1. O olhar semiótico possui várias semelhanças com o narrativo – por exemplo, ocupa-se das questões sintáticas e semânticas da temporalização, do enredo, das personagens, etc. Uma das peculiaridades da leitura semiótica dos anos 1990 em diante é o foco sobre as paixões manifestas no texto. Não se trata, é claro, de uma análise psicológica das personagens (o que se pode fazer fora do modo semiótico de ler), mas de uma análise das paixões enquanto objetos semióticos, que configuram (modalizam) os sujeitos e suas ações e relações. Trata-se de examinar, então, as chamadas “paixões de papel”, um componente da estrutura narrativa de todo e qualquer texto (ainda que sua presença seja ocultada na superfície discursiva e textual). Para quem gosta do assunto, as duas obras indispensáveis são: Semiótica das Paixões (A. J. Greimas & J. Fontanille) e Tensão e Significação (C. Zilberberg & J. Fontanille).
2. Vamos ao texto. Ana é uma das personagens principais do texto, apresentada com riqueza de detalhes, inclusive em seu percurso passional. Quero olhar para uma de suas paixões, explícitas, no trecho, que é assim traduzida em português “Por que teu coração está triste?” (BJ, ARA, Almeida 21) ou “por que te afliges?” (BP). O texto hebraico tem o imperfeito qal yëra` que é quase sempre traduzido por “fazer mal”, “ser maligno” – no léxico mais recente e amplo, somente 4 vezes o termo é traduzido por tristeza ou similar. Não vejo com bons olhos (um trocadilho, posto que em Dt 15,10 temos a frase “não seja maligno teu olho” – que no léxico é traduzido por “triste”!) essa tradução. A meu ver ela reduz o turbilhão passional vivenciado por Ana. Senão vejamos: Ana é a primeira esposa de Elcana (na ordem textual), mas não tem filhos, “porque YHWH havia fechado seu útero” (1,5b.6b). Sendo estéril, Ana não participava plenamente do sacrifício anual e era humilhada pela segunda esposa, Fenena, mãe dos filhos de Elcana.
3. O que está em jogo não é apenas tristeza, embora Elcana talvez olhasse para Ana desse modo, pois perguntara: “Será que eu não valho para ti mais do que dez filhos?” (Deixemos de lado a paixão de Elcana – soberba? arrogância?). Não. Não se trata de mera tristeza, mas de algo muito mais profundo. Ana é descrita como tendo o coração cheio de (ou portador de) mal/maldade. Não em sentido ativo, mas em sentido passivo. Ana sentia-se amaldiçoada. De fato, YHWH a amaldiçoara com a esterilidade. O peso da maldição de YHWH sobre seu corpo era tamanho que ela se curvava e encurvava, incapaz de celebrar, incapaz de se alimentar. No verso 10, o TM a descreve como mäºrat näºpeš “interiormente amarga”, vítima do mal e da maldade de YHWH (?), da esposa rival e da sua sociedade. Hoje em dia possivelmente ela seria diagnosticada como uma pessoa deprimida, com grave depressão. Mesmo deprimida, ela se dirige a YHWH em oração e clama a ele para que atente para a sua “opressão” (Bo`ónî é termo usado para o sofrimento dos hebreus no Egito) e lhe dê um filho homem. Deprimida, humilhada, oprimida, incapaz de encontrar um rumo na vida, ela suplica a YHWH que lhe dê um “êxodo” – um filho homem. Pedido estranho. Não radical politicamente. Por que não pedir a YHWH que mudasse a sociedade? Ela pede um filho homem – para que, de posse desse objeto valioso, ela fosse bem-vista (não mais mal-vista) pelas pessoas e pela sociedade ao seu redor. Quem sabe, assim, ela poderia olhar para si mesma também com outros olhos!
4. O sacerdote, observando-a em oração extática (êxtase de sofrimento, não de alegria, é claro!), julga-a embriagada (13-14), ao que Ana retruca: não estou bêbada, estou desgraçada (qüšat-rûªH), literalmente “de espírito arruinado”. Arruinada como fruto da opressão e humilhação que sofria cotidianamente e a deixava envergonhada, vexada, fechada para a vida (Kî|-mëröb SîHî wüka`sî 16b). Do fundo de seu desespero, porém, Ana faz um voto a YHWH: entregará a ele seu filho, fará dele um Isaque vivo (sacrifício vivo, santo e agradável a YHWH!). Voto votado, voto cumprido (1,19-28). Deprimida, amargurada, desesperada, arruinada, mas ainda assim cheia de fé e de esperança – ora, