Terminada a grande seção da carta na qual Paulo procura argumentar a favor de suas posições teológicas, tem início novo bloco, agora com exortações práticas visando novas posturas dos gálatas.
O bloco vai de 5.1-6.10. E pode ser dividido em três unidades: 5.1-12, com advertências sobre a submissão à Lei (que será abordada nesta mensagem); 5.13-26, com advertências contra a carne; 6.1-10, com diversas exortações de caráter positivo. Da forma como proponho a divisão, fica claro que as duas primeiras unidades possuem caráter predominantemente negativo, enquanto que a última é orientada por uma perspectiva positiva.
Como Júlio em seu último post tratou do primeiro bloco, com a discussão a respeito da liberdade cristã, farei pequenos apontamentos ao texto.
O capítulo 5 inicia retomando o tema do anterior: a liberdade. Em 4.31 o apóstolo conclui sua argumentação afirmando que ele e os gálatas, e, por decorrência, todos os cristãos, são filhos da mulher livre, isto é, de Sara, filhos da aliança da graça. Agora ele desenvolve de modo concreto esse aspecto. Infelizmente, pelo contexto religioso em que os cristãos da Galácia viviam, Paulo precisa esclarecer inicialmente o preço a ser pago por eles.
O tema da Lei retorna. Tema e ponto de discórdia central na carta. Ponto de apoio dos judaizantes que estavam infiltrados entre os gálatas. E tema a ser esclarecido por Paulo, o que de fato foi feito em toda sua argumentação.
Agora, entretanto, não há mais argumentos. Pelo contrário, afirmações categóricas são feitas sem temor. Uma oposição central é construída: Lei x graça. O instrumento concreto da Lei junto aos gálatas é a circuncisão. E a prova concreta do apego à graça é a fé. São elementos e posturas irreconciliáveis. Ou vive-se uma ou outra. Nunca as duas ao mesmo tempo.
Indo do concreto para o abstrato, o fato dos gálatas ou alguns deles estarem ou terem se submetido à circuncisão significava, no plano teológico, que eles estavam ligados à Lei e, portanto, desligados ou fora do alcance da graça. Com isso, se tornavam escravos da Lei, uma vez que ela exige fidelidade total. É necessário cumpri-la toda.
Por outro lado, Paulo insta que eles vivam pela fé, evidência da relação com Cristo mediante a graça. E que a fé, necessariamente, há de redundar em ações concretas de amor (v. 6).
Paulo aproveita as exortações para fustigar os judaizantes (v. 7-8) e para enviar um recado: tais pessoas sofrerão a condenação (v. 10), sem maiores especificações, deixando entrever, pela linguagem velada, que possivelmente os gálatas e tais pessoas sabiam do que se tratava.
Uma questão que foge da argumentação de Paulo está no v. 11: “Eu, porém, irmãos, se ainda prego a circuncisão...”. Não é possível definir com clareza o que isto quer dizer. Hipoteticamente pode-se pensar que em algum momento os judaizantes usaram como argumento para enfraquecer Paulo o fato de que ele foi anteriormente um judeu legalista mais radical do que todos eles. Talvez se possa pensar também que os inimigos do apóstolo estavam divulgando falsas informações, dizendo que Paulo ainda era a favor da circuncisão.
Pensando contextualmente, parece-me que o mais importante neste texto é o chamado à coerência feita por Paulo. Ou se está de um lado ou do outro. Não é possível viver nos dois lados. Não se pode submeter-se à circuncisão e, ao mesmo tempo, afirmar viver sob a graça.
Como isso é difícil, principalmente em termos de vida cristã. Temos uma tendência à incoerência. Com a mesma prontidão com que afirmamos que um amigo ou irmão querido, diante de um erro, deve ser compreendido pelos demais, frente ao mesmo erro acusamos e julgamos outros com quem não temos afinidade.
Qual a extensão da graça em nossa vida? Em quais áreas ela está presente, se manifestando pela fé e amor? Qual a extensão da Lei em nós? Em que áreas ela se manifesta mediante circuncisões metafóricas?
terça-feira, 12 de fevereiro de 2013
terça-feira, 15 de janeiro de 2013
Alegoria – problema ou solução? – 4.21-31 – Parte II
Passo agora à análise do texto.
A perícope se organiza de forma clara. Começa com uma pergunta (v. 21) dirigida aos gálatas, como Paulo já fez anteriormente (3.1-5; 4.9, 15-16), identificada pelo pronome da segunda pessoa plural (vós). Em seguida o próprio apóstolo responde a pergunta (v. 22-30) utilizando a alegoria do texto bíblico. A conclusão (v. 31) vem na forma de afirmação na qual o próprio Paulo se inclui, indicada pelo pronome da primeira pessoa plural (nós, implícito).
Como o cerne da discussão na carta é a validade e interpretação da Lei, Paulo volta a ela a partir de uma pergunta. Ele não discute a interpretação da Lei, mas sua própria razão de ser e, com isso, sua relevância para a atualidade de seus leitores. Para isso, tem como ponto de partida o alto grau de reverência que os gálatas nutriam para com a Lei (“os que quereis estar sob a lei”). Sua pergunta é provocadora: “acaso não ouvis a lei?”. “Ouvir” revela a prática do contato com as Escrituras naquele momento, visto que praticamente não havia cópias privadas dos textos sagrados. O contato com eles se dava, via de regra, nas reuniões em que se faziam as leituras litúrgicas. Mas a ideia também é de que não basta ouvir, mas sim compreender, aplicar.
Ao responder sua própria pergunta (v. 22-30) Paulo entra no campo dos adversários. Afinal, os legalistas haviam ensinado e convencido os cristãos da Galácia a se submeterem à Lei. Agora o apóstolo adentra esse terreno para, nele, questionar o real entendimento da Lei pelos gálatas. E o faz utilizando a alegoria. Qual a função dela? Deixar de lado a argumentação que visa o convencimento, uma vez que traz consigo a ideia de que você vence o outro (visto que ele está em dúvidas sobre a validade desse método – v. 20). O objetivo agora é atrair o oponente por outro caminho. É tratá-lo como igual, como alguém que tem conhecimento. Segundo Betz, Paulo “leva os gálatas a encontrar a verdade por eles mesmos” (Hermeneia, Galatians, p. 240).
Para Paulo, neste momento “ouvir” a Lei significa compreender seu sentido alegórico.
