem, de fato, manda”. É o ministério “punho de ferro”. Tal postura, na maior parte das vezes, gera divisões nas igrejas, produz exílios, expulsões, mágoas e escândalos. E, pior, parte de um pressuposto equivocado, aquele que afirma que o pastor, por ser o “ungido de Deus”, sempre está certo, e que o povo é simplesmente uma massa de manobra.

Ao ler Paulo, vejo como esses dois modelos são caricaturas, são expressões quase demoníacas de filosofias de liderança equivocadas.

domingo, 9 de outubro de 2011

Promessa, lei, fé – 3.15-29

No último post comentei o argumento escriturístico pelo qual Paulo afirma a atualidade da bênção de Abraão a todos os cristãos, mediante o Espírito Santo, ao mesmo tempo em que declara a impossibilidade da Lei trazer tal bênção.

No texto que analisamos agora ele apresenta maiores detalhes, buscando dirimir qualquer dúvida que ainda possa existir. Há também uma preocupação em não negar o papel histórico da lei. Tal tema é sensível, uma vez que a Lei era central para os judaizantes opositores de Paulo na região da Galácia.

O texto pode ser dividido em três segmentos. No primeiro (3.15-18), Paulo faz uso da lógica humana (“falo como homem”, v. 15) para desenvolver sua argumentação. No segundo (3.19-25), ele abre um parêntese para esclarecer o papel da lei. Por fim, faz uma aplicação da discussão à vida dos cristãos gentios (3.26-29).

O uso da lógica na primeira parte está relacionado com o campo das leis. Provavelmente a escolha se dá por ser uma terminologia conhecida entre os membros do império romano e que se torna uma base com boa dose de segurança para o desenvolvimento da argumentação. O arrazoado começa de forma um tanto tranquila para ser intensificado no bloco seguinte.

Paulo se utiliza da terminologia referente a testamentos. Embora o termo grego usado no v. 15 seja diatheke (aliança), normalmente traduzido como “aliança”, como faz Almeida Atualizada, a palavra também significa “testamento”. Nesse sentido ela foi usada várias vezes por Josefo em seus escritos (cf. Longenecker, Richard N. Galatians, Word Biblical Commentary, v. 41, Gl. 3.15, CD).

Há entre os comentaristas uma discussão a respeito da afirmação de que “[...] uma aliança/testamento [...] uma vez ratificada, ninguém a revoga ou acrescenta algo” (v. 15). A questão é que a legislação romana permitia a alteração dos conteúdos de um testamento, desde que fosse da vontade de seu proponente. Diante disso, parece que Paulo fundamenta sua lógica na ideia de que, caso não seja da vontade do testador, ninguém pode alterar o testamento.

A lógica inicial é que as partes contratantes eram Deus, Abraão e Jesus Cristo, “o” descendente (v. 16). A interpretação paulina de Gn 12.2-3, 7; 13.15-16ss soa estranha, uma vez que o termo singular “descendência” que ocorre em Gênesis, do qual Paulo deriva “descendente”, claramente diz respeito à coletividade, ou seja, a muitos. Mas Paulo aproveita-se da gramática para gerar um sentido espiritual que identifica o descendente com Jesus Cristo. Isso é fundamental para ele. Afinal, somente as partes envolvidas no testamento – Deus, Abraão e Jesus Cristo – poderiam revogá-lo, o que obviamente não ocorre.

A consequência disso, destacada pelo apóstolo é que, a Lei, por mais importante que fosse, não poderia alterar o testamento. Até mesmo por que veio quatrocentos e trinta anos depois da promessa a Abraão (v. 17).

Paulo finaliza sua argumentação com a conclusão: a herança não provém da Lei, mas da promessa (v. 18). De que herança ele fala? Provavelmente de todo o legado que o exemplo da fé de Abraão deixou para as gerações futuras. Esse é o seu testamento. E a origem da herança é a promessa feita por Deus a ele. A Lei não conseguiu fazer isso, lembra o apóstolo. Ele repete, em outros termos, o que já disse em 3.14, e a ênfase visa os judaizantes, segundo os quais a herança abraâmica era, principalmente, a circuncisão, sinal da aliança e, portanto, necessária a todos quantos creem.

Bem, uma vez que ele novamente fala de modo tão negativo sobre a Lei, sente-se na obrigação de fazer um esclarecimento a esse respeito. Este é o segundo bloco do texto (3.19-25). Parece que seria lógico perguntar: “Qual, pois, a razão de ser da lei?” Visto que ela era tida pelo judaísmo como o fundamento sobre o qual eles construíam sua relação com Deus, como povo da aliança. As palavras de Paulo eram chocantes para qualquer judeu piedoso, e também para os cristãos judaizantes. Ele julga necessário fazer alguns esclarecimentos.

O primeiro é que a Lei foi “adicionada”, acrescentada. Novamente um choque. Não era dessa forma que ela era concebida. Mas para Paulo ela surgiu de uma necessidade. Ela foi adicionada por causa das “transgressões” do povo. A ideia é que, apesar da promessa e da herança, os israelitas se envolveram em práticas contrárias ao que Deus desejava. Isso tornou necessária uma atualização, um complemento à herança que a viabilizasse. Mas quando viesse o descendente, a quem a promessa foi feita, esse acréscimo não faria mais sentido e deveria ser retirado.

Por isso mesmo Paulo pode responder a pergunta que talvez ainda subsistisse: “É, porventura, a lei contrária às promessas de Deus? De modo nenhum!” (v. 21). Claro! Se ela surgiu como complemento, como viabilização da herança em outro momento, ela está ao lado, ela ajuda a promessa, não sendo nunca sua opositora.

Ele lembra, como fará na carta aos romanos, que a Lei explicitou e tornou evidentes os pecados. De modo generalizante, o apóstolo afirma que a “Escritura”, ou seja, o Antigo Testamento, encerrou tudo sob o pecado para que a promessa se tornasse válida mediante a fé em Jesus (v. 22).

Mas, historicamente, antes da manifestação da fé, a Lei foi uma espécie de tutor (v. 23). Ela serviu de “aio” (paidagogos, em grego). Talvez a melhor tradução a partir do termo grego seja professor, instrutor. A Lei exerceu a função de cuidar dos fieis e conduzi-los a Cristo. Esta é uma imagem muito bela e positiva para a Lei. Mas, uma vez vindo Jesus e a fé, a o instrutor não é mais necessário (v. 25).

No v. 26 tem início a conclusão do bloco. Se a Lei é um professor, um instrutor, somente Jesus nos torna filhos de Deus (v. 26). Obviamente esta é uma categorização que não seria bem recebida pelos judeus e judaizantes, que usavam uma série de classificações para determinar quem era espiritual e fiel a Deus.

Digno de nota é a mudança do pronome. Se nos versículos anteriores Paulo utilizou a primeira pessoa do plural – “nós” (v. 23-25), portanto, incluindo-se naquilo sobre o que escrevia, agora ele altera para a segunda pessoa do plural – “vós”. Portanto, se exclui de sua argumentação, aplicando aquilo que fala diretamente aos gálatas. Isso significa que não se aplica a ele o que é dito? Não seria ele filho de Deus? Não teria sido batizado em Cristo? Claro que sim! Mas a estratégia de se colocar de lado, para dar destaque aos leitores, busca tornar mais clara a aplicação a eles.

Ele quer deixar claro que os gálatas não estão mais sob os cuidados de um tutor, visto terem, pela fé, adquirido a maioridade espiritual. Eles se relacionam com Deus como filhos (v. 26). Sinal inconfundível disso foi terem sido batizados em Cristo (v. 27). A decorrência é que não existem mais categorizações e diferenças entre pessoas (v. 28), elemento central para a religião judaica, e um dos critérios pelos quais os cristãos judaizantes estavam tentando convencer os gálatas a respeito da necessidade da Lei. Agora, em Cristo, e somente por intermédio dele, eles se tornam descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa (v. 29).

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A prova escriturística – a fé de Abraão – 3.6-14

Como disse anteriormente, Paulo está desenvolvendo a sessão denominada Probatio, isto é, o momento em que os argumentos são apresentados e a discussão assume um tom mais intenso.

Se no texto anterior Paulo iniciou seus argumentos com um apelo à experiência gálata, agora ele parte para motivos teológicos, utilizando, neste bloco, o argumento bíblico. Cabe ressaltar que este passo é escolhido cuidadosamente. Paulo coloca-se no terreno de seus opositores, que interpretavam as Escrituras enfatizando a validade da lei para os cristãos. Paulo usará as mesmas Escrituras para dizer exatamente o contrário.

O texto pode ser dividido em dois blocos e uma conclusão. O primeiro, do v. 6 ao 9, utiliza o exemplo de Abraão para discutir a justificação pela fé. O segundo, do v. 10 ao 13, discute a presença da Lei na vida cristã. E a conclusão, no v. 14, relaciona as discussões anteriores com o Espírito Santo.

O ponto de partida é a vida de Abraão. O foco é sua experiência de fé e a decorrência dela, que será contrastada com a fascinação dos gálatas pela vida sob a lei.

Poder parecer, em um primeiro momento, que o apóstolo utiliza o exemplo de Abraão para ressaltar a justificação pela fé. Não somente isso. Ele utiliza o exemplo do pai da fé para enfatizar a presença e ação do Espírito Santo entre seus leitores (v. 14). Portanto, há uma junção não muito comum entre Abraão e Espírito Santo neste texto.

Paulo inicia o primeiro bloco com uma afirmação: “É o caso de Abraão, que creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça”. O tema da justificação pela fé já foi abordado anteriormente (cf. 2.16). Mas agora ele retorna em nova conexão. A fé que leva à justiça é apresentada como um modelo vivido por Abraão, e, de tal forma, conecta historicamente todos os que são salvos pela fé com o ancião (v. 7). Desse modo, aqueles que creem são filhos de Abraão. Principalmente os gentios, para os quais o evangelho foi anunciado já em Abraão (v. 8). Não apenas isso, mas destaca que a bênção experimentada pelo patriarca recai sobre os que creem (v. 9).

Obviamente a utilização de Abraão por Paulo tem como objetivo enfatizar seu ato de fé em lugar do destaque sobre a circuncisão pactual firmada com ele (cf. Gn 17) e exigida aos gálatas pelos judaizantes (5.2). Do mesmo modo, o apóstolo pretende desviar o foco da lei mosaica mediante o argumento histórico da fé que se manifestou anteriormente à lei, e que, por consequência, não pode ser anulada por ela (cf. 3.16-17). O ato de fé, que torna Abraão justo, não apenas precede seus demais atos, como a promulgação da circuncisão, mas também dá sentido a eles. Por isso mesmo o apóstolo declara: “Sabei, pois, que os da fé é que são filhos de Abraão” (v. 7). Significa dizer, em outras palavras, que a circuncisão não torna ninguém filho de Abraão, como argumentariam os adversários de Paulo.

De que forma Paulo argumenta a respeito da filiação abraâmica pela fé? Ele parte da expressão de Gn 12.3: “[...] em ti serão benditas todas as famílias da terra”, citada no v. 8b, para confirmar o anúncio da justificação aos gentios (v. 8a). Desse modo ele delimita cristologicamente a bênção de Abraão. A conclusão é que “os da fé são abençoados com o crente Abraão” (v. 9). Abraão, que para o judaísmo é o modelo de obediência à Torá, torna-se para Paulo o modelo de fé para os cristãos.

O segundo bloco, de caráter negativo, volta-se para as obras da lei. Paulo trabalha com um pensamento binário. Se há os que estão caminhando sob a fé, seguindo os passos de Abraão, os demais seguem o quê? A Lei. Nesse caso, se os primeiros são abençoados, os segundos, pela lógica, são amaldiçoados (v. 10). Parece ser um pensamento simplista e radical. Paulo, no entanto, novamente toma as Escrituras como prova para o que diz. Cita Dt 27.26 para lembrar que aquele que tenta praticar o a Lei e não consegue é maldito. Isso se aplica tanto a judeus quanto a cristãos judeus. Poderia incluir também os gálatas.

Paulo desenvolve o argumento a partir de uma lógica. Se a justificação vem pela fé, então não é necessário nenhum outro caminho. Portanto, a lei não justifica ninguém (v. 11). Ele amplia e aprofunda o argumento afirmando que a Lei não pode salvar por não provir de fé (v. 12). Agora não temos apenas uma questão de possibilidade, mas de oposição. Fé e Lei são opostos. Abre-se, aqui, espaço para discutir temas relacionados com a Nova Perspectiva sobre Paulo, particularmente com respeito ao conceito de Lei e de sua função no cristianismo paulino. O Júlio já abordou esse tema em posts de final de maio, portanto não julgo necessário voltar a eles.

