Passo agora à análise do texto.
A perícope se organiza de forma clara. Começa com uma pergunta (v. 21) dirigida aos gálatas, como Paulo já fez anteriormente (3.1-5; 4.9, 15-16), identificada pelo pronome da segunda pessoa plural (vós). Em seguida o próprio apóstolo responde a pergunta (v. 22-30) utilizando a alegoria do texto bíblico. A conclusão (v. 31) vem na forma de afirmação na qual o próprio Paulo se inclui, indicada pelo pronome da primeira pessoa plural (nós, implícito).
Como o cerne da discussão na carta é a validade e interpretação da Lei, Paulo volta a ela a partir de uma pergunta. Ele não discute a interpretação da Lei, mas sua própria razão de ser e, com isso, sua relevância para a atualidade de seus leitores. Para isso, tem como ponto de partida o alto grau de reverência que os gálatas nutriam para com a Lei (“os que quereis estar sob a lei”). Sua pergunta é provocadora: “acaso não ouvis a lei?”. “Ouvir” revela a prática do contato com as Escrituras naquele momento, visto que praticamente não havia cópias privadas dos textos sagrados. O contato com eles se dava, via de regra, nas reuniões em que se faziam as leituras litúrgicas. Mas a ideia também é de que não basta ouvir, mas sim compreender, aplicar.
Ao responder sua própria pergunta (v. 22-30) Paulo entra no campo dos adversários. Afinal, os legalistas haviam ensinado e convencido os cristãos da Galácia a se submeterem à Lei. Agora o apóstolo adentra esse terreno para, nele, questionar o real entendimento da Lei pelos gálatas. E o faz utilizando a alegoria. Qual a função dela? Deixar de lado a argumentação que visa o convencimento, uma vez que traz consigo a ideia de que você vence o outro (visto que ele está em dúvidas sobre a validade desse método – v. 20). O objetivo agora é atrair o oponente por outro caminho. É tratá-lo como igual, como alguém que tem conhecimento. Segundo Betz, Paulo “leva os gálatas a encontrar a verdade por eles mesmos” (Hermeneia, Galatians, p. 240).
Para Paulo, neste momento “ouvir” a Lei significa compreender seu sentido alegórico.
Em sua exposição, Paulo cita livremente o AT. Afinal, ao dizer que Abraão teve dois filhos (v. 22) ele omite outros (cf. Gn 25.1-6). Mas estes não interessam para sua alegoria. Mais importante do que os filhos são suas mães: Hagar e Sara (que não é mencionada, mas subentendida). Elas apresentam a dualidade: liberdade x escravidão, que é um tema desenvolvido na carta (2.4; 3.26-28). As mulheres representam duas alianças, duas formas de Deus tratar com o ser humano.
Os v. 22 e 23 apresentam a seleção de temas do AT. A partir do v. 24 Paulo introduz a interpretação alegórica. O nascimento segundo “a carne”, de forma natural, e o nascimento segundo “a promessa”, de forma sobrenatural, tem um sentido para Paulo. Aí está a alegoria. É preciso compreender que ela não surge do nada. O texto permite essa abertura. É como se o próprio texto nos questionasse: o que isso que eu disse quer dizer? Aquele que vem do nascimento natural significa a vida que Israel experimentara e experimenta naquele momento, que segundo Paulo é de escravidão. Essa aliança provém da escrava Hagar e vincula-se ao monte Sinai, onde a Lei foi dada a Moisés. Isaque, por sua vez, é o filho da promessa, livre, anterior à Lei e, portanto, sem necessidade de submeter-se a ela.
A conclusão de que os gálatas são “filhos da promessa, como Isaque” (v. 28) não é nova. Ela já foi afirmada em 3.29 em função da relação com Cristo. A novidade é que esse fato implica na negação da filiação vinculada a Hagar e à escravidão trazida pela Lei.
O v. 29 traz outra aplicação da alegoria. Assim como no passado, quando o nascido sob a carne perseguida o nascido segundo promessa, agora isso se dá novamente. Os cristãos são perseguidos pelos judeus e pelos cristãos legalistas. O que fazer? Negar o filho da escrava e sua aliança (v. 30). As duas alianças são irreconciliáveis. Portanto, indiretamente Paulo está dizendo que os judaizantes não devem fazer parte da comunhão dos cristãos gálatas.
Segundo Betz, o v. 31 conclui o bloco de 3.1-4.31 sob o tema da liberdade, que será retomado a partir de 5.1.
Paulo se inclui na conclusão (“somos”). Ele também é filho da mulher/aliança livre. Por que faz isso? Certamente para buscar identificação e proximidade com os gálatas. Ao trabalhar os textos do AT de forma alegórica, desenvolvendo afirmações que os gálatas não apenas entenderiam, mas também concordariam, o apóstolo firma laços de identidade e comunhão.
terça-feira, 15 de janeiro de 2013
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