Em sua exposição, Paulo cita livremente o AT. Afinal, ao dizer que Abraão teve dois filhos (v. 22) ele omite outros (cf. Gn 25.1-6). Mas estes não interessam para sua alegoria. Mais importante do que os filhos são suas mães: Hagar e Sara (que não é mencionada, mas subentendida). Elas apresentam a dualidade: liberdade x escravidão, que é um tema desenvolvido na carta (2.4; 3.26-28). As mulheres representam duas alianças, duas formas de Deus tratar com o ser humano.
Os v. 22 e 23 apresentam a seleção de temas do AT. A partir do v. 24 Paulo introduz a interpretação alegórica. O nascimento segundo “a carne”, de forma natural, e o nascimento segundo “a promessa”, de forma sobrenatural, tem um sentido para Paulo. Aí está a alegoria. É preciso compreender que ela não surge do nada. O texto permite essa abertura. É como se o próprio texto nos questionasse: o que isso que eu disse quer dizer? Aquele que vem do nascimento natural significa a vida que Israel experimentara e experimenta naquele momento, que segundo Paulo é de escravidão. Essa aliança provém da escrava Hagar e vincula-se ao monte Sinai, onde a Lei foi dada a Moisés. Isaque, por sua vez, é o filho da promessa, livre, anterior à Lei e, portanto, sem necessidade de submeter-se a ela.
A conclusão de que os gálatas são “filhos da promessa, como Isaque” (v. 28) não é nova. Ela já foi afirmada em 3.29 em função da relação com Cristo. A novidade é que esse fato implica na negação da filiação vinculada a Hagar e à escravidão trazida pela Lei.
O v. 29 traz outra aplicação da alegoria. Assim como no passado, quando o nascido sob a carne perseguida o nascido segundo promessa, agora isso se dá novamente. Os cristãos são perseguidos pelos judeus e pelos cristãos legalistas. O que fazer? Negar o filho da escrava e sua aliança (v. 30). As duas alianças são irreconciliáveis. Portanto, indiretamente Paulo está dizendo que os judaizantes não devem fazer parte da comunhão dos cristãos gálatas.
Segundo Betz, o v. 31 conclui o bloco de 3.1-4.31 sob o tema da liberdade, que será retomado a partir de 5.1.
Paulo se inclui na conclusão (“somos”). Ele também é filho da mulher/aliança livre. Por que faz isso? Certamente para buscar identificação e proximidade com os gálatas. Ao trabalhar os textos do AT de forma alegórica, desenvolvendo afirmações que os gálatas não apenas entenderiam, mas também concordariam, o apóstolo firma laços de identidade e comunhão.
A perícope se organiza de forma clara. Começa com uma pergunta (v. 21) dirigida aos gálatas, como Paulo já fez anteriormente (3.1-5; 4.9, 15-16), identificada pelo pronome da segunda pessoa plural (vós). Em seguida o próprio apóstolo responde a pergunta (v. 22-30) utilizando a alegoria do texto bíblico. A conclusão (v. 31) vem na forma de afirmação na qual o próprio Paulo se inclui, indicada pelo pronome da primeira pessoa plural (nós, implícito).
Como o cerne da discussão na carta é a validade e interpretação da Lei, Paulo volta a ela a partir de uma pergunta. Ele não discute a interpretação da Lei, mas sua própria razão de ser e, com isso, sua relevância para a atualidade de seus leitores. Para isso, tem como ponto de partida o alto grau de reverência que os gálatas nutriam para com a Lei (“os que quereis estar sob a lei”). Sua pergunta é provocadora: “acaso não ouvis a lei?”. “Ouvir” revela a prática do contato com as Escrituras naquele momento, visto que praticamente não havia cópias privadas dos textos sagrados. O contato com eles se dava, via de regra, nas reuniões em que se faziam as leituras litúrgicas. Mas a ideia também é de que não basta ouvir, mas sim compreender, aplicar.
Ao responder sua própria pergunta (v. 22-30) Paulo entra no campo dos adversários. Afinal, os legalistas haviam ensinado e convencido os cristãos da Galácia a se submeterem à Lei. Agora o apóstolo adentra esse terreno para, nele, questionar o real entendimento da Lei pelos gálatas. E o faz utilizando a alegoria. Qual a função dela? Deixar de lado a argumentação que visa o convencimento, uma vez que traz consigo a ideia de que você vence o outro (visto que ele está em dúvidas sobre a validade desse método – v. 20). O objetivo agora é atrair o oponente por outro caminho. É tratá-lo como igual, como alguém que tem conhecimento. Segundo Betz, Paulo “leva os gálatas a encontrar a verdade por eles mesmos” (Hermeneia, Galatians, p. 240).
Para Paulo, neste momento “ouvir” a Lei significa compreender seu sentido alegórico.
Em sua exposição, Paulo cita livremente o AT. Afinal, ao dizer que Abraão teve dois filhos (v. 22) ele omite outros (cf. Gn 25.1-6). Mas estes não interessam para sua alegoria. Mais importante do que os filhos são suas mães: Hagar e Sara (que não é mencionada, mas subentendida). Elas apresentam a dualidade: liberdade x escravidão, que é um tema desenvolvido na carta (2.4; 3.26-28). As mulheres representam duas alianças, duas formas de Deus tratar com o ser humano.
Os v. 22 e 23 apresentam a seleção de temas do AT. A partir do v. 24 Paulo introduz a interpretação alegórica. O nascimento segundo “a carne”, de forma natural, e o nascimento segundo “a promessa”, de forma sobrenatural, tem um sentido para Paulo. Aí está a alegoria. É preciso compreender que ela não surge do nada. O texto permite essa abertura. É como se o próprio texto nos questionasse: o que isso que eu disse quer dizer? Aquele que vem do nascimento natural significa a vida que Israel experimentara e experimenta naquele momento, que segundo Paulo é de escravidão. Essa aliança provém da escrava Hagar e vincula-se ao monte Sinai, onde a Lei foi dada a Moisés. Isaque, por sua vez, é o filho da promessa, livre, anterior à Lei e, portanto, sem necessidade de submeter-se a ela.
A conclusão de que os gálatas são “filhos da promessa, como Isaque” (v. 28) não é nova. Ela já foi afirmada em 3.29 em função da relação com Cristo. A novidade é que esse fato implica na negação da filiação vinculada a Hagar e à escravidão trazida pela Lei.
O v. 29 traz outra aplicação da alegoria. Assim como no passado, quando o nascido sob a carne perseguida o nascido segundo promessa, agora isso se dá novamente. Os cristãos são perseguidos pelos judeus e pelos cristãos legalistas. O que fazer? Negar o filho da escrava e sua aliança (v. 30). As duas alianças são irreconciliáveis. Portanto, indiretamente Paulo está dizendo que os judaizantes não devem fazer parte da comunhão dos cristãos gálatas.