No v. 13 Paulo apresenta o caminho para escapar da maldição a que todos que vivem sob a Lei estão sujeitos – Jesus Cristo. Ao fazê-lo há dois propósitos. O primeiro é evidenciar a impossibilidade de viverem sob a Lei aqueles que professam Jesus Cristo. Jesus libertou os cristãos da maldição da Lei e da própria Lei ao cumprir a Lei, morrendo sobre a cruz. Portanto, toda a Lei foi cumprida por ele, não restando nada para os cristãos. Querer viver sob a Lei significa rejeitar a plenitude do sacrifício de Jesus Cristo. O segundo objetivo é preparar a entrada do Espírito Santo na discussão (v. 14). Deixa-se a maldição e caminha-se para a bênção.

A conclusão se constrói a partir do que foi dito anteriormente. A bênção para os gentios, considerada como a justificação pela fé (v. 7-9), agora é expandida indicando que a fé também conduz ao recebimento do Espírito Santo (v. 14). Essa é a segunda grande bênção para o cristão. A ênfase na fé como base para o recebimento do Espírito coloca-se como uma crítica aos judaizantes que entendiam o acesso ou a plenitude do Espírito como algo que se conseguiria mediante as obras da Lei (cf. 3.2). Portanto, Paulo está retomando o tema da perícope anterior. Nela, apelou para a experiência dos gálatas. Não restam dúvidas que eles receberam o Espírito pela pregação da fé (3.2). Agora, esse mesmo fato é destacado a partir do ângulo do testemunho escriturístico. E Paulo o faz com um destaque ainda maior: A bênção para todos os povos, dada a Abraão, chega aos gentios através de Jesus Cristo e se consolida e plenifica com a presença do Espírito em suas vidas.

A título de reflexão alinhavo alguns pensamentos.

Na análise do texto anterior já escrevi um pouco sobre a possibilidade de hoje vivermos sob a Lei. Pensando no texto acima, julgo que podemos avançar a reflexão. O mais terrível da vida sob a Lei não é apenas o engano de nos sentirmos seguros e a experiência, muitas vezes oculta, de nos decepcionarmos por não conseguirmos corresponder aos padrões da Lei. O maior e principal problema é que a busca pela Lei inviabiliza a vida sob o Espírito Santo. Eles são incompatíveis. Todos os cristãos vivem esse dilema. Os pentecostais, que dão centralidade ao Espírito, o reprimem com suas muitas regras e normas que podem ser de cunho comportamental como vestes, vocabulário; ou mesmo espirituais, como a tirania da evidência de dons espirituais, de falar línguas, de exercitar ou receber curas. Os tradicionais, por sua vez, colocam o Espírito em segundo plano quando enfatizam questões morais, que se tornam moralistas, como comportamentos sexuais, que são violados às ocultas, questões de saúde, como não fumar, não beber, ao mesmo tempo em que se submetem aos juízos deste mundo, buscando uma estética de beleza masculina e feminina que nada tem de cristã; radicalizam o dízimo, ao mesmo tempo em que fazem de tudo em suas empresas para fraudar o imposto de renda. E muito mais.

A bênção de Abraão, que não é apenas a salvação pela fé, mas também a dádiva do Espírito Santo, foi trocada pela vida que temos sob a Lei. Consequência? Novamente não temos espaço para a fé. Não cultuamos uma vida de sensibilidade à voz do Espírito que deseja nos moldar em santidade e nos fazer voltar para o mundo e ao próximo em amor. Não experimentamos a ação de poder do Espírito, seja em conversões, em corações sensibilizados, seja em curas e portentos. Não conseguimos viver como comunidade dos últimos tempos, escatológica, habitada e plenificada pelo Espírito Santo.

domingo, 28 de agosto de 2011

Paulo e a experiência dos gálatas – 3.1-5

Pode parecer estranho, em uma carta com forte conteúdo teológico e apologético, que o autor inicie um novo momento da discussão apelando para a experiência de seus leitores. Mas é isso que Paulo faz.

Segundo Betz (Galatians, p. 128), que analisa a carta a partir da retórica antiga, esta perícope inicia o Probatio, isto é, o momento em que as provas para a confirmação de posições ou para a contestação de seus adversários têm início. Anteriormente o apóstolo já havia fundamentado sua posição, mas usando a estratégia da Narratio, pela qual apresenta elementos da história em comum que viveu com seus leitores. Desse ponto de vista, há uma transição do elemento anterior para o que se inicia, visto que neste também o histórico de vida é utilizado como elemento argumentativo, mas com maior ênfase.

Ao mesmo tempo, é possível vislumbrar a mudança de estratégia. Paulo retira o foco de si mesmo, deixando a afirmação de autoridade apostólica bem como o argumento de pregar o genuíno evangelho, para mirar os próprios gálatas mediante a recordação da experiência vivida por eles quando abraçaram a fé.

O texto se desenvolve a partir de perguntas retóricas, cujo objetivo não é promover um diálogo com troca de opiniões, mas forçar os leitores a, mediante respostas que não permitem divagações, concordar com Paulo. Os fatos que estão na base de suas perguntas são: Jesus Cristo foi pregado a eles como crucificado (v. 1); eles receberam o Espírito Santo (v. 2); Deus, mediante o Espírito Santo, opera milagres entre eles (v. 5).

A partir desses fatos, que não sofreriam questionamento pelos gálatas, Paulo desenvolve suas perguntas.

Ele inicia com uma afirmação: os gálatas são insensatos! (v. 1). Qual a razão? Não conseguirem interpretar adequadamente a experiência vivida, ou então interpretarem equivocadamente o passado. A resposta às perguntas tem como objetivo convencê-los desse fato.

Diante da experiência gálata, Paulo apresenta três perguntas: a primeira delas, voltada para os opositores de Paulo: “Quem vos fascinou a vós outros [...] (v. 1)”. O verbo “fascinar” (baskaino) é mais bem traduzido como “enfeitiçar”, dando a entender que os gálatas estavam sofrendo uma espécie de transe teológico. Eles sabem a resposta, conhecem aqueles que os têm seduzido. Portanto, em lugar de atacar tais pessoas, Paulo leva os gálatas a reconhecem tal fato. “[...] ante cujos olhos foi Jesus Cristo exposto como crucificado?”. “Exposto” pode ser traduzido como “desenhado, pintado”. Paulo usa um termo das artes plásticas, apelando para o senso pictórico dos leitores. Desse modo, o quadro se torna ainda mais dramático. A partir da pregação do Cristo crucificado, Paulo apela para que os gálatas identifiquem aqueles que têm corrompido tal pregação.

A segunda pergunta: “Recebestes o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé? (v. 2)”. Com ela, Paulo introduz novo tema na carta: O Espírito Santo. Neste caso, relacionado com a conversão. O fato é que eles receberam o Espírito. A questão é: como? Pelas obras da lei, que, segundo Paulo e certamente com a concordância dos leitores, não traz justificação (2.16), ou pela pregação da fé? Provavelmente não haveria dificuldade com esta pergunta. Os cristãos gálatas teriam consciência, a partir de sua própria experiência, de que a salvação e o recebimento do Espírito eram movidos pela fé. O problema é que, pelo que parece, eles não conseguiam reconhecer que o apelo para uma vida segundo a lei é uma negação do Espírito e, como Paulo salienta, é um retorno à “carne”. “[...] tendo começado no Espírito, estejais, agora, vos aperfeiçoando na carne?” (v. 3). Essa questão está na base da oposição de Paulo a Pedro em Antioquia: “[...] se, sendo tu judeu, vives como gentio [sem lei] e não como judeu [com lei], por que obrigas os gentios a viverem como judeus?” (2.14).

O v. 4 traz uma alternativa de tradução para o verbo “sofrer” (pasxo). Almeida Atualizada traz: “Terá sido em vão que tantas coisas sofrestes?” Segundo Betz (p. 134-135), é possível traduzir o verbo como “experimentar”. Portanto, “Terá sido em vão que tantas coisas experimentastes?”. Se aceitarmos a tradução como “sofrimento”, devemos procurar algum fato na vivência gálata que demonstre uma experiência negativa de perseguição ou coisa semelhante como decorrência da aceitação do evangelho. Se, por outro lado, optarmos por “experimentar”, então teremos ligação com os versículos anteriores que falam do recebimento do Espírito mediante a pregação da fé. Paulo estaria dizendo: “Vocês receberam o Espírito através da pregação da fé. Será possível que a vivência e consciência dessa experiência tenham sido em vão?”.

A terceira e última pergunta é uma expansão da segunda: “Aquele, pois, que vos concede o Espírito e que opera milagres entre vós, porventura, o faz pelas obras da lei ou pela pregação da fé? (v. 5)”. Nela Paulo aprofunda sua argumentação. Afinal, uma coisa é reconhecer a dádiva gratuita do Espírito no ato do recebimento do evangelho. Outra, mais radical, é aceitar que Deus, que dá o Espírito e que por intermédio dele opera milagres, o faz igualmente pela pregação da fé. Seria muito difícil para os gálatas afirmarem que as ações poderosas de Deus entre eles se davam por algum merecimento próprio. Ao mesmo tempo, reconhecer a gratuidade da ação divina implicaria em aceitar a crítica de Paulo de que estavam vivendo na carne, e reconhecer, ao mesmo tempo, que estavam equivocados em seus caminhos.

Concluo este bloco com uma reflexão. Ao ler as perguntas de Paulo me vejo identificado com os gálatas. Tenho consciência da salvação pela fé, ou, como Júlio propôs, pela fidelidade de Jesus Cristo. Sei que não posso acrescentar nada que possa tornar-me “mais salvo”. Ao mesmo tempo, vivo “enfeitiçado” pela lei que me diz se necessário vivê-la na construção de minha relação com Deus. Sinto segurança em poder “contabilizar”, mediante a vivência da lei, o que tenho feito em prol do evangelho. Não consigo identificar na minha experiência a maldição da lei. Estou tão acostumado com ela, que praticá-la ou deixar de praticá-la não é tão importante quanto minha necessidade de buscá-la. Falta-me a consciência histórica da salvação e da experiência do poder de Deus unicamente pela graça e pela fé. São coisas distantes e esmaecidas em minha memória. Diante disso, preciso continuar lendo Gálatas para saber como me livrar desse cativeiro ao qual me submeto com prazer. Como abandonar a vida sob a carne.

Antes que me pergunte a respeito da presença da lei em minha vida, cito alguns questionamentos que poderiam indicar a graça em nós e algumas práticas diárias que se tornam componentes da lei.

Do que somos cobrados em nossas igrejas? Sermos mais amorosos uns com os outros e principalmente com aqueles que não conhecem Jesus Cristo? Vivermos em prol daqueles que sofrem, usando o pouco tempo que temos para ajudá-los, permitindo, assim, que vejam o evangelho de forma concreta? Vivermos uma vida de fé, assumindo os riscos e implicações dela em nosso dia a dia? Colocarmos como prioridade de nossa vida e de nossa comunidade a missão de proclamar o reino de Jesus entre nós?.

Não. Somos cobrados na frequência nos cultos. Somos cobrados para participarmos de reuniões que muitas vezes não possuem nenhum sentido. Somos cobrados em dar o dízimo para construção de edifícios e para pagar os “levitas” de nossas igrejas. Somos cobrados em dar testemunho “de nossa igreja”, zelando, com isso, para que o bom nome de nossa denominação não seja manchado na sociedade. Somos cobrados a nos abstermos de qualquer envolvimento com a sociedade e com a política, pois “o reino de Jesus não é deste mundo”.

Em outras palavras, vivemos na e sob a lei. Uma nova lei, um novo farisaísmo, mas que nos coloca em um estado de distância de Jesus e de sua graça, do poder de Deus e da ação de seu Espírito. Vivemos sob uma lei que nos fascina e nos promete muito, mas que, afinal, nos torna pessoas pobres, tristes, moralistas esquizofrênicos sem esperança neste mundo.

Acha que fui muito radical? Siga o raciocínio de Paulo e apela para a sua experiência!

sábado, 6 de agosto de 2011

Conflito em Antioquia. Paulo e Pedro: dois partidos em oposição – Gl 2.11-21

A perícope estudada neste post encerra o bloco 1.18-2.21, que podemos denominar de narrativo ou histórico, uma vez que descreve situações vividas por Paulo logo após ter recebidoo chamado de Jesus Cristo. Hans Dieter Betz (Galatians, Hermeneia, p. 16, 103-104), inclusive, inclue 2.10-14 dentro da narratio, que na organização retórica é o segmento reponsável por apresentar a contextualização do tema da carta.

Não entrarei na questão abordada pelo Júlio em sua última mensagem, uma vez que minha ideia é apresentar o texto bíblico de forma panorâmica e contextual, enfatizando os conflitos nele presentes.

Se no texto anterior, segundo minha interpretação, Paulo pretende demonstrar aos seus opositores e às igrejas da Galácia que seu ministério, dirigido aos gentios (incircuncisos), foi reconhecido pelos apóstolos e líderes de Jerusalém, nesta perícope ele vai mais longe.

Na perícope anterior foram formalizados dois ministérios: o paulino aos incircuncisos e o petrino aos circuncidados. Agora Paulo deseja demonstrar que, além disso, sua autoridade apostólica lhe dá condições até para confrontar o apóstolo Pedro. Qual o objetivo? Possivelmente dar um recado indireto àqueles que o julgam e criticam. Algo como: se tenho autoridade para repreender Pedro, certamente tenho autoridade, direito e coragem para confrontá-los também!

Do ponto de vista estrutural, o texto pode ser dividido em um enunciado central seguido por dois blocos. O enunciado está no v. 11, onde Paulo sumariza o que desenvolverá nos versículos seguintes: A afirmação de que Pedro tornou-se repreensível quando esteve em Antioquia.

O primeiro bloco, de caráter narrativo (2.11-14), contextualiza a repreensão. Em sua visita aos cristãos gentios de Antioquia, Pedro sentiu-se bem, inclusive comendo com eles, o que era uma demonstração de comunhão e aceitação mútua. No entanto, diante da chegada de pessoas ligadas a Tiago, Pedro mudou de atitude provavelmente temeroso de ser repreendido por eles em função de suas posturas radicais diante das leis veterotestamentárias.

A situação foi tão séria que chegou a influenciar Barnabé, discipulador e posteriormente companheiro de Paulo. Diante de quadro tão sério, o apóstolo julgou ser necessário falar seriamente com Pedro.

A partir desse ponto estamos no segundo bloco, que é discursivo (2.15-21). Nele Paulo relata as palavras que dirigiu a Pedro (v. 15-17) e sua própria reflexão (v. 18-21). Isso é perceptível pelo uso do pronome da primeira pessoa no plural – “nós” – na primeira parte, e do pronome da primeira pessoa no singular – “eu” – na segunda parte.

Como Júlio desenvolveu de modo mais detalhado aspectos exegéticos e teológicos desta perícope, quero destacar apenas alguns elementos contextuais. O primeiro, como já disse, é a estratégia paulina de explicitar o confronto com Pedro para validar sua própria autonomia. Não há aqui uma questão apenas individual. Paulo tem consciência de que ele e Pedro representam dois grupos de cristãos. Aquilo que fizerem terá repercussão para a vida dessas pessoas. Portanto, Paulo tem muito cuidado com o que faz e age com consciência.

Paulo centraliza a discussão no “evangelho” (v. 14), como já fizera anteriormente. Obviamente, é o evangelho segundo a concepção paulina que se coloca como critério para a discussão. Em que consiste ele? Em salvar, quem quer que seja, pela fé, e não somente isso, em introduzir os salvos a uma vida de fé. Pedro, ao deixar-se influenciar pelos judaizantes, abandona esse preceito. A crítica de Paulo faz muito sentido, afinal, diz, se ele e Pedro, judeus, têm consciência de que só podem viver uma vida pela fé e pela graça, nunca pela lei, como submeter os gentios salvos aos critérios da lei do AT?

Um outro elemento que desejo ressaltar é a fala biográfica de Paulo. Depois da repreensão ele expressa em que crê e como vive. Ele fundamenta cristologicamente sua vida. A lei, que os judeus cristãos tanto enfatizam, levou Paulo à morte, morte queo torna imune à própria lei. Morte também com Cristo, para que ressurja para uma vida com Cristo. E, além disso, uma vida em que Jesus vive nele. Central para tudo isso é a fé.

Ao falar desse modo, Paulo deixa o aspecto negativo da discussão com Pedro para enfatizar o postivo: sua vida como modelo de existência sob a graça e vivida a partir da fé em Jesus.

Termino com uma pequena reflexão. Lendo este texto, não posso deixar de perguntar: que tipo de vida nós, cristãos brasileiros, estamos vivendo? Infelizmente, minha conclusão é que estamos mais próximos de Pedro, dos cristãos judeus e dos judaizantes do que de Paulo e das comunidades gentílicas. Nossa vida depende mais da lei do que da graça. Pense em quantas normas e leis são apresentadas como centrais para os cristãos contemporâneos e tire sua própria conclusão.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Gálatas 2,19-21 Justiça Messiânica e Nova Subjetividade

A (19) Pois eu, mediante a lei, morri para a lei; a fim de que viva para Deus - tenho sido crucificado com o Messias. B (20) E já não sou eu quem vive, mas o Messias vive em mim. A vida que agora vivo na carne, vivo-a na fidelidade, na do filho de Deus, que me amou e se entregou em meu favor. A’ (21) Não anulo a graça de Deus, pois se a justiça fosse possibilitada pela lei, então o Messias teria morrido em vão.

Em post anterior, tratei da questão da fidelidade do Messias, com base em Gl 2,15-16. Na última seção de Gl 2,15-21 (os versos 19-21, aos quais se refere este post) encontramos uma radical mudança de pessoa verbal. Paulo passa a falar na primeira pessoa do singular – duas vezes usa o pronome “eu” e três vezes usa formas oblíquas desse mesmos pronome. Além destas cinco ocorrências, Paulo usa mais cinco vezes o verbo na primeira pessoa do singular, sem o pronome pessoal. Ao todo, então, em três versos, a primeira pessoa do singular ocorre dez vezes! Fica evidente que o foco temático passou a recair sobre o sujeito – Paulo está propondo uma nova subjetividade. (Para efeitos de nossa discussão, deixo de lado a questão de se Paulo está sendo autobiográfico, ou se o “eu” tem uma força universalizante. De um modo, ou de outro, a nova subjetividade aqui desenvolvida por Paulo tem a ver com toda a humanidade, especialmente com o “novo ser humano” no Messias.)

A estrutura desta pequena perícope é simples e bem visível: nos versos 19 & 21, o foco temático recai sobre a Lei e sua relação com a Justiça, conforme se pode falar dessa relação a partir da crucificação do Messias. O verso 20 tematiza, por sua vez, a vida do novo sujeito, descrita mediante a interação entre a vida do Messias no sujeito e a vida do sujeito na fidelidade do Messias. Configura-se, assim, uma estrutura quiástica-concêntrica simples: A – B – A’.

1. O texto abre com uma declaração paradoxal (com o pronome pessoal "eu"), outra contrastiva e uma última declarativa (ambas sem o pronome pessoal): “Eu, pela lei, morri para a lei, a fim de que viva para Deus - tenho sido crucificado com o Messias”. O paradoxo está na abertura do verso: morremos para a lei mediante a instrumentalidade da própria lei. Em outras palavras, a lei deslegitima e desfundamenta-se a si mesma. Como escapar do domínio da lei? A própria lei cumpre o papel de colocar um fim à sua própria validade, à sua própria força. Mas como a lei realiza esta auto-deslegitimação? Mediante a condenação do Messias à morte. Em Romanos 7, seguindo uma forma rabínica tradicional de entender a validade da lei, Paulo afirma que a morte torna a pessoa livre da força da lei. Aqui, o mesmo ponto é destacado, com um elemento peculiar: é a própria lei que nos faz morrer para a lei. Ora, tendo eu sido crucificado com o Messias, fui tornado morto para a lei, pela própria lei que condenou o Messias à morte e o tornou maldição.

Dois aspectos podem ser destacados aqui, unindo esta declaração paradoxal com o verso 21. Neste verso, Paulo afirma claramente que a lei não pode ser o veículo da justiça – pois se a lei fosse portadora da justiça, o Messias teria morrido inutilmente e a graça de Deus é que teria perdido o valor (o verbo usado no início do v. 21 vem do ambiente legal e se refere à anulação de um ato legal, à sua abrogação). Ora, a morte do Messias teria sido inútil se não fosse, ela mesma, a portadora da justiça de Deus. A morte do Messias teria sido inútil se, como condenação e maldição pela lei, não anulasse a própria lei, a fim de fazer vigorar a graça de Deus em seu lugar (cf. a discussão no capítulo 3 de Gálatas).

2. O texto encerra de modo também paradoxal: “Não anulo a graça de Deus...”. Ora, seguindo a interpretação protestante tradicional de Paulo, esta negativa paulina não faz sentido. De que maneira a negação da força da Lei poderia anular a graça de Deus? Não temos nos acostumado a ler Gálatas a partir do conflito entre Lei e Graça? Entretanto, parece que Paulo não via as coisas bem assim. Para ele, a anulação da Lei poderia ser interpretado como anulação da graça de Deus – ora, não foi a Torá uma bênção de YHWH para seu povo eleito, libertado e colocado em relação de aliança? Para Paulo, a dádiva da Lei, embora parte da graça de YHWH para com seu povo, não tinha como função a implementação da justiça. Ora, Israel recebera a justiça de Deus antes da outorga da Lei, assim como mais tarde em Gálatas Paulo irá argumentar que a Lei foi dada séculos depois de Abraão ter recebido a justiça de Deus. Entre Lei e Justiça há um desnível, um abismo quase insuperável. A Lei não proporciona justiça – pelo contrário, a Lei demonstra nossa escravidão ao pecado e a ela mesma (cf. Gálatas 3-4 e a discussão em Romanos). A Lei, que tem o poder de matar (condenar à morte) não pode proporcionar justiça, pois esta é vida e só pode ser causada pela ação do próprio Messias que, morrendo na cruz, possibilita à criação viver a vida de Deus. A justiça vem pelo Messias, não pela Lei. Ou, como declara Paulo aos romanos “No Evangelho se revela a justiça de Deus” (1,17). Voltarei ao tópico da justiça em outros posts.

3. O que mais me interessa, aqui, é analisar o verso 20 e sua proposta de uma subjetividade messiânica. Uma série de declarações em tensão destacam os contornos da nova subjetividade: (a) não sou mais eu quem vive, é o Messias que vive em mim. O novo sujeito messiânico é um sujeito esvaziadamente cheio. Esvaziado de si mesmo, o novo sujeito é anfitrião do Messias que nele habita e o plenifica. O Messias oferece não só o padrão, mas também a energia para a nova subjetividade; (b) “mas a vida que eu agora vivo na carne” está em tensão com “já não mais vivo eu”. A vida que vivo na carne é a vida vivida no tempo escatológico – que sofre com a plena interatividade da vida messiânica e da vida pré-messiânica no mesmo tempo-espaço-pessoa. Encontramos aqui uma impossibilidade: viver a nova vida na velha vida; (c) vivo na fidelidade do Messias (aqui designado como Filho de Deus). Ora, a fidelidade do Messias foi a base da justificação e da revelação da justiça de Deus. Agora, Paulo passa a afirmar que a fidelidade do Messias é o modo no qual a justiça de Deus é vivida na nova subjetividade messiânica.

A vida terrena do Messias Jesus é, assim, o padrão para a vida “na carne” dos novos sujeitos participantes da justiça de Deus. Diante dos projetos de subjetividade que o “tempo presente” nos oferece, temos a possibilidade, na graça, de participar em um novo projeto de vida – uma vida completamente vivida em fidelidade a Deus e seu projeto de justiça para toda a criação. Uma possibilidade que, como todo verdadeiro dom, é, de fato, a impossibilidade que constitui o novo sujeito diante de Deus e do próximo. O Messias não oferece apenas o padrão. Oferece a energia – energia vital cujo nome paulino é fidelidade – a velha-nova fidelidade da aliança oferecida por YHWH a seu povo.

Fidelidade que será tema de novo post, pois este já está ultrapassando os limites da sua paciência como leitor(a).

Paulo e os apóstolos em Jerusalém – Gl 2.1-10

O capítulo dois está em íntima relação com o anterior, uma vez que relata um novo encontro, 14 anos depois (2.1), entre Paulo e os apóstolos na Cidade Santa.

O contexto é o mesmo: a discussão a respeito do evangelho paulino, embora sejam introduzidos novos detalhes.

Como sempre, o apóstolo viaja levando companheiros. Desta vez são Barnabé, aquele que o discipulou, e Tito, cristão de origem grega e seu discípulo.