Segundo Betz, o v. 31 conclui o bloco de 3.1-4.31 sob o tema da liberdade, que será retomado a partir de 5.1.
Paulo se inclui na conclusão (“somos”). Ele também é filho da mulher/aliança livre. Por que faz isso? Certamente para buscar identificação e proximidade com os gálatas. Ao trabalhar os textos do AT de forma alegórica, desenvolvendo afirmações que os gálatas não apenas entenderiam, mas também concordariam, o apóstolo firma laços de identidade e comunhão.
sábado, 5 de janeiro de 2013
Alegoria – problema ou solução? – 4.21-31 – Parte I
A alegoria, definitivamente, é um sério problema hermenêutico. E isso desde os inícios da história da interpretação cristã. Afinal, um método que parece desprovido de método ou fundamentos tem tudo para ser um problema. Pelo menos para a hermenêutica historicista.
Paulo conclui a seção anterior (4.20) afirmando estar “perplexo a vosso respeito”, expressão que contém elevado grau de desânimo. Parece que ele tem grandes dúvidas a respeito de seu poder de convencimento. Mesmo o argumento relacional desenvolvido em 4.12-20 parece não surtir efeito. O que fazer? Utilizar a alegoria bíblica. Para Paulo, pelo menos, ela é o último e mais importante argumento a ser usado. Se lembrarmos que ele está concluindo a Probatio, o momento na carta em que procura provar sua posição com a utilização de diversos argumentos, é surpreendente, pelo menos para nós, intérpretes cristãos, que ele tenha reservado a alegoria para o final.
Obviamente não há espaço para discussões aprofundadas sobre a alegoria neste post, mas há uma questão de base que podemos abordar.
A hermenêutica/exegese historicista tem como pressuposto a premissa de que os textos bíblicos devem testemunhar a realidade dos eventos que descrevem. Desse ponto de vista, textos narrativos remetem o leitor aos fatos históricos que são seu fundamento. E textos argumentativos remetem o leitor ao contexto histórico produtor da relação entre remetente e destinatário. Portanto, os textos estão sempre e indissoluvelmente ligados aos fatos dos quais dão testemunho.
Diante dessa postura teórica toda proposta que veja o texto transcender ao papel de testemunha é vista negativamente. O texto deve ser um servo da história. Se não for, ele torna-se perigoso, pois se abre para sentidos não controláveis, diriam os hermeneutas historicistas. Por isso a interpretação alegórica tão presente nos primeiros séculos do cristianismo foi negada, principalmente a partir da Reforma Protestante e por círculos fundamentalistas contemporâneos.
Essa preocupação com a libertação de sentido dos textos bíblicos é saudável? Talvez, mas o problema é a concepção de texto inadequada ou pelo menos limitadora que tal perspectiva contém. Afinal, todo texto transcende. Não há texto que se encerre em si mesmo. Todo texto é um ponto de partida. E mesmo os historicistas devem concordar com essa afirmação. Afinal, para eles, os textos bíblicos são um ponto de partida para a reconstrução histórica. Isso significa que, para os hermeneutas historicistas, o texto também transcende. O problema é que é uma abertura limitada e fechada. O texto sai de si para logo em seguida tornar-se vassalo de reconstruções, hipotéticas, diga-se de passagem, de fatos históricos.
Todo texto, do ponto de vista pragmático, está inacabado. Obviamente ele traz propostas de sentidos ligadas ao seu autor. Mas a compreensão, que envolve mais do que o sentido primeiro, está aberta à espera do leitor. Esse é um aspecto mais do que normal em textos literários. Todo leitor, durante e após a leitura, reflete sobre o(s) sentido(s). O grau de aproximação daquilo que o autor pretendia depende de inúmeros fatores. É claro que o leitor pode chegar a conclusões totalmente díspares daquilo que o texto apresenta. Mas, de modo geral, toda leitura apresenta uma relação entre texto e os aspectos constituintes do mundo do leitor que exercem influência em sua compreensão.
Portanto, ao lermos uma obra, somos lançados por ela a vários níveis de reflexão. Em outras palavras, o texto transcende a si mesmo. E é bom que seja assim. O texto bíblico não foge a esse processo. Ao lermos a Bíblia, também somos lançados à frente, e não para trás, em busca de reflexões que façam sentido para nós.
Digo tudo isso para que entendamos que a alegoria praticada largamente nos inícios do cristianismo, e em Gálatas por Paulo, faz parte desse processo de relacionamento de leitores com textos. Com a alegoria, o intérprete pergunta-se sobre a ampliação e aprofundamento do sentido de diversos textos. O texto está ligado apenas ao passado? Diz respeito apenas a narrativas de fatos ocorridos com este ou aquele homem ou mulher bíblico? Não. As narrativas são pontes para ligar sentidos e vivências.
Concluso lembrando que a alegoria não nega o aspecto histórico do texto bíblico. Não estamos diante de uma opção: ou o sentido histórico ou o sentido alegórico. Essa aporia não é verdadeira. Volto a dizer, a alegoria transcende o sentido histórico, mas não o nega.
Acabei deixando de comentar o texto bíblico. Faço isso na próxima mensagem.
Paulo conclui a seção anterior (4.20) afirmando estar “perplexo a vosso respeito”, expressão que contém elevado grau de desânimo. Parece que ele tem grandes dúvidas a respeito de seu poder de convencimento. Mesmo o argumento relacional desenvolvido em 4.12-20 parece não surtir efeito. O que fazer? Utilizar a alegoria bíblica. Para Paulo, pelo menos, ela é o último e mais importante argumento a ser usado. Se lembrarmos que ele está concluindo a Probatio, o momento na carta em que procura provar sua posição com a utilização de diversos argumentos, é surpreendente, pelo menos para nós, intérpretes cristãos, que ele tenha reservado a alegoria para o final.
Obviamente não há espaço para discussões aprofundadas sobre a alegoria neste post, mas há uma questão de base que podemos abordar.
A hermenêutica/exegese historicista tem como pressuposto a premissa de que os textos bíblicos devem testemunhar a realidade dos eventos que descrevem. Desse ponto de vista, textos narrativos remetem o leitor aos fatos históricos que são seu fundamento. E textos argumentativos remetem o leitor ao contexto histórico produtor da relação entre remetente e destinatário. Portanto, os textos estão sempre e indissoluvelmente ligados aos fatos dos quais dão testemunho.
Diante dessa postura teórica toda proposta que veja o texto transcender ao papel de testemunha é vista negativamente. O texto deve ser um servo da história. Se não for, ele torna-se perigoso, pois se abre para sentidos não controláveis, diriam os hermeneutas historicistas. Por isso a interpretação alegórica tão presente nos primeiros séculos do cristianismo foi negada, principalmente a partir da Reforma Protestante e por círculos fundamentalistas contemporâneos.
Essa preocupação com a libertação de sentido dos textos bíblicos é saudável? Talvez, mas o problema é a concepção de texto inadequada ou pelo menos limitadora que tal perspectiva contém. Afinal, todo texto transcende. Não há texto que se encerre em si mesmo. Todo texto é um ponto de partida. E mesmo os historicistas devem concordar com essa afirmação. Afinal, para eles, os textos bíblicos são um ponto de partida para a reconstrução histórica. Isso significa que, para os hermeneutas historicistas, o texto também transcende. O problema é que é uma abertura limitada e fechada. O texto sai de si para logo em seguida tornar-se vassalo de reconstruções, hipotéticas, diga-se de passagem, de fatos históricos.
Todo texto, do ponto de vista pragmático, está inacabado. Obviamente ele traz propostas de sentidos ligadas ao seu autor. Mas a compreensão, que envolve mais do que o sentido primeiro, está aberta à espera do leitor. Esse é um aspecto mais do que normal em textos literários. Todo leitor, durante e após a leitura, reflete sobre o(s) sentido(s). O grau de aproximação daquilo que o autor pretendia depende de inúmeros fatores. É claro que o leitor pode chegar a conclusões totalmente díspares daquilo que o texto apresenta. Mas, de modo geral, toda leitura apresenta uma relação entre texto e os aspectos constituintes do mundo do leitor que exercem influência em sua compreensão.
Portanto, ao lermos uma obra, somos lançados por ela a vários níveis de reflexão. Em outras palavras, o texto transcende a si mesmo. E é bom que seja assim. O texto bíblico não foge a esse processo. Ao lermos a Bíblia, também somos lançados à frente, e não para trás, em busca de reflexões que façam sentido para nós.
Digo tudo isso para que entendamos que a alegoria praticada largamente nos inícios do cristianismo, e em Gálatas por Paulo, faz parte desse processo de relacionamento de leitores com textos. Com a alegoria, o intérprete pergunta-se sobre a ampliação e aprofundamento do sentido de diversos textos. O texto está ligado apenas ao passado? Diz respeito apenas a narrativas de fatos ocorridos com este ou aquele homem ou mulher bíblico? Não. As narrativas são pontes para ligar sentidos e vivências.
Concluso lembrando que a alegoria não nega o aspecto histórico do texto bíblico. Não estamos diante de uma opção: ou o sentido histórico ou o sentido alegórico. Essa aporia não é verdadeira. Volto a dizer, a alegoria transcende o sentido histórico, mas não o nega.
Acabei deixando de comentar o texto bíblico. Faço isso na próxima mensagem.
quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
Para a liberdade ...
Dois versos em Gálatas 5 mencionam a liberdade: 1 e 13.
I. Antes de discutir brevemente ambos, vejamos duas traduções bastante usadas nas igrejas protestantes:
ARA (Almeida, Revista e Atualizada, SBB): Para a liberdade Cristo nos libertou; permanecei, pois, firmes e não vos dobreis novamente a um jogo de escravidão. (v. 1)
Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Mas não useis da liberdade para dar ocasião à carne, antes pelo amor servi-vos uns aos outros. (v. 13)
ACF (Almeida Corrigida, Fiel): Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão. (v. 1)
Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não useis então da liberdade para dar ocasião à carne, mas servi-vos uns aos outros pelo amor. (v. 13)
A. Não há diferença semântica no tocante ao v. 13, apenas escolha diferente de palavras e ordem sintática.
B. Quanto ao verso 1, há uma diferença fundamental: ARA traduz "para a liberdade Cristo nos libertou"; AFC "na liberdade com que Cristo nos libertou". A preposição grega está no caso dativo, e pode, de fato, ser interpretada como instrumental ou final; assim, só a gramática de casos não resolve a questão. O co-texto imediato também não ajuda a decidir a questão,permite ambas as possibilidades. O verso 13, porém, é esclarecedor - e tanto ARA quanto AFC erram a tradução: "Ὑμεῖς γὰρ ἐπ᾽ ἐλευθερίᾳ ἐκλήθητε" - a preposição grega é epi - que Paulo constantemente usa com o sentido de "com base em" ou "na base de". Assim, ao invés de "fostes chamados à liberdade", a tradução mais adequada seria "fostes chamados com base na liberdade (libertação messiânica)". Se isso procede, então no v. 1 a melhor opção será "para a liberdade" (ARA).
C. Como é costume das traduções cristãs do NT, ao invés de Messias temos a palavra Cristo. Isto distorce o sentido paulino, pois remete logo à nossa doutrina cristológica pós-Nicéia/Calcedônia, e nos afasta do messianismo paulino.
D. ARA e AFC suprem o verbo ausente do texto grego na segunda parte do v. 13; "não useis", considero que seria mais adequado traduzir assim: "não seja essa liberdade, porém, ocasião/plataforma para a carne" (e aqui Paulo segue na mesma linha de Rm 7,8.11, só que em Rm é o "pecado" que pode servir de ocasião/plataforma para, mediante a Torá, nos escravizar. O vínculo entre carne/pecado/Torá fica mostrado em Gl 5,13-14: "sede escravos (e não "servi-vos", muito simples) uns dos outros pelo amor, pois a plenitude da Torá se encontra em um único mandamento - ama o próximo como a ti mesmo". O jogo semântico aqui é o mesmo de Romanos 6-7: a libertação messiânica nos coloca no reino da liberdade, cuja natureza é escravidão em amor: a Deus e ao próximo. Ressalta, em Gálatas, que Deus não aparece na equação ...
II. Notas para pensar em I acima. Mais notas para reflexão: Kant, de modo brilhante, simplificou o jogo da liberdade em O que é o Iluminismo: autonomia versus heteronomia. Leitores simplistas, reduziram a liberdade à auto-satisfação, perdendo de vista o sentido kantiano da autonomia ("Eu" sou a fonte da Lei que me governa). Em Paulo, o jogo é parecido: o Messias liberta a humanidade da heteronomia - do pecado (seria tentador ver aqui a pulsão freudiana para a morte), da carne (o id freudiano), da Torá (o superego freudiano). Mas a nova liberdade no Messias é autonomia intersubjetiva: eu mesmo sou a fonte da minha própria ética e moralidade: ser escravo do próximo no amor.