Procurando manter autonomia diante daqueles que intitula “homens” e “apóstolos”, Paulo faz questão de afirmar que empreendeu a viagem em obediência a uma “revelação” (v. 2). Com isso, mantém independência e distância estratégica.

O objetivo do encontro: expor o evangelho que prega entre os gentios (v. 2), principalmente aos de maior influência. Há, aqui, uma ação estratégica. Se anteriormente na carta ele defendeu o seu evangelho diante dos gálatas e criticou o evangelho dos homens que os estavam influenciando, agora ele tem consciência de que precisa ser mais brando e apresentar o conteúdo de sua pregação aos apóstolos para conseguir apoio, sem indicar que é dependente deles. É uma situação bastante delicada.

A expressão do v. 3, de que “nem mesmo Tito [...] sendo grego, foi constrangido a circuncidar-se”, permite concluir que em Jerusalém havia influência do grupo ao qual Paulo se opunha. Ao mesmo tempo, é uma indicação aos gálatas de que aqueles que os estão influenciando não conseguiram se impor junto aos apóstolos.

Paulo nomeia seus opositores de “falsos irmãos” (v. 4). Esclarece que eles procuram vigiar sua liberdade e a de seus seguidores, e que, assim, desejam reduzi-los à escravidão. Afirma que não se submeteram a tais pessoas, a fim de que a verdade do evangelho permaneça entre seus leitores (v. 5). É significativo como a argumentação de Paulo procura inverter a situação diante dos gálatas. Para esses, Paulo estava perdendo influência e os cristãos judaizantes estavam impondo seu evangelho. Paulo estava perdendo terreno. Mas, em sua argumentação, a situação é outra. São os falsos pregadores que o perseguem e procuram destruí-lo.

Voltando a falar daqueles que possuem “maior influência” (certamente os apóstolos em Jerusalém), também eles não acrescentaram nada a seu evangelho (v. 6). Qual o objetivo dessa afirmação? Manter seu apostolado livre de quem quer que seja. De um lado, da oposição dos judaizantes; de outro, da esfera dos apóstolos de Jerusalém.

Quanto a esses (especificamente Tiago, Cefas e João – v. 9), Paulo esclarece os gálatas que eles lhe estenderam a “destra da comunhão”. Isso se deu por terem reconhecido que Deus havia concedido a Paulo o “evangelho da incircuncisão”, assim como Pedro possuía o evangelho da circuncisão” (v. 7). Era essa a situação que Paulo almejava. Mostrar aos gálatas que os verdadeiros representantes do evangelho da circuncisão (não o evangelho que pregava a circuncisão, mas que se dirigia aos circuncisos, isto é, aos judeus) haviam aceito sua pregação. Portanto, aqueles que o criticavam no território da Galácia ficavam desautorizados.

Parece-me haver aqui um dos primeiros indícios de que de fato havia uma grande dificuldade em colocar juntos, nas mesmas comunidades, judeus e gentios. O mais apropriado era reconhecer a necessidade de comunidades cristã-judaicas e outras cristã-gentílicas. Essa sitação fica formalizada nessa passagem. Isso significaria uma perda do ideal cristão de que não há diferenças entre pessoas, nacionalidades e religiões diante de Deus? Possivelmente. Essa mesma discussão retornará na carta aos Romanos.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Paulo, chamado e evangelho – Gl 1.6-24

No primeiro bloco da carta, Paulo se apresenta de modo resumido. Agora, ele expande esse elemento no contexto da discussão do “evangelho”.

A conexão se estabelece entre as primeiras palavras, em que ele fez questão de afirmar a independência de seu apostolado, e a introdução categórica do “evangelho que tem pregado” (v. 8-9, 11). Portanto, apostolado e evangelho estão em relação de apoio neste bloco.

O termo “evangelho” é utilizado na primeira parte (v. 6, 7, 8, 9, 11). Na segunda, por outro lado, temos os termos “revelação” (v. 12), “ao que me separou” (v. 15), “apóstolos antes de mim” (v. 17), configurando seu chamado apostólico. Paulo discutirá o evangelho a partir de sua condição de apóstolo de Jesus Cristo.

Como disse anteriormente, logo depois da apresentação Paulo normalmente escreve uma ação de graças onde apresenta pontos de contato com seus leitores que o motivam a agradecer a Deus. Em Gálatas tal elemento está ausente e ele inicia com afirmações contundentes e agressivas em torno do evangelho. Paulo os acusa de estarem aderindo, ou melhor, “desertando” (grego metatithemi) de Deus para “outro evangelho” (v. 6). Mais do que isso. Expressa admiração pela rapidez com que isso está acontecendo. Esse evangelho é também configurado como um evangelho que vai além daquele que Paulo tem pregado (v. 8). E é uma perversão do evangelho de Cristo (v. 7). Temos, portanto, uma oposição: um outro evangelho introduzido por elementos não especificados e aceito pelos gálatas x evangelho de Paulo que se identifica com o evangelho de Cristo.

É importante perceber que o tempo verbal utilizado nos versículos 6 a 9 é o presente. Em outras palavras, Paulo fala de algo que está em processo, e que, portanto, tem esperanças de alterar.

Tais elementos permitem reconhecer tensões presentes no cristianismo iniciante e que não são periféricas. Pelo contrário, são centrais a ponto de determinarem um cristianismo verdadeiro e outro falso. Em torno do evangelho de Cristo surge uma disputa. Paulo, afirmando-se como aquele que é seu detentor e pregador, e os indivíduos que pregam aos gálatas e que, certamente, também afirmam ser seu evangelho aquele que Jesus Cristo trouxe aos seres humanos.

Paulo é contundente com aqueles que têm pregado o outro evangelho. Ele os considera “anátemas”, ou seja, malditos (v. 8-9). Outras característica que pode ser identificada nesses pregadores a partir do discurso de Paulo é que, em oposição ao que o apóstolo afirma sobre si mesmo, eles procuram “agradar aos homens” (v. 10). Paulo percebe o perigo da pregação desses indivíduos, pois ela é atraente e convidativa.

A partir do v. 11 Paulo apresenta seu chamado apostólico como o contexto que valida seu próprio evangelho. Primeiro, ele não é “segundo homens” (v. 11), ecoando o que já dissera em 1.1. Em seguida, uma descrição de seu chamado. O evangelho chegou a ele mediante “revelação de Jesus Cristo” (v. 12). O que confirma tal revelação? Seu histórico dentro do judaísmo. Em segundo lugar, ele destaca a obediência à revelação (v. 16-17). Tem consciência do chamado para os gentios e, uma vez que o recebeu, não consultou homem nenhum, nem mesmo os apóstolos em Jerusalém, mas voltou para Damasco.

Somente três anos depois que subiu a Jerusalém (v. 18). Esteve com os apóstolos Pedro e Tiago. Nada além disso é dito por Paulo. Em seguida dirigiu-se para as regiões de Síria e da Cilícia (v. 21). E conclui afirmando que as igrejas da Judeia não o conheciam pessoalmente, mas comentavam o fato de que aquele que os perseguiu agora pregava a mesma fé que eles professavam (v. 23).

Concluo com algumas reflexões.

As batalhas introduzidas por Paulo nesta carta não são novidade no decorrer da história da igreja e nem no contexto em que vivemos no Brasil. Aqui também temos inúmeros líderes professando seus próprios evangelhos e detratando os demais. Quem está correto? Qual evangelho é o verdadeiro? Questão complexa e de difícil ou impossível resposta.

Podemos dizer como Paulo: que a definição se dá a partir da revelação que esses homens receberam? Penso que não. Esse critério se perdeu depois dos tempos apostólicos. Não podemos mais nos justificar a partir de um pretenso apostolado recebido. Somos todos apóstolos no sentido amplo do termo (o termo grego significa “enviado”). Tal fato nos coloca todos no mesmo plano. Todos fomos chamados, recebemos a revelação de Jesus Cristo em nossas vidas.

Qual o critério de definição para outorgar o evangelho de um e não o de outro? Um primeiro está na relação do evangelho com seus ouvintes. Aquele que o prega procura a aprovação dos homens? Centra sua pregação na vontade daqueles que o ouvem? Se sim, certamente esse evangelho não é o de Cristo.

Outro critério é o histórico de vida. Paulo baseia-se nele. Gasta tempo ao descrever sua experiência de vida, passando de perseguidor do evangelho para pregador do evangelho. Essa experiência é evocada pelo apóstolo como fator de julgamento entre ele e os demais pregadores.

Não que isso signifique que todos os líderes religiosos precisam ter um histórico de vida depravada seguida por uma conversão. Há muitos que são filhos de cristãos e cresceram na igreja. Mas é necessário, e nisso não pode haver transigência, que exista a evidência de um preço pago. E que ele seja apresentado como validação para o ministério.

domingo, 19 de junho de 2011

Início da carta – apresentação e saudação – 1.1-5

Como em outras cartas, Paulo inicia com a apresentação, a identificação dos destinatários e a saudação. Obviamente há variações que se devem aos propósitos específicos da missiva.

Em Gálatas, Paulo se identifica como “apóstolo”. Ele já utilizou o termo nas cartas aos Romanos (1.1, 5), aos Coríntios (1 Co 1.1; 2 Co 1.1), aos Efésios (1.1), aos Colossenses (1.1), a Timóteo (1 Tm 1.1; 2 Tm 1.1) e a Tito (Tt 1.1). Ou seja, em quase todos os seus escritos ele se apresenta, fundamentalmente, como apóstolo.
Mas o contexto aqui é diferente. De modo geral ele é apóstolo “pela vontade de Deus”, assim como em Gálatas, que alternativamente apresenta Deus e Jesus Cristo como a origem do apostolado. Entretanto, a ênfase recai em outro elemento – o negativo. Ele é apóstolo “não da parte de homens, nem por intermédio de homem algum”. Paulo deseja deixar claro que seu apostolado não se origina (“não da parte de...”) de qualquer ser humano, nem é mediado (“nem por intermédio...”) por qualquer um deles.

Sua autoridade apostólica, dessa forma, fica vigorosamente desconectada de qualquer vínculo de dependência com quem quer que seja. Em 1.12-17 ele reafirmará (o que os gálatas já deveriam saber) a origem de seu chamamento para ser apóstolo, declarando novamente não depender de homens, inclusive daqueles que eram apóstolos antes dele (1.17).

Em seu comentário a Gálatas (Word Biblical Commentary, v. 41), Richard Longenecker destaca dois aspectos da abordagem negativa da apresentação de Paulo. O primeiro é o lado defensivo da resposta, identificado pelo comentarista como “apologético”, e o segundo é o aspecto agressivo, nomeado como “polêmico” por Longenecker. Os dois elementos permitem concluir que a introdução da carta é diferenciada das demais, evidenciando uma situação conflituosa.

Se negativamente Paulo define seu apostolado como sem vínculos com qualquer ser humano, positivamente ele provém de Jesus Cristo e de Deus. Na realidade, ficar mais claro dizer que Deus e Jesus Cristo são os mediadores de seu apostolado: “por Jesus Cristo e por Deus Pai” no sentido de “através deles”. É por intermédio deles que Paulo se torna um apóstolo e vive como tal. Deve-se notar que o contraste é apresentado de modo intenso mediante a conjunção adversativa grega allá. Para Paulo, há uma diferença praticamente irreconciliável entre aquilo que os homens poderiam fazer e aquilo que Deus faz por ele.

No v. 2 Paulo menciona que a carta provém também de “todos os irmãos meus companheiros”, possivelmente como indicação de que não está só no ato da escrita da carta, como também não está desacompanhado na apresentação dos argumentos que se seguirão. Em um contexto de controvérsia e disputa, isso parece ser importante para o apóstolo.

No v. 3 é apresentada a saudação tradicional nas cartas paulinas: “graça a vós outros e paz [...]”, seguida pelo complemento da ação de Jesus Cristo: “[...] o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso [...]. Como lembra Hans Dieter Betz (Galatians, série Hermeneia, p. 41), se no v. 1 Paulo menciona o que Deus fez por Jesus, agora ele indica o que Jesus fez por nós. Betz sugere que nessa expressão Paulo une duas tradições cristãs primitivas, uma cristológica, relativa à entrega de Jesus, e outra soteriológica, referente ao objetivo de tal entrega: a salvação dos cristãos. A pergunta neste momento é pela razão para Paulo enfatizar a entrega de Jesus pelos “pecados” dos cristãos e para “desarraigá-los deste mundo perverso”. A resposta surgirá no decorrer da carta.

Finalizando, a introdução paulina permite antever uma postura crítica do apóstolo diante dos cristãos gálatas. Para que isso aconteça, ele precisa ter autonomia. Por isso, já no início, resolve estrategicamente afastar-se deles e fazer uso de sua autoridade apostólica. Se ele conseguirá reatar a proximidade cristã com aqueles cristãos, somente a leitura do texto é que dirá.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Gálatas 2,15-16 e a Justificação com base na fidelidade do Messias Jesus

Quando falamos da nova perspectiva sobre Paulo, um dos temas fundamentais da discussão é o sintetizado pela fórmula justificação pela fé. Neste post não pretendo discutir a questão à luz da linha principal de argumentação da nova perspectiva. Seguirei uma senda paralela, algo periférica, mas que reaparece na discussão acadêmica sobre Gálatas e Romanos de quando em vez. O elemento de raciocínio típico da nova perspectiva é a tentativa de ler Gálatas como um escrito judeu-cristão (não apenas “cristão”), ou, como se pretende na velha e às vezes boa tradição exegética, “ler o texto em seu contexto”.

A seguir, a tradução de Gl 2,15-16 na ARA e, posteriormente, a minha tradução do texto de Gálatas, com destaque para as diferenças, a partir de que apresentarei minha leitura para o debate.

ARA: Nós, judeus por natureza e não pecadores dentre os gentios, sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, mas sim, pela fé em Cristo Jesus, temos também crido em Cristo Jesus para sermos justificados pela fé em Cristo, e não por obras da lei; pois por obras da lei nenhuma carne será justificada.

JPTZ: Nós, judeus de nascença, não nascidos dentre pecadores gentios, somos sabedores de que NENHUM SER HUMANO PODE ALCANÇAR JUSTIÇA COM BASE NAS OBRAS DA TORÁ, MAS, SOMENTE MEDIANTE A FIDELIDADE DO MESSIAS JESUS. Também nós, assim, PASSAMOS A RECONHECER JESUS COMO O MESSIAS, A FIM DE ALCANÇARMOS JUSTIÇA COM BASE NA FIDELIDADE DO MESSIAS E NÃO COM BASE NAS OBRAS DA TORÁ, posto que, com base nas obras da Torá, NINGUÉM PODERÁ ALCANÇAR JUSTIÇA.

Note, em itálico, a redundância da compreensão tradicional do texto de Gálatas: “pela fé em Cristo cremos em Cristo para sermos justificados pela fé em Cristo”. A expressão “pela fé em Cristo”, que ocorre duas vezes, é tradução de uma locução grega com dois substantivos ligados pelo caso genitivo – que é entendido como genitivo objetivo (Cristo é o objeto da fé). A expressão “cremos em Cristo” é uma oração com verbo e objeto indireto. Esta tradução segue a “velha” perspectiva: nós, seres humanos, somos pecadores e quando cremos em Jesus Cristo (aceitamos Jesus pela fé), somos inocentados por Deus e entramos na vida nova. Desta forma, a fé é o oposto das obras (sem “da Torá”), pois como somos salvos pela graça de Deus, não há mérito nenhum de nossa parte. (Repare bem: aqui em Gálatas 2,15-16 não ocorre a palavra graça!)

Podemos, porém, ler o texto sob outra perspectiva. Vejamos os principais passos dessa nova perspectiva:

(1) Ao invés de “justificados pela fé”, uso a expressão “alcançar justiça” – entendendo a justiça (na cultura hebraica antiga – libertação realizada por YHWH em parceria com “seu povo”) como o objeto de nossa busca humana. No contexto da carta aos gálatas, poderíamos identificar a justiça com a liberdade (de Gl 5). Em outras palavras, nós seres humanos vivemos em escravidão a um mundo no qual fomos lançados ao nascer, e não podemos transcendê-lo a partir de nós mesmos. Só com a parceria histórica de YHWH – corporificado no Messias – é que conseguimos alcançar a liberdade que desejamos. Logo, não se trata de um drama moral, mas existencial (a um tempo, ôntico e ontológico, no linguajar de Heidegger).

(2) Ao invés de “Cristo Jesus”, o Messias Jesus. Isto para ressaltar o caráter judaico do termo, que é um título, e não um sobrenome. É quando nos identificamos com este Messias em particular, e somente com este, que alcançamos a justiça de YHWH.

(3) Leio o genitivo como subjetivo e traduzo pístis como fidelidade – posto que na cultura hebraica fé=fidelidade. Ademais, como em nossa tradição a fé já se reduziu à adesão intelectual a uma crença, ou à experiência religiosa particular, é melhor evitar a palavra fé e usar um termo que, em português, corresponde melhor ao pensamento judaico antigo: fidelidade. Esta opção leva em conta um dos textos básicos favoritos de Paulo: o justo viverá por sua fidelidade. Assim, Habacuque permanece um texto judaico, não se convertendo ao cristianismo pós-bíblico.

(4) Seguindo (3), o contraste estabelecido por Paulo é entre “a fidelidade do Messias” e “as obras da Torá” – e aqui podemos caminhar na trilha normal da “nova perspectiva”, especialmente a interpretação de Dunn, que vê as “obras da Torá” como o distintivo identitário dos judeus em oposição aos gentios. O contraste é, então, entre uma physis (natureza, “judeus de nascença”) e uma phidelidade (seguir o Messias). Para alcançar a justiça, as marcas mundanas são irrelevantes (judeu, grego, homem, mulher, escravo, livre, bárbaro, cita, etc.). É a fidelidade do Messias ao projeto de YHWH que possibilita a todo e qualquer ser humano alcançar a justiça=liberdade. Note: a fidelidade do Messias equivale, aqui, à graça de Deus em Efésios (texto posterior, já mais distanciado da cultura judaica e mais próximo da tradição cristã paulina). Por que Deus é gracioso, a fidelidade do Messias substitui as “obras da Torá” como caminho da libertação e liberdade. Ou: uma vez que Deus é fiel a si mesmo, Ele nos abre o acesso à liberdade em parceria (fidelidade) com Ele mesmo, independentemente de nossa natureza (nosso estado natural, de nascidos em um tempo-espaço cultural-nacional).

(5) É por isso que “também nós, judeus de nascença” passamos a reconhecer Jesus como o Messias (uso o termo reconhecer no sentido forte da discussão filosófica recente com Axel Honneth, Paul Ricoeur, Charles Taylor, Jürgen Habermas e Nancy Fraser). Como não há distinção entre pessoas, os judeus só alcançam liberdade se fizerem aliança com o Messias Jesus = YHWH (isto é, precisam reconhecer Jesus como o Ungido de YHWH). Nessa aliança, as obras da Torá já não mais contam como meio de libertação. Cumpre-se, então, a expectativa de Jeremias e Ezequiel: a parceria com YHWH não precisa de mediações institucionais para ocorrer: é uma amizade, um companheirismo, uma relação de fidelidade amorosa.

Paro por aqui e espero as respostas e reações. Só uma palavrinha final. A salvação, então, não tem a ver com a negação do desejo, mas com a sua afirmação – deslocando, é claro, não só o desejo em-si, como também o modo de concretizá-lo. Da “vontade de poder” de Nietzsche, passando pela “vontade de vontade” de Heidegger, chegamos à “vontade de liberdade” de Paulo. O que constitui o ser humano é, assim, a busca permanente da liberdade. (Não seria uma tradução interessante do niilismo enquanto destino do ser, a la Vattimo?)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Gálatas – uma carta difícil

Difícil por seu conteúdo. Denso, forte, polêmico, beirando uma discussão descontrolada, que outros chamariam, de modo mais direto, de “soltar os cachorros”. Sim, Paulo estava enraivecido com os gálatas. Sobre o conteúdo, deixo para outra mensagem.

Difícil também por sua forma e elementos estruturais. No contexto da epistolografia greco-romana em que as cartas paulinas foram redigidas, há elementos que merecem destaque. Em primeiro lugar, o fato de não haver ação de graças na carta. Fazia parte do gênero e Paulo a utilizava na correspondência com as igrejas. Basta conferir Rm 1.8-15; 1Co 1.4-9; 2Co 3-11; Ef 1.3-14; Cl 1.3-11; 1Tss 1.2-10; 2Tss 1.3-12. Até mesmo para os coríntios Paulo tem palavras de gratidão. Mas para os gálatas não! Essa observação assume maior importância quando sabemos que era costume do apóstolo incluir nas ações de graças os temas que iria desenvolver em suas cartas. No caso da carta aos gálatas, ele opta pela ausência do tópico, por motivos que serão apresentados, dentre eles por resolver retoricamente não adiantar os temas sobre os quais pretendia discorrer.

Outro elemento é a insistência em afirmar que é apóstolo “não da parte de homens” (1.1); que não procura “agradar a homens” (1.10); e que seu evangelho não foi recebido de “homem algum” (1.12); que, ao ouvir o chamado de Cristo, não consultou “carne e sangue” e nem “subiu a Jerusalém aos que já eram apóstolos antes dele” (1.16-17). Tais afirmações transparecem a preocupação de Paulo em manter sua independência em relação a quem quer que fosse, tanto daqueles com quem pretendia disputar, como também para com os líderes e apóstolos que estavam em Jerusalém. Ao mesmo tempo, com a dureza de suas palavras deseja manter intacto seu chamado apostólico, colocando-se em pé de igualdade com os de Jerusalém e com os pseudoapóstolos. Somente como apóstolo Paulo teria autoridade para escrever o que escreveu aos gálatas.

Um aspecto é a repreensão de Pedro por Paulo (2.11-21). Certamente não foi fácil para o apóstolo. Mas como todo homem inteligente e pragmático, ele certamente reconheceu na situação criada pelo abandono da mesa dos gentios por Pedro o momento adequado para fincar posição e demonstrá-la publicamente. Dessa forma, ele pretendia fortalecer não apenas seu ministério entre gentios, mas também dar forças e confiança aos seus seguidores.

Como última observação destaco a abordagem de Paulo ao “evangelho”. Em Gálatas ele não é apenas o “evangelho de Deus”, nem o “evangelho de seu Filho” (Rm 1.1, 9, respectivamente), e tampouco o “evangelho da vossa salvação” (Ef 1.13). Ele é um evangelho que corre o risco de ser desfigurado por outras interpretações. Há o risco de um “outro evangelho” (1.6) que seria uma “perversão do evangelho de Cristo” (1.7). Um evangelho que iria “além daquele que Paulo vinha pregando” (1.8) e que, diante de tal ameaça, recebe a maldição paulina: anátema! (1.8-9). Paulo deixa nas entrelinhas que tal evangelho seria um “evangelho de homens” (1.11).

Os dados acima permitem concluir que Gálatas é uma carta especialmente difícil em seu tom e conteúdo. Procurei, com a identificação de alguns aspectos formais, introduzir essa temática.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

A "nova" perspectiva em chave semiótica

Já dizia Severino Croatto que toda leitura é um "fechamento de sentido" que possibilita uma nova leitura, uma nova "abertura de sentido". Assim, "nova" e "velha" perspectiva não deveriam ser entendidas em chave cronológica, ou substitutiva, como se a nova fosse a verdadeira interpretação de Paulo, enquanto a velha devesse ser marcada com o selo do erro incorrigível. O problema em jogo é o da "inércia" exegética, que, em muitos casos, fez da "velha" perspectiva a "única" leitura possível dos textos paulinos.

A meu ver, porém, além dos problemas já apresentados em relação à "velha" perspectiva (em meu post anterior), penso que outras questões devem ser retomadas em uma leitura dos textos paulinos hoje em dia: (1) a superação do dualismo ontológico a que os textos de Paulo foram submetidos - Paulo era um judeu e não um pensador grego platônico ou aristotélico; sua visão de mundo era "monista", com todos os limites e possibilidades que tal visão de mundo abre a seu possuidor; (2) não podemos reduzir os textos paulinos aos parâmetros das militâncias atuais. Paulo não era simplesmente "machista", "homofóbico", "racista" ou coisa similar. Independentemente da validade das lutas contemporâneas, não podemos retroagir nossa visão de mundo aos tempos antigos e projetar lá os defeitos ou as virtudes de nossas militâncias - e.g., Paulo não era "cristão", nem "protestante", ou algo que o valha; (3) os escritos de Paulo não apresentam um caráter sistemático, de modo que os critérios muita vez usados para determinar "autoria" ou "fidedignidade" de textos são relativamente precários - posto que quase todos eles dependem de uma visão conjunta da "obra do autor". Precisamos trabalhar com critérios precários e aceitar as limitações dos mesmos; e (4) há toda uma nova forma de ler textos paulinos (especialmente a carta aos romanos, mas que pode se ampliar a todo o corpus paulino) que se nutre das novas tendências interpretativas no pensamento filosófico europeu continental. Autores como Hannah Arendt, Jacob Taubes, Alain Badiou, Giorgio Agamben, Slavoj Zizek, Jacques Derrida, Richard Kearney e outros têm encontrado um "novo" Paulo, especialmente do ponto de vista das suas posições políticas e relativas à subjetividade.