E, aqui, podemos brincar com Hegel, que fala do amor como lei da liberdade, escravidão na liberdade ...
Somente notas para pensar ... Com base no ato libertador do Messias fomos libertados da heteronomia e chamados para viver na autonomia messiânica: ser escravo do próximo no amor.
quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
Depois de longa e tenebrosa ausência...
Pois é, caros amigos deste blog, depois de um longo, longo tempo sem postagens, estamos retornando às atividades. Pretendemos terminar a análise de Gálatas e depois iniciar uma abordagem nova. Logo daremos detalhes.
Agradeço a atenção carinhosa que sempre tiveram comigo, Paulo e Júlio.
Vamos em frente!
domingo, 6 de novembro de 2011
Questionamentos e amizade – Gl 4.1-20
Neste grande bloco, Paulo apresenta inicialmente um detalhamento, em caráter explicativo (4.1-7), sobre o que falara anteriormente (3.23-29). Em seguida, se utilizando de uma pergunta como fizera em 3.1-5, questiona novamente seus leitores (4.8-11). Por fim, o apóstolo faz uso do argumento da amizade para tentar fazer-se ouvir (4.12-20).
Em 4.1-7 temos uma espécie de nota explicativa a respeito dos versículos anteriores. Por que ela é necessária? Se anteriormente ele afirmou que, antes que viesse a fé, estavam todos sujeitos à lei, agora ele complementa o raciocínio, utilizando proposições jurídicas para dizer que o herdeiro, quando menor, não goza de seus direitos, sendo na prática igual a um escravo (4.1). Do mesmo modo, ele e os gálatas também estavam sujeitos aos rudimentos do mundo (4.3). Tal situação mudou com a vinda de Jesus Cristo, que permitiu que aqueles que permaneciam sob a lei fossem adotados como filhos por Deus (4.4-6). A situação presente, portanto, não é de escravidão, mas de filiação (4.7).
Em seguida (4.8-11) Paulo torna-se mais direto e agudo. Ele foca o passado dos gálatas. A vida sem Deus era caracterizada pela servidão aos rudimentos do mundo (4.8-9). É interessante observar que Paulo se abstém de criticar o politeísmo dos ouvintes. Seu argumento não foca esse aspecto. Para ele, a idolatria coloca o se humano sob a tirania de “rudimentos fracos e pobres” (4.9). Portanto, se os judeus estiveram sob a escravidão da Lei antes da manifestação de Jesus Cristo, os gálatas também se encontravam escravizados. O problema, para Paulo, é que seus leitores querem submeter-se novamente à escravidão que, por questões étnicas e religiosas, para não dizer teológicas, não dizia respeito a eles. Paulo está muito preocupado com a situação, a ponto de temer ter perdido seu trabalho (4.11).
É essa preocupação que o leva a 4.12-20. Para alguns comentaristas a utilização dos laços de amizade como argumento indica um destempero emocional do apóstolo. Mas parece não ser isso que ocorre. A linguagem é escolhida de modo cuidado para o fim pretendido. Paulo é bastante enfático. Termos e expressões como “vos suplico” (4.12), “enfermidade física” (4.13), “me recebestes como anjo de Deus” (4.14), “teríeis arrancado os próprios olhos para mos dar” (4.15),”tornei-me, porventura, vosso inimigo por vos dizer a verdade?” (4.16), “meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto” (4.19), dão o tom emocional que percorre todo o texto. O que Paulo pretende?
Inicialmente, resgatar a empatia dos gálatas. Para Paulo, ele e seus leitores são iguais (4.12). O estremecimento da relação fica patente quando o apóstolo afirma não estar ofendido (4.12). O restante da perícope é desenvolvido na tentativa de resgatar o relacionamento que parece estar quase perdido. Os termos alistados no parágrafo anterior dão testemunha disso. Tanto o esforço de Paulo para pregar o evangelho na região quanto o acolhimento amoroso que experimentou testemunham o início positivo das relações. No entanto, parece que o apóstolo tornou-se inimigo deles (4.16). Isso estaria acontecendo por influência de pessoas que desejavam afastar Paulo dos gálatas (4.17). Como Paulo combate tal influência? Chamando para si o privilégio de ter sido a mãe daqueles cristãos e de estar, por amor a eles, sofrendo novamente dores de parto (4.19). O final não é nada animador. Paulo não tem certezas a respeito deles. Pelo contrário, encontra-se “perplexo” (4.20).
Finalizo com uma reflexão. No contexto das disputas entre Paulo e os judaizantes que têm influenciado os gálatas a rejeitarem seu antigo mentor e seu ensino, este texto diz muito. É um momento em que Paulo, de certa forma abandonando questões teológicas, apela para aquilo que há de mais profundo e verdadeiro: o relacionamento. Nisto não há máscaras, desculpas, subterfúgios. É um momento muito intenso, mas que somente é possível em função da história que Paulo construiu juntamente com seus leitores.
Pergunto-me quantos líderes e pastores da atualidade teriam condições de se colocarem no lugar do apóstolo. Temo que a maioria se deixaria guiar por duas opções. A primeira, diante dos problemas, simplesmente abandonaria o campo e migraria para outra igreja onde pudesse ser compreendido e seu ministério tivesse condições de progredir. Afinal, por que deveria continuar “dando murro em ponta de faca?” Essa é uma visão empresarial cada dia mais presente nas comunidades evangélicas, bem distante da visão que o apóstolo Paulo tinha de ministério: “Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a Igreja” (Cl 2.24).
A outra possibilidade seria exatamente contrária à primeira. O pastor assumiria o papel de mártir, daquele que, embora certo, sofre, frente a uma igreja, segundo ele, errada, corrompida, adúltera, que precisa ser corrigida, disciplinada e “aprender quem, de fato, manda”. É o ministério “punho de ferro”. Tal postura, na maior parte das vezes, gera divisões nas igrejas, produz exílios, expulsões, mágoas e escândalos. E, pior, parte de um pressuposto equivocado, aquele que afirma que o pastor, por ser o “ungido de Deus”, sempre está certo, e que o povo é simplesmente uma massa de manobra.
Ao ler Paulo, vejo como esses dois modelos são caricaturas, são expressões quase demoníacas de filosofias de liderança equivocadas.