Assim, em que a semiótica pode contribuir para a leitura de Paulo em "nova" perspectiva? (1) Como um paradigma alternativo de interpretação de textos (em relação à exegese bíblica e à hermenêutica filosófica), ela oferece um conjunto de perguntas e de modelos interpretativos que rearticulam as questões e os modos de ler os textos; (2) o projeto semiótico visa a uma leitura "integral" do texto, não focando apenas questões de conteúdo, mas questões sociológicas, psicoidentitárias, políticas, etc.; (3) o projeto semiótico não aliena as questões textuais das discursivas, ou, em linguagem mais tradicional, as questões de forma e as de conteúdo - de modo que se pode retomar também em chave semiótica a questão do gênero textual e discursivo, a questão da pragmática e da retórica, bem como a questão propriamente "literária"; e (4) o projeto semiótico não separa "exegese" de "hermenêutica", mas as vê como momentos complementares do mesmo processo de leitura, pois o que o texto "significava" e o que ele "significa" são, igualmente, construções co-enunciativas constituídas pelo ato de ler - de modo que há uma retroalimentação contínua entre "exegese" e "hermenêutica".

Ainda estamos "dando volta no toco", mas logo colocaremos as mãos à obra...

quarta-feira, 25 de maio de 2011

A recepção de Gálatas e a nova perspectiva

O post do Júlio apresentou uma questão que tem sido foco de muitas disputas nos EUA e Europa e que no Brasil tem sido introduzida de forma ainda tímida.

Não pretendo nesta mensagem entrar na discussão, mas salientar um aspecto que pode ilustrar o que ocorre com a Nova Perspectiva sobre Paulo.

Falo da recepção de textos literários, sejam eles bíblicos ou não. Dentro de um quadro composto por autor - obra - leitores há uma dinâmica histórica que não se interrompe e que é cercada por forças nem sempre claras.

Autores escrevem textos e editores editoram livros visando divulgá-los e vendê-los o mais que possível. Do outro lado, leitores sentem-se atraídos por obras, que, ao lerem, atribuem sentido a partir de suas vivências de mundo.

A questão é que nem sempre as ênfases dos autores são mantidas por editores, que podem, mediante ações editoriais externas como prefácios, orelhas, apresentações etc, deslocar sentidos originais com o objetivo, segundo eles, de maior vendagem. Do mesmo modo, o leitor nem sempre aceita ser guiado por direções impostas pelos autores e editores, chegando a compreensões e sentidos estranhos aos dois primeiros.

Essas relações são trabalhadas principalmente por historiadores da cultura que desenvolvem pesquisas ligadas à história da leitura e da recepção de livros.

Tais questões são relevantes para pensarmos a nova intepretação a respeito das posições paulinas, e de Gálatas especificamente. Mas, é bom dizer, o aspecto "novo" de tal leitura não deve gerar estranhamento nem susto. Afinal, todo ato de leitura é, de uma forma ou de outra, uma produção de sentido, novo, a partir de novos leitores em outros tempos que não aqueles da produção da obra.

Isso significa que a Nova Perspectiva sobre Paulo é tão nova quanto foi a leitura de Paulo, via justificação pela fé, feita por Lutero e por outros reformadores. A questão é que esta última interpretação, por distanciamento histórico e por motivos ideológicos/teológicos, é assumida como "a leitura" correta.

Como conclusão do que disse acima, toda leitura traz uma nova abordagem a partir dos vários elementos que a envolvem, a grande maioria deles ligados às vivências dos leitores. Isso não significa que não se possa discutir se uma leitura está correta ou equivocada. Mas deve-se agregar à discussão os aspectos citados acima.

Esse não é exatamente o aspecto dinâmico das leituras feitas no protestantismo multiforme brasileiro?

terça-feira, 24 de maio de 2011

A “nova” perspectiva sobre Paulo

Ao mesmo tempo em que o Leonel nos ajuda com os dados “introdutórios” da carta aos Gálatas, deixem-me começar a apresentar o que se costuma chamar de a “nova perspectiva” sobre Paulo.

Para entender a “nova” precisamos, primeiro, saber qual é a “velha” perspectiva. Basicamente a “velha” perspectiva tem três características: (1) os textos de Paulo são lidos a partir da compreensão luterana da “justificação pela fé” como o contrário da justificação pelas obras. Ou seja, nós lemos as cartas de Paulo como se elas fossem cartas de teologia protestante – a justificação pela fé é a “conversão” a Jesus Cristo em resposta à pregação do Evangelho; (2) as “obras da lei” em Paulo são entendidas como sinônimo de “obras”, ou seja, atos morais que realizamos e que nos garantem algum mérito; e (3) a “Lei” é separada das “obras” e é entendida como o contrário da “graça” – a polêmica de Paulo era contra O (com letra maiúscula mesmo) Judaísmo – ou seja, a religião “legalista”.

Então quais são as características da “nova” perspectiva? Respondo fazendo um quiasmo em relação ao parágrafo anterior: (1) o Judaísmo não é mais entendido como “legalista”, no sentido de que a Lei é contrária à graça. O Judaísmo é entendido como “nomismo da aliança”, ou seja, a Lei depende da graça, vem depois da graça e é a resposta do povo de Israel à graça libertadora de Deus. O legalismo é uma distorção do Judaísmo e não o próprio Judaísmo; (2) as “obras da lei” são o cumprimento das “doutrinas” dos grandes ”partidos” religiosos judaicos (fariseus, saduceus, essênios). São a marca principal da identidade do Judaísmo de acordo com esses “partidos”. O que faz um judeu “judeu” é que ele pratica algumas ações que o distinguem dos gentios – ações tais como: circuncisão, guarda do sábado, alimentação pura...; e (3) a justificação pela fé não é o contrário da justificação pelas “obras”; a justificação pela fé é a marca da identidade dos cristãos em contraste com os judeus e com os gentios. É marca de identidade dos primeiros cristãos, não dos “protestantes”. E é exatamente a “justificação pela fé” que se torna o conceito mais em questão na nova perspectiva sobre Paulo – pois não podemos mais identificar justificação pela fé com a identidade protestante ou evangélica.

Tudo isso que escrevi acima você pode encontrar bem explicado e detalhado no livro de James Dunn, publicado pela Academia Cristã: A Nova Perspectiva sobre Paulo.

Há, porém, algo mais a acrescentar que não está no livro de Dunn. Na América Latina a “nova” perspectiva sobre Paulo é, basicamente, política. Veja, por exemplo, a tese de Elsa Tamez: Contra toda condenação; ou o livreto de Gorgulho e Ana Flora Paulo: o Evangelho da Liberdade; ou um artigo que escrevi para a Estudos Bíblicos: “Reescrever a espiritualidade na vida - Uma proposta para a leitura de Romanos 5-8”. Estudos Bíblicos, v.30, p.67-73, 1991. Perspectiva que, no primeiro mundo, é adotada por autores como Neil Elliot: Libertando Paulo; ou Richard Horsley, etc. Na nova perspectiva política, a justificação é a justiça libertadora de Deus, não só para o indivíduo, mas para toda a criação!

Assim, o que nós três desejamos fazer é ler trechos de Gálatas à luz dessa “nova perspectiva”, mas mantendo o projeto do blog: três olhares distintos e complementares: o literário, o semiótico e o da recepção. O resultado, porém, está em aberto ...

Gálatas – Introdução 2

Continuo o post anterior com trechos extraídos do verbete “Galatians, Epistle to the”, do Anchor Bible Dictionary (v. 2, p. 872-875). Reafirmo o que disse, que tais informações devem ser recebidas como um pontapé inicial para as discussões, e não como fatos inquestionáveis.

A oposição anti-paulina

De grande importância é o que o apóstolo diz a respeito de seus oponentes, cuja agitação ele remonta à Conferência de Jerusalém (2.4). Segundo o apóstolo, a crise no presente é causada por intrusos que quase conseguiram persuadir os os gálatas de que sua salvação dependia da aceitação da Torá e da circuncisão (1.6-7; 5.1-12; 6.12-13).

A questão a respeito de quem eram tais pessoas é ainda uma matéria controvertida. A visão tradicional é apresentada no Prólogo Marcionita, que identifica os oponentes como “falsos apóstolos” que tinham voltado à Torá e à circuncisão (Harnack, 1924: 127-128; 37-38). Chamados Judaítas ou Judaizantes (Gl 2.14; Inácio Mag. 10.3), eles eram vistos como cristãos judeus que erroneamente prescreviam a Torá e a circuncisão para todos os cristãos. A redescoberta e reconstrução do cristianismo judaico por historiadores dos séculos XIX e XX, contudo, trouxe à luz um quadro mais complexo (cf. Lüdemann 1983b para a história da pesquisa e bibliografia). O quadro é consequência de uma série de hipóteses. Lütgert (1919) afirma que Paulo lutou em dois fronts, contra judaítas observantes da lei e contra entusiastas libertinos (“pneumáticos”); a evidência para o segundo grupo, contudo, vem principalmente de 1 Coríntios. Schmithals (para bibliografia, cf. Betz Galatians Hermeneia 7, n. 46; Schmithals 1983a: 27-58; 1983b: 111-113) identifica os oponentes como cristãos judeus gnósticos que por razões mágicas estavam interessados em rituais judaicos mas não na Torá como um todo. Outros pesquisadores optam por outras combinações sincréticas entre elementos cristãos, judaicos, gentílicos e gnósticos. Gálatas, entretanto, não apresenta evidências de gnosticismo, e não devemos pressupô-los a partir de outras cartas paulinas ou de fontes posteriores.

No presente, há um consenso crescente de que os oponentes de Paulo eram missionários cristãos judeus que se opunham à missão paulina. Para eles, a Igreja Cristã era uma extensão da religião judaica, de modo que a união à Igreja demandava a consequente conversão ao judaísmo, a observância da Torá e a submissão à circuncisão. Jewett (1970-71: 198-212) apontou a conexão desse grupo com o Judaísmo Palestiniense, tanto cristão como não-cristão. Um questão posterior é se Tiago (2.12) estava, de fato, por trás dos agitadores (cf. Lüdemann 1983a: 64-66). Betz (Galatians Hermeneia, 5-9) os vê em conexão com o início da história das igrejas da Galácia: após uma fase inicial de entusiasmo espiritual, os gálatas enfrentaram problemas crescentes com “a carne”, até o momento em que os anti-paulinistas os impressionaram com a segurança cúltica e moral proveniente da Torá.

domingo, 22 de maio de 2011

Gálatas – Introdução

Como falamos, passamos a estudar a carta de Paulo aos Gálatas.

Neste post e no próximo colocarei alguns trechos extraídos do verbete “Galatians, Epistle to the”, do Anchor Bible Dictionary (v. 2, p. 872-875), um dos melhores e mais atualizados dicionários bíblicos. Com o complemento de que o autor do verbete, Hans Dieter Betz, é um especialista na carta paulina. O objetivo é dar um pontapé inicial para nossas discussões, lembrando que as citações abaixo não implicam em total concordância com seus conteúdos.

Embora não estejam entre aspas, os parágrafos abaixo são tradução do referido dicionário.

Destinatários

A carta é endereçada às “igrejas da Galácia” (1.2; cf. 3.1). A localização da região denominada Galácia tem sido extensivamente discutida, mas sem resultados definitivos. A localização mais provável é a Anatólia Central, onde tribos de celtas nômades se assentaram após 278/277 a.C. (a “Galácia do Norte” ou “hipótese territorial”). Menos provável é a “Galácia do Sul” ou “hipótese da província”, que supõe que Paulo está se referindo à Província Gálata, estabelecida por Roma em 25 a.C. Tal província incluiria a Galácia bem como algumas áreas ao sul (Pisídia, Licaônia e Panfília) que podem ser conectadas à primeira viagem missionária de Paulo, segundo Atos 13-14. Mesmo assim, as informações apresentadas por Gálatas e Atos não podem ser harmonizadas. At 13-14 não menciona a Galácia. Em 16.6 e 18.23 a “província da Galácia” é mencionada, mas nenhuma missão é descrita. Do mesmo modo, os habitantes da Pisídia e Licaônia não eram chamados de gálatas. Se os itinerários descritos em Atos são historicamente confiáveis, relatando de modo detalhado todas as viagens de Paulo, isso é um problema sem solução. Embora nenhum traço arqueológico tenha sido deixado, a Anatólia Central é a localização mais provável para as igrejas da Galácia (cf. Betz, Galatians, Hermeneia 1-5).

Data e lugar de origem

A carta aos Gálatas pode ser datada apenas aproximadamente, uma vez que não existem evidências concretas. Os pesquisadores argumentam tanto em favor de uma data mais remota quanto de uma mais recente em relação com outras cartas. Teologicamente, Gálatas reflete uma posição mais próxima de 1 Tessalonicenses, enquanto Romanos, a última grande carta paulina, apresenta uma revisão de pontos importantes de Gálatas. Portanto, uma data remota é mais provável.

A carta não apresenta pistas a respeito do lugar de origem. O Prólogo Marcionita (para esse texto cf. Harnack 1924: 127-128) afirma que ela foi remetida de Éfeso, mas o subscripto que consta em alguns manuscritos de Gálatas indica Roma como o lugar do qual ela foi enviada. Os pesquisadores têm argumentado em favor de Éfeso, Macedônia e Coríntio, mas tais indicações não são mais do que meras possibilidades.

Gálatas como um documento histórico – A história da Igreja Primitiva

Informações relativas à história da Igreja Primitiva são comparativamente ricas, embora extremamente breves. Como a missão se espandiu para a Palestina e a Síria muito cedo, não havia, aparentemente, regulamentações concernentes a áreas ou a identidades éticas. Surgiram oposições contra a prática de fazer convertidos entre os gentios sem sujeitá-los à Torá e à circuncisão. Esta disputa gerou a Conferência de Jerusalém (2.1-10), onde três partidos se apresentaram: Paulo, Barnabé e Tito, como delegados da missão gentílica; Tiago, Cefas e João, como os “pilares” da igreja de Jerusalém (2.9); e a oposição anti-paulina, chamada de “falsos irmãos” (2.4). O último grupo exigia a circuncisão e a obediência da Torá aos gentios bem como aos judeus cristãos. Os dois grupos primeiros concordavam entre si, em detrimento do último. O gentio Tito participou da conferência e retornou incircunciso (2.3).

Em Gl 2.7-9 Paulo apresenta os pontos de concordância a que chegou a conferência. Foi reconhecido um Deus e uma igreja, mas a missão foi dividida em duas. Cefas assumiu o “apostolado da circuncisão”, enquanto Paulo foi reconhecido como o líder da missão aos gentios. Como gratidão (2 Co 9.6-15; Rm 15.27), o apóstolo promoveu uma coleta para levantar fundos aos pobres da igreja de Jerusalém (2.10).

O episódio final apresenta o conflito entre Paulo e Cefas em Antioquia (2.11-14). O que estava em discussão era se judeus cristãos poderiam ter comunhão à mesa com cristãos gentílicos sem que violassem suas leis de pureza (koinophagia, “consumo de alimentos impuros”). A questão era: o que é mais importante, a comunhão cristã ou as leis de pureza judaicas? Paulo assumiu o lado dos cristãos gentios, defendendo suas posições a respeito da fé e da salvação; mas Cefas, Barnabé e outros foram persuadidos a se retirar pelos “homens mandados por Tiago”. A disputa não foi resolvida, resultando na separação de Paulo dos outros cristãos judeus presentes; um resultado futuro foi a crise na Galácia que gerou a carta de Paulo.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Novo livro - Gálatas

Caros blogueiros,

Terminados os comentários ao livro de Rute, resolvemos abordar um texto do Novo Testamento. A escolha recaiu sobre a carta do apóstolo Paulo aos Gálatas. Pensamos que há nessa epístola importantes questões, tanto do ponto de vista da abordagem metodológica quanto da relevância para os tempos em que vivemos.

Logo começaremos as postagens. Esperamos que gostem!

Os editores.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Momento final. Tempo de avaliação e de gratidão. Rute 4

O último segmento do livro de Rute a ser analisado é pequeno – 4.13-22. No entanto, como final do livro, é de importância fundamental para a compreensão do drama das viúvas e de seu parente resgatador.

Os personagens principais não são sujeitos do discurso no texto. Ou fala-se deles, ou então fala-se sobre eles. Ocorre o mesmo que se deu no início do livro (1.1-7). No primeiro capítulo foi feita uma descrição dos cenários, personagens e dramas vividos para somente depois introduzir os personagens em ação. Agora, no final, há semelhante estratégia. Com exceção do v. 13, que relata a união entre Boaz e Rute, os demais versículos silenciam a respeito das atitudes dos personagens. Suas ações e falas ficam no passado. Agora é tempo de avaliação final.

Para tanto, duas vozes são ouvidas. A do narrador (v. 13, 16, 18-22) e a das mulheres (v. 14-15, 17). De modo alternado elas relatam o resumo final da história. Embora os diálogos se constituam no ponto central do livro, a presença narratorial também tem sua importância e se manifesta no enredo de modo claro e sem grandes envolvimentos pessoais. Quando necessário, ressaltou o sofrimento (1.3-5), e quando a situação foi alterada, relatou os resultados (2.3, 23; 4.13). Quanto a isso, o narrador acompanha o desenvolvimento da história. Não nega, como poderia fazer com pseudoargumentos teológicos, que o sofrimento atinja as protagonistas, mas, ao mesmo tempo, relata a alteração desse quadro. É isso que ocorre no final. De modo sintético o narrador dá a conhecer ao leitor que, de fato, Boaz cumpriu a promessa e tomou Rute como esposa, tiveram um filho (4.13) e ele foi o consolo de Noemi (v. 16). Como última informação, apresenta a descendência de Boaz, cujo ápice é o futuro rei Davi.

Central neste trecho é a voz das mulheres, que já havia aparecido anteriormente (1.19). Naquele momento, demonstrando surpresa e assombro pelo estado em que se encontrava Noemi. Na segunda ocorrência, a situação é inversa. Elas louvam a Deus por trazer à anciã um neto que será, ele mesmo, seu resgatador (4.14) e definem, de modo que não feito ainda, qual foi o papel de Rute para com ela: não apenas aquela que lhe dá um neto e a posteridade da família, como também a realidade inconteste de que isso se acontece porque ela “a ama”, e “é melhor do que sete filhos”. Eis aqui uma revelação feita pelo narrador por intermédio da boca da mulheres.

Não se nega a perda terrível sofrida por Noemi. Isso está claro em todo o livro. Mas o que vai se revelando, inicialmente de modo implícito, mas cada vez mais de forma concreta mediante as ações de Rute é que, embora ela não ocupasse o espaço emotivo daqueles que faltavam, ela não apenas assumiu o papel deles, como sua ação é interpretada pelo coro de mulheres como uma ação ideal (“sete filhos” era tido como o número ideal de filhos. Cf. 1 Sm 2.5 e Jó 1.2). Ou seja, Noemi não ficou desamparada, mas teve, em lugar daqueles que se foram, alguém à altura para substituí-los, como o enredo deixa claro.

Último dado a ser comentado a respeito da participação do coro de mulheres é a designação do nome para o filho de Rute/Boaz (4.17). Isso era incomum em Israel. Ou as mães atribuíam nome aos filhos (cf. Is 7.14) ou os pais (Lc 1.62-63). Por que as mulheres tomam tal iniciativa? Minha hipótese é que essa é uma estratégia do narrador. Ao invés dele mesmo descrever a cena, ou de apresentar os pais nomeando o recém-nascido, ele segue a estratégia de indicar acontecimentos importantes a partir de terceiras pessoas. Isso significa que o nascimento e o nome da criança são autenticados pela constatação daqueles que estão em volta, de que, de fato, esse é um acontecimento especial.

A criança será avô do futuro rei Davi. Esse é o ponto alto. E mostra como uma família sai da desgraça total (sem terra, sem dinheiro, sem descendentes) para se tornar aquela que traria ao mundo o principal e mais importante rei que haveria de nascer em Israel.

Bem, podemos pensar em algumas conclusões.

Uma delas foi estabelecida logo acima. O livro de Rute nos mostra que, para aqueles que creem e confiam em Deus, mesmo quando ele parece ser o inimigo, como julgou inicialmente Noemi, nunca é o fim da linha. Sempre há e haverá uma porta aberta, uma possibilidade de resgate e libertação, um razão pela qual orar e crer.

Outro aspecto muito belo da história é a estratégia de sua apresentação. Os diálogos são centrais, e as avaliações são feitas, não pelos próprios personagens, mas por terceiros. Isso revela que o mais importante não é o que pensamos de nós mesmos ou como nos avaliamos, embora a necessidade de consciência ética e de compromisso com Deus sejam importantes. O que vale é o que fazemos de concreto e que pode ser visto e avaliado pelos que nos veem. É aí, nas situações da vida, que nosso testemunho é avaliado e provado.

Um último dado para reflexão é a importância da família. Não digo isso em uma perspectiva moral, embora ela seja importante, mas de unidade social. Noemi e Rute sobrevivem apenas por que resolvem permanecer juntas. Caso contrário, a história teria acabado no primeiro capítulo, com Rute voltando para casa e Noemi, provavelmente, morrendo. É a família que nos tem e nós a temos. Ao final, esse é o fato mais importante. Mesmo em termos da presença na sociedade. E não falo mais acerca de sobrevivência. Falo de cidadania, de valores, de visão de mundo. Somos nós, famílias, que formamos a base da sociedade. Embora a nossa seja muito diferente daquela em que viveram os personagens do livro de Rute. Eis aí nosso desafio. Não a tentativa de uma volta saudosista de um tempo que não mais existe, mas a vivência de valores cristãos em um mundo em transformação. Mesmo o rei mais importante da história de Israel somente tem sentido se inserido nas lutas e vivências da pequena família de Noemi/Rute/Boaz.

Um questionamento, quase a título de provacação. Não passa imperceptível o papel da mulheres em Rute. Temos duas protagonistas e, embora Boaz também ocupe papel central, ele é quase que manipulado pelas mulheres, embora sua bondade inata sempre esteja presente. E temos o coral de mulheres ressaltando e reafirmando aspectos centrais para a história. E tudo isso em um mundo patriarcal. Vale a pena refletir sobre isso!

sábado, 7 de maio de 2011

Lançado ...

Amigas e amigos,

O lançamento aconteceu. Tivemos um debate muito agradável sobre o livro, além de contarmos também com a presença de Alessandro Rocha, que lançava seu livro sobre Ecumenismo no século XXI. O estímulo de vocês nos motivou a transformar nossos papos em livro. Por isso, agradecemos sinceramente a todas e todos vocês, e esperamos continuar nos divertindo e nos motivando a ler mais e melhor a Bíblia - afinal de contas, a alegria do Senhor é a nossa força.

domingo, 1 de maio de 2011

Lançamento do livro "A Bíblia sob três olhares"

Caros amigos blogeiros.

Fazemos um pequeno intervalo em nossas atividades para comunicar com muita alegria que as mensagens de nosso blog foram transformadas em livro: "A Bíblia sob três olhares", publicado pela Fonte Editorial.

Agradecemos o apoio e o estímulo de vocês, leitores deste blog, por intermédio de mensagens e trocas de informações.

O livro será lançado em São Paulo, no próximo sábado, dia 07/05, às 10h00, na Igreja Presbiteriana Jardim das Oliveiras, Alameda Jaú, n. 752, próximo da estação Trianon-Masp do Metrô. Haverá uma bate-papo sobre o livro.

Todos estão convidados e ficaremos felizes em podermos encontrá-los pessoalmente.

Os editores.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

“Trocar o logos da posteridade pelo logo da prosperidade” – Rute 4

O título deste post é extraído de uma canção de Gilberto Gil, cujo título é Logos versus Logo, do disco Dia Dorim, Noite Neon (1985). Nessa canção, Gil faz sua leitura crítica da modernidade capitalista, defendendo sua utopia de um mundo artisticamente reencantado. Não me interessa, porém, interpretar Gil, mas, sim, voltar ao texto de Rute e suas paixões, inspirado pela inspiração do ex-ministro.

Notemos os termos relativos à posteridade no capítulo 4: “para perpetuar o nome do morto sobre seu patrimônio” (v. 5); “para perpetuar o nome do falecido sobre sua herança e para que o nome do falecido não desapareça do meio de seus irmãos nem da porta de sua cidade” (v. 10); “e que graças à posteridade que Iahweh te vai dar desta jovem, tua casa seja semelhante a de Farés” (v. 12); “que seu nome seja célebre em Israel” (v. 14); e “esta é a posteridade/descendência de Farés” (v. 18).