Em 4.1-7 temos uma espécie de nota explicativa a respeito dos versículos anteriores. Por que ela é necessária? Se anteriormente ele afirmou que, antes que viesse a fé, estavam todos sujeitos à lei, agora ele complementa o raciocínio, utilizando proposições jurídicas para dizer que o herdeiro, quando menor, não goza de seus direitos, sendo na prática igual a um escravo (4.1). Do mesmo modo, ele e os gálatas também estavam sujeitos aos rudimentos do mundo (4.3). Tal situação mudou com a vinda de Jesus Cristo, que permitiu que aqueles que permaneciam sob a lei fossem adotados como filhos por Deus (4.4-6). A situação presente, portanto, não é de escravidão, mas de filiação (4.7).
Em seguida (4.8-11) Paulo torna-se mais direto e agudo. Ele foca o passado dos gálatas. A vida sem Deus era caracterizada pela servidão aos rudimentos do mundo (4.8-9). É interessante observar que Paulo se abstém de criticar o politeísmo dos ouvintes. Seu argumento não foca esse aspecto. Para ele, a idolatria coloca o se humano sob a tirania de “rudimentos fracos e pobres” (4.9). Portanto, se os judeus estiveram sob a escravidão da Lei antes da manifestação de Jesus Cristo, os gálatas também se encontravam escravizados. O problema, para Paulo, é que seus leitores querem submeter-se novamente à escravidão que, por questões étnicas e religiosas, para não dizer teológicas, não dizia respeito a eles. Paulo está muito preocupado com a situação, a ponto de temer ter perdido seu trabalho (4.11).
É essa preocupação que o leva a 4.12-20. Para alguns comentaristas a utilização dos laços de amizade como argumento indica um destempero emocional do apóstolo. Mas parece não ser isso que ocorre. A linguagem é escolhida de modo cuidado para o fim pretendido. Paulo é bastante enfático. Termos e expressões como “vos suplico” (4.12), “enfermidade física” (4.13), “me recebestes como anjo de Deus” (4.14), “teríeis arrancado os próprios olhos para mos dar” (4.15),”tornei-me, porventura, vosso inimigo por vos dizer a verdade?” (4.16), “meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto” (4.19), dão o tom emocional que percorre todo o texto. O que Paulo pretende?
Inicialmente, resgatar a empatia dos gálatas. Para Paulo, ele e seus leitores são iguais (4.12). O estremecimento da relação fica patente quando o apóstolo afirma não estar ofendido (4.12). O restante da perícope é desenvolvido na tentativa de resgatar o relacionamento que parece estar quase perdido. Os termos alistados no parágrafo anterior dão testemunha disso. Tanto o esforço de Paulo para pregar o evangelho na região quanto o acolhimento amoroso que experimentou testemunham o início positivo das relações. No entanto, parece que o apóstolo tornou-se inimigo deles (4.16). Isso estaria acontecendo por influência de pessoas que desejavam afastar Paulo dos gálatas (4.17). Como Paulo combate tal influência? Chamando para si o privilégio de ter sido a mãe daqueles cristãos e de estar, por amor a eles, sofrendo novamente dores de parto (4.19). O final não é nada animador. Paulo não tem certezas a respeito deles. Pelo contrário, encontra-se “perplexo” (4.20).
Finalizo com uma reflexão. No contexto das disputas entre Paulo e os judaizantes que têm influenciado os gálatas a rejeitarem seu antigo mentor e seu ensino, este texto diz muito. É um momento em que Paulo, de certa forma abandonando questões teológicas, apela para aquilo que há de mais profundo e verdadeiro: o relacionamento. Nisto não há máscaras, desculpas, subterfúgios. É um momento muito intenso, mas que somente é possível em função da história que Paulo construiu juntamente com seus leitores.
Pergunto-me quantos líderes e pastores da atualidade teriam condições de se colocarem no lugar do apóstolo. Temo que a maioria se deixaria guiar por duas opções. A primeira, diante dos problemas, simplesmente abandonaria o campo e migraria para outra igreja onde pudesse ser compreendido e seu ministério tivesse condições de progredir. Afinal, por que deveria continuar “dando murro em ponta de faca?” Essa é uma visão empresarial cada dia mais presente nas comunidades evangélicas, bem distante da visão que o apóstolo Paulo tinha de ministério: “Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a Igreja” (Cl 2.24).
A outra possibilidade seria exatamente contrária à primeira. O pastor assumiria o papel de mártir, daquele que, embora certo, sofre, frente a uma igreja, segundo ele, errada, corrompida, adúltera, que precisa ser corrigida, disciplinada e “aprender quem, de fato, manda”. É o ministério “punho de ferro”. Tal postura, na maior parte das vezes, gera divisões nas igrejas, produz exílios, expulsões, mágoas e escândalos. E, pior, parte de um pressuposto equivocado, aquele que afirma que o pastor, por ser o “ungido de Deus”, sempre está certo, e que o povo é simplesmente uma massa de manobra.
Ao ler Paulo, vejo como esses dois modelos são caricaturas, são expressões quase demoníacas de filosofias de liderança equivocadas.
domingo, 9 de outubro de 2011
Promessa, lei, fé – 3.15-29
No último post comentei o argumento escriturístico pelo qual Paulo afirma a atualidade da bênção de Abraão a todos os cristãos, mediante o Espírito Santo, ao mesmo tempo em que declara a impossibilidade da Lei trazer tal bênção.
No texto que analisamos agora ele apresenta maiores detalhes, buscando dirimir qualquer dúvida que ainda possa existir. Há também uma preocupação em não negar o papel histórico da lei. Tal tema é sensível, uma vez que a Lei era central para os judaizantes opositores de Paulo na região da Galácia.
O texto pode ser dividido em três segmentos. No primeiro (3.15-18), Paulo faz uso da lógica humana (“falo como homem”, v. 15) para desenvolver sua argumentação. No segundo (3.19-25), ele abre um parêntese para esclarecer o papel da lei. Por fim, faz uma aplicação da discussão à vida dos cristãos gentios (3.26-29).
O uso da lógica na primeira parte está relacionado com o campo das leis. Provavelmente a escolha se dá por ser uma terminologia conhecida entre os membros do império romano e que se torna uma base com boa dose de segurança para o desenvolvimento da argumentação. O arrazoado começa de forma um tanto tranquila para ser intensificado no bloco seguinte.
Paulo se utiliza da terminologia referente a testamentos. Embora o termo grego usado no v. 15 seja diatheke (aliança), normalmente traduzido como “aliança”, como faz Almeida Atualizada, a palavra também significa “testamento”. Nesse sentido ela foi usada várias vezes por Josefo em seus escritos (cf. Longenecker, Richard N. Galatians, Word Biblical Commentary, v. 41, Gl. 3.15, CD).