Em um dicionário, a posteridade é descrita primariamente como descendência, ou como um tempo futuro. Enquanto paixão é descrita como “glória futura; celebridade, imortalidade” – ou seja, a posteridade tem a ver com a atitude da pessoa diante da ausência, uma atitude mais marcada pela esperança e segurança do que pela aflição e insegurança. Em culturas nas quais a honra da pessoa vale tanto quanto, ou até mais do que o patrimônio econômico, a possibilidade da extinção do nome é um perigo, uma ameaça constante. Contra a extinção do nome e o fim da honra se erige a expectativa da posteridade, da continuidade do nome, da própria existência. Em outras palavras, a expectativa positiva de descendentes gera a paixão positiva da posteridade, a esperança de ter o nome e o patrimônio perpetuados. A posteridade, tanto econômica como existencial, depende da descendência. Os filhos garantem a continuidade, a permanência do nome e do patrimônio (nos versos 5 e 10 usa-se o verbo qûm, firmar, estabelecer, confirmar, fazer durar); nos versos 2 e 18 trata-se da semente e das gerações futuras e no verso 14 trata-se do verbo “proclamar”, ou seja, trata-se de que o nome de Farés (Peres) continue a ser mencionado, falado em Israel.

Em culturas como a nossa, fortemente marcadas pelo presenteísmo de cunho capitalista, o futuro é intensamente vinculado ao presente, de modo que a expectativa de posteridade é substituída pela ambição (em dicionário descrita como “forte desejo” ou “anseio veemente”), posto que a posteridade é vinculada exclusivamente ao patrimônio – é este que dura, nós, humanos, morremos. Nosso nome somente pode perdurar se a ele estiver associada uma riqueza, uma realização objetiva. É a isto que Gil faz menção com sua frase lapidar “trocar o logos da posteridade, pelo logo da prosperidade”. Uma é paixão solidária, intersubjetiva. Outra é paixão conquistadora, objetiva. Quando a posteridade não é apenas objeto, mas valor cultural, desenvolve a paixão de uma permanência existencial, humana, intersubjetiva. Quando, porém, a posteridade é mero objeto, valor monetário, desenvolve-se a paixão de uma ansiedade objetual, um querer-ter desmesurado que subordina o querer-ser.

Não seria o sucesso da “teologia da prosperidade” um sintoma da negação da posteridade? A ambição no lugar da reputação? O patrimônio no lugar da existência?

terça-feira, 26 de abril de 2011

Descendência – a bênção final. Rute 4

Até este momento percorremos a saga de Noemi e Rute através da perda de bens e familiares em terra estranha, e o retorno para Belém em total desamparo. A partir daquele momento, principalmente pela estratégia de Noemi e a bondade de Boaz o destino das mulheres começou a ser alterado. Elas conseguiram sustento e a promessa de resgate da parte de Boaz.

O capítulo 4 coloca em prática aquilo que Noemi havia dito de Boaz (3.18). Segundo ela, ele não descansaria até resolver o problema do resgate. O narrador não nos dá a conhecer de onde vem a convicção da anciã a respeito do parente. Mas ela está certa, nesse mesmo dia ele procura resolver a questão do resgate (4.1).

Boaz já havia informado Rute que havia um resgatador mais próximo de Noemi, ao qual caberia o direito do resgate (3.12). Sob ele estaria a responsabilidade de resgatar a terra da parente e de gerar descendência a Rute (Dt 25.5-10). Por isso, Boaz se dirige para a porta da cidade, local onde os relacionamentos sociais dos mais diversos níveis se davam (4.1), chama testemunhas e o resgatador, apresentando-lhes a situação. Este aceita resgatar a terra de Noemi (4.4), possivelmente vendida antes da ida para Moabe, e que agora ela pretendia reaver, mas sem ter condições para tanto. Entretanto, quando é notificado a respeito da responsabilidade de gerar um filho para Rute, ele rejeita sua responsabilidade, alegando que tal atitude prejudicaria sua herança (4.5-6). Possivelmente o que estava em jogo era a legislação mosaica que previa a possibilidade de um parente receber a herança de outro sem descendentes imediatos (Nm 27.1-11). Portanto, receber Rute significava ter sobre si a sombra de ter que dividir suas posses com outra pessoa, o que obviamente geraria problemas familiares.

Para formalizar sua recusa, o resgatador executa um ritual antigo e desconhecido dos leitores/ouvintes, visto que o narrador sente necessidade de explicá-lo (4.7-8). Boaz, então, vê-se liberado para assumir Noemi e Rute. Ele readquire os bens de Noemi e casa-se com Rute para suscitar descendência a Malom (4.9-10).

As testemunhas e o povo, que havia se ajuntado à porta, proclamam uma bênção para a nova família, desejando-lhes felicidade e prosperidade. A introdução desse grupo de expectadores desempenha a função de confirmar e de realçar publicamente o que havia ocorrido. Dessa forma, a imagem inicial de sofrimento que as duas mulheres deram a conhecer aos moradores de Belém (1.19) é substituída, ao final, pela imagem de bênção.

Situação familiar resolvida, descendência prometida, o clímax da história se efetivará no bloco final (4.13-22). Tais versículos serão comentados no próximo post.

terça-feira, 19 de abril de 2011

A bondade como centro da vida

Caminhando para o final das análises do pequeno livro de Rute, julgo que é conveniente gastar algumas palavras sobre um elemento central em seu enredo: as ações bondosas dos personagens no contexto familiar.

Não que o estímulo para fazer o bem se retrinja aos do nosso próprio sangue, mas é com eles que tal compromisso possui maior concretude de realização e, em geral, é colocado em segundo plano ou mesmo esquecido.

Primeiramente é importante destacar que a bondade assume maior relevância em situações de necessidade. Nem sempre, mas principalmente. É o que se vê no capítulo inicial do livro. A ação bondosa de Rute ocorre quando da morte do esposo e dos filhos de Noemi, momento em que está sozinha e desamparada.

Rute continua amparando e cuidando de Noemi no capítulo dois. Quando as duas mulheres chegam em Belém, ela sai para os campos em busca de alimento. Vai de um campo a outro, até chegar nas terras de Boaz. Ali passa o dia trabalhando incansavelmente.

No capítulo três Rute segue orientações de Noemi e vai até Boaz para estimulá-lo a assumir seu papel de resgatador. Para tanto, ela se submete detalhadamente às indicações da sogra a respeito de como proceder. Não há, da parte dela, nenhuma revolta ou desprezado para com a anciã.

Noemi, por sua vez, amparada e sob os cuidados de Rute, preocupa-se com o destino dela e, desse modo, age bondosamente. Tal postura pode ser vista já no primeiro capítulo. Mesmo sozinha, insta com as noras para que retornem para seu povo e suas famílias. Orfa, compreendendo a situação e que era, de fato, o mais sensato a ser feito, aceita o conselho e retorna para o lar paterno. Isso demonstra que Noemi não estava blefando.

Nos capítulos dois e três Noemi assume o papel de conselheira de Rute. Após esta voltar dos campos e do encontro com Boaz, é a sogra que esclarece quem é aquele homem a orienta a manter contato com ele. O capítulo três inicia com a preocupação de Noemi sobre o futuro de Rute. Não deseja que tenha seu destino: ficar abandonada e só. Assume o compromisso de buscar um lar para ela. É nesse contexto que arquiteta o plano para que Rute se achegue a Boaz.

Boaz, por sua vez, é descrito como o homem bom por excelência. Não apenas permite que Rute recolha espigas em suas terras, o que seria normal, mas também lhe dá gratuitamente espigas, por duas vezes, para que se alimente assim com a sogra. Ele cuida para que ela não seja molestada por nenhum de seus funcionários e assume o compromisso de resgatar as mulheres, caso o parente mais próximo desista.

Bem, todo ato de bondade tem um preço a ser pago. Nesta história não é diferente. Rute deixa os seus, sua terra e a opção de buscar casamento com alguém de sua idade para casar-se com Boaz, homem muito mais velho. Noemi não se permite afundar em depressão e negativismos. Continua firme e coloca Rute em primeiro plano. Boaz, homem de posses e compromissos, não se esquece de seu dever perante a lei e assume os compromissos, inclusive financeiros, do resgate.

Concluindo, é muito bela a forma como o narrador constrói as linhas de relacionamento entre os personagens principais de sua história. A bondade está presente em todos os momentos, nos ensinando que a família é o bem maior que temos e a quem devemos compromissos de cuidado e zelo, mesmo quando, e isso sempre acontece, isso nos seja difícil.

Como a história de bondades múltiplas termina? É o que veremos no capítulo 4.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Em busca da segurança familiar

Se o capítulo 2 resolve o problema da subsistência apresentado no início do livro, este capítulo aborda outra questão não tão imediata, mas igualmente importante: a necessidade de vínculo familiar, que implica, em última instância, em assegurar condições mínimas de sobrevivência.

Convém lembrar que um dos fatores determinantes para que Noemi retornasse para Belém, levando consigo sua nora, era a morte do esposo e filhos, o que as deixava vulneráveis do ponto de vista das relações sociais.

Noemi, mulher sagaz, ao ouvir os relatos de Rute a respeito do modo bondoso como foi tratada por Boaz, assume a iniciativa de desenvolver uma estratégia para fazer com que ele assuma o papel de resgatador de ambas.

O caminho é ligá-lo a Rute. Com isso, Noemi lhe dará um esposo em lugar do filho morto (3.1) e também terá assegurado seu futuro. Para tanto, orienta a nora a preparar-se (v. 3a) e a se encaminhar para o local onde Boaz se encontra trabalhando os frutos da colheita. Ali deve aguardar o momento em que ele se deita e então achegar-se aos seus pés (v. 3b-4). Depois disso, ele assumirá a direção da situação, diz ela. Rute não titubeia. Assume o plano e o coloca em execução (v. 5).

Rute age conforme o combinado. Aproveita que Boaz está um tanto alegre depois de um bom vinho e deita-se a seus pés (v. 6-7). No meio da noite ele acorda assustado ao ver que havia uma mulher ao seu lado. Certamente a escuridão não permite que identifique Rute, visto que já a conhecia. Ela se identifica, dizendo em seguida que ele deve “estender a capa sobre ela” (v. 9). Essa linguagem traz a ideia de um compromisso de casamento, ou mesmo sexual (cf. Ez 16.8), visto que ele é seu resgatador.

Como anteriormente, Boaz é gentil com Rute, exaltando o fato de que, ao invés de procurar jovens para relacionar-se, como era de se esperar, ela cumpre os compromissos familiares de Noemi, procurando-o (v. 10). A Bíblia do Peregrino é mais explícita nesse versículo ao dizer: “[...] pois não procuraste um ‘pretendente’ jovem, pobre ou rico”.

Boaz aceita de bom grado assumir o papel de resgatador (v. 11). No entanto, lembra que existe um impedimento legal, visto que há outro parente mais próximo de Noemi (v. 12). Portanto, ele sugere que ela permaneça por ali durante à noite, até que no dia seguinte a questão do resgate seja decidida.

Rute levanta-se antes do amanhecer para que não seja identificada por outras pessoas, visto que seu procedimento naquela noite havia sido arrojado e poderia comprometer Boaz (v. 14). Antes de sair, entretanto, Boaz, bondosamente, dá a ela seis medidas de cevada para serem levados para Noemi (v. 15).

Como no final do capítulo 2, Noemi novamente indaga a nora a respeito dos acontecimentos (v. 16). Ao ouvir o relato, orienta Rute a aguardar os desdobramentos, convicta de que Boaz resolverá a situação ainda naquele dia (v. 17-18).

Cabe uma reflexão aqui. Talvez decepcione o leitor moderno o modo como Noemi e Rute tratam o problema da falta de amparo masculino. Não vemos aqui nenhum dos elementos românticos tão presentes em nossa cultura. Pelo contrário. A situação é tratada de modo pragmático. O esposo é, antes de tudo, uma necessidade real e imediata.

É claro que existem questões culturais aqui. Não podemos ver o texto como normativo em termos de procedimento amoroso. Ao mesmo tempo, sob outro ângulo, o comportamento de Rute é altamente inspirativo. Assim como ela abandonou sua terra e seu povo para seguir e cuidar de Noemi, agora ela abandona a possibilidade de escolha amorosa para suscitar um resgatador e assim prover amparo para a sogra.

Nesse sentido, mesmo em detrimento da vantagem pessoal e de interesses próprios, Rute coloca em prática o cuidado amoroso para com Noemi. Essa é a proposta do texto e, ao mesmo tempo, seu questionamento para os leitores: até onde estamos dispostos a ir como consequência do amor ao próximo?