Há entre os comentaristas uma discussão a respeito da afirmação de que “[...] uma aliança/testamento [...] uma vez ratificada, ninguém a revoga ou acrescenta algo” (v. 15). A questão é que a legislação romana permitia a alteração dos conteúdos de um testamento, desde que fosse da vontade de seu proponente. Diante disso, parece que Paulo fundamenta sua lógica na ideia de que, caso não seja da vontade do testador, ninguém pode alterar o testamento.
A lógica inicial é que as partes contratantes eram Deus, Abraão e Jesus Cristo, “o” descendente (v. 16). A interpretação paulina de Gn 12.2-3, 7; 13.15-16ss soa estranha, uma vez que o termo singular “descendência” que ocorre em Gênesis, do qual Paulo deriva “descendente”, claramente diz respeito à coletividade, ou seja, a muitos. Mas Paulo aproveita-se da gramática para gerar um sentido espiritual que identifica o descendente com Jesus Cristo. Isso é fundamental para ele. Afinal, somente as partes envolvidas no testamento – Deus, Abraão e Jesus Cristo – poderiam revogá-lo, o que obviamente não ocorre.
A consequência disso, destacada pelo apóstolo é que, a Lei, por mais importante que fosse, não poderia alterar o testamento. Até mesmo por que veio quatrocentos e trinta anos depois da promessa a Abraão (v. 17).
Paulo finaliza sua argumentação com a conclusão: a herança não provém da Lei, mas da promessa (v. 18). De que herança ele fala? Provavelmente de todo o legado que o exemplo da fé de Abraão deixou para as gerações futuras. Esse é o seu testamento. E a origem da herança é a promessa feita por Deus a ele. A Lei não conseguiu fazer isso, lembra o apóstolo. Ele repete, em outros termos, o que já disse em 3.14, e a ênfase visa os judaizantes, segundo os quais a herança abraâmica era, principalmente, a circuncisão, sinal da aliança e, portanto, necessária a todos quantos creem.
Bem, uma vez que ele novamente fala de modo tão negativo sobre a Lei, sente-se na obrigação de fazer um esclarecimento a esse respeito. Este é o segundo bloco do texto (3.19-25). Parece que seria lógico perguntar: “Qual, pois, a razão de ser da lei?” Visto que ela era tida pelo judaísmo como o fundamento sobre o qual eles construíam sua relação com Deus, como povo da aliança. As palavras de Paulo eram chocantes para qualquer judeu piedoso, e também para os cristãos judaizantes. Ele julga necessário fazer alguns esclarecimentos.
O primeiro é que a Lei foi “adicionada”, acrescentada. Novamente um choque. Não era dessa forma que ela era concebida. Mas para Paulo ela surgiu de uma necessidade. Ela foi adicionada por causa das “transgressões” do povo. A ideia é que, apesar da promessa e da herança, os israelitas se envolveram em práticas contrárias ao que Deus desejava. Isso tornou necessária uma atualização, um complemento à herança que a viabilizasse. Mas quando viesse o descendente, a quem a promessa foi feita, esse acréscimo não faria mais sentido e deveria ser retirado.
Por isso mesmo Paulo pode responder a pergunta que talvez ainda subsistisse: “É, porventura, a lei contrária às promessas de Deus? De modo nenhum!” (v. 21). Claro! Se ela surgiu como complemento, como viabilização da herança em outro momento, ela está ao lado, ela ajuda a promessa, não sendo nunca sua opositora.
Ele lembra, como fará na carta aos romanos, que a Lei explicitou e tornou evidentes os pecados. De modo generalizante, o apóstolo afirma que a “Escritura”, ou seja, o Antigo Testamento, encerrou tudo sob o pecado para que a promessa se tornasse válida mediante a fé em Jesus (v. 22).
Mas, historicamente, antes da manifestação da fé, a Lei foi uma espécie de tutor (v. 23). Ela serviu de “aio” (paidagogos, em grego). Talvez a melhor tradução a partir do termo grego seja professor, instrutor. A Lei exerceu a função de cuidar dos fieis e conduzi-los a Cristo. Esta é uma imagem muito bela e positiva para a Lei. Mas, uma vez vindo Jesus e a fé, a o instrutor não é mais necessário (v. 25).
No v. 26 tem início a conclusão do bloco. Se a Lei é um professor, um instrutor, somente Jesus nos torna filhos de Deus (v. 26). Obviamente esta é uma categorização que não seria bem recebida pelos judeus e judaizantes, que usavam uma série de classificações para determinar quem era espiritual e fiel a Deus.
Digno de nota é a mudança do pronome. Se nos versículos anteriores Paulo utilizou a primeira pessoa do plural – “nós” (v. 23-25), portanto, incluindo-se naquilo sobre o que escrevia, agora ele altera para a segunda pessoa do plural – “vós”. Portanto, se exclui de sua argumentação, aplicando aquilo que fala diretamente aos gálatas. Isso significa que não se aplica a ele o que é dito? Não seria ele filho de Deus? Não teria sido batizado em Cristo? Claro que sim! Mas a estratégia de se colocar de lado, para dar destaque aos leitores, busca tornar mais clara a aplicação a eles.
Ele quer deixar claro que os gálatas não estão mais sob os cuidados de um tutor, visto terem, pela fé, adquirido a maioridade espiritual. Eles se relacionam com Deus como filhos (v. 26). Sinal inconfundível disso foi terem sido batizados em Cristo (v. 27). A decorrência é que não existem mais categorizações e diferenças entre pessoas (v. 28), elemento central para a religião judaica, e um dos critérios pelos quais os cristãos judaizantes estavam tentando convencer os gálatas a respeito da necessidade da Lei. Agora, em Cristo, e somente por intermédio dele, eles se tornam descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa (v. 29).
No texto que analisamos agora ele apresenta maiores detalhes, buscando dirimir qualquer dúvida que ainda possa existir. Há também uma preocupação em não negar o papel histórico da lei. Tal tema é sensível, uma vez que a Lei era central para os judaizantes opositores de Paulo na região da Galácia.
O texto pode ser dividido em três segmentos. No primeiro (3.15-18), Paulo faz uso da lógica humana (“falo como homem”, v. 15) para desenvolver sua argumentação. No segundo (3.19-25), ele abre um parêntese para esclarecer o papel da lei. Por fim, faz uma aplicação da discussão à vida dos cristãos gentios (3.26-29).
O uso da lógica na primeira parte está relacionado com o campo das leis. Provavelmente a escolha se dá por ser uma terminologia conhecida entre os membros do império romano e que se torna uma base com boa dose de segurança para o desenvolvimento da argumentação. O arrazoado começa de forma um tanto tranquila para ser intensificado no bloco seguinte.
Paulo se utiliza da terminologia referente a testamentos. Embora o termo grego usado no v. 15 seja diatheke (aliança), normalmente traduzido como “aliança”, como faz Almeida Atualizada, a palavra também significa “testamento”. Nesse sentido ela foi usada várias vezes por Josefo em seus escritos (cf. Longenecker, Richard N. Galatians, Word Biblical Commentary, v. 41, Gl. 3.15, CD).
Há entre os comentaristas uma discussão a respeito da afirmação de que “[...] uma aliança/testamento [...] uma vez ratificada, ninguém a revoga ou acrescenta algo” (v. 15). A questão é que a legislação romana permitia a alteração dos conteúdos de um testamento, desde que fosse da vontade de seu proponente. Diante disso, parece que Paulo fundamenta sua lógica na ideia de que, caso não seja da vontade do testador, ninguém pode alterar o testamento.
A lógica inicial é que as partes contratantes eram Deus, Abraão e Jesus Cristo, “o” descendente (v. 16). A interpretação paulina de Gn 12.2-3, 7; 13.15-16ss soa estranha, uma vez que o termo singular “descendência” que ocorre em Gênesis, do qual Paulo deriva “descendente”, claramente diz respeito à coletividade, ou seja, a muitos. Mas Paulo aproveita-se da gramática para gerar um sentido espiritual que identifica o descendente com Jesus Cristo. Isso é fundamental para ele. Afinal, somente as partes envolvidas no testamento – Deus, Abraão e Jesus Cristo – poderiam revogá-lo, o que obviamente não ocorre.
A consequência disso, destacada pelo apóstolo é que, a Lei, por mais importante que fosse, não poderia alterar o testamento. Até mesmo por que veio quatrocentos e trinta anos depois da promessa a Abraão (v. 17).
Paulo finaliza sua argumentação com a conclusão: a herança não provém da Lei, mas da promessa (v. 18). De que herança ele fala? Provavelmente de todo o legado que o exemplo da fé de Abraão deixou para as gerações futuras. Esse é o seu testamento. E a origem da herança é a promessa feita por Deus a ele. A Lei não conseguiu fazer isso, lembra o apóstolo. Ele repete, em outros termos, o que já disse em 3.14, e a ênfase visa os judaizantes, segundo os quais a herança abraâmica era, principalmente, a circuncisão, sinal da aliança e, portanto, necessária a todos quantos creem.
Bem, uma vez que ele novamente fala de modo tão negativo sobre a Lei, sente-se na obrigação de fazer um esclarecimento a esse respeito. Este é o segundo bloco do texto (3.19-25). Parece que seria lógico perguntar: “Qual, pois, a razão de ser da lei?” Visto que ela era tida pelo judaísmo como o fundamento sobre o qual eles construíam sua relação com Deus, como povo da aliança. As palavras de Paulo eram chocantes para qualquer judeu piedoso, e também para os cristãos judaizantes. Ele julga necessário fazer alguns esclarecimentos.
O primeiro é que a Lei foi “adicionada”, acrescentada. Novamente um choque. Não era dessa forma que ela era concebida. Mas para Paulo ela surgiu de uma necessidade. Ela foi adicionada por causa das “transgressões” do povo. A ideia é que, apesar da promessa e da herança, os israelitas se envolveram em práticas contrárias ao que Deus desejava. Isso tornou necessária uma atualização, um complemento à herança que a viabilizasse. Mas quando viesse o descendente, a quem a promessa foi feita, esse acréscimo não faria mais sentido e deveria ser retirado.
Por isso mesmo Paulo pode responder a pergunta que talvez ainda subsistisse: “É, porventura, a lei contrária às promessas de Deus? De modo nenhum!” (v. 21). Claro! Se ela surgiu como complemento, como viabilização da herança em outro momento, ela está ao lado, ela ajuda a promessa, não sendo nunca sua opositora.
Ele lembra, como fará na carta aos romanos, que a Lei explicitou e tornou evidentes os pecados. De modo generalizante, o apóstolo afirma que a “Escritura”, ou seja, o Antigo Testamento, encerrou tudo sob o pecado para que a promessa se tornasse válida mediante a fé em Jesus (v. 22).
Mas, historicamente, antes da manifestação da fé, a Lei foi uma espécie de tutor (v. 23). Ela serviu de “aio” (paidagogos, em grego). Talvez a melhor tradução a partir do termo grego seja professor, instrutor. A Lei exerceu a função de cuidar dos fieis e conduzi-los a Cristo. Esta é uma imagem muito bela e positiva para a Lei. Mas, uma vez vindo Jesus e a fé, a o instrutor não é mais necessário (v. 25).
No v. 26 tem início a conclusão do bloco. Se a Lei é um professor, um instrutor, somente Jesus nos torna filhos de Deus (v. 26). Obviamente esta é uma categorização que não seria bem recebida pelos judeus e judaizantes, que usavam uma série de classificações para determinar quem era espiritual e fiel a Deus.
Digno de nota é a mudança do pronome. Se nos versículos anteriores Paulo utilizou a primeira pessoa do plural – “nós” (v. 23-25), portanto, incluindo-se naquilo sobre o que escrevia, agora ele altera para a segunda pessoa do plural – “vós”. Portanto, se exclui de sua argumentação, aplicando aquilo que fala diretamente aos gálatas. Isso significa que não se aplica a ele o que é dito? Não seria ele filho de Deus? Não teria sido batizado em Cristo? Claro que sim! Mas a estratégia de se colocar de lado, para dar destaque aos leitores, busca tornar mais clara a aplicação a eles.
Ele quer deixar claro que os gálatas não estão mais sob os cuidados de um tutor, visto terem, pela fé, adquirido a maioridade espiritual. Eles se relacionam com Deus como filhos (v. 26). Sinal inconfundível disso foi terem sido batizados em Cristo (v. 27). A decorrência é que não existem mais categorizações e diferenças entre pessoas (v. 28), elemento central para a religião judaica, e um dos critérios pelos quais os cristãos judaizantes estavam tentando convencer os gálatas a respeito da necessidade da Lei. Agora, em Cristo, e somente por intermédio dele, eles se tornam descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa (v. 29).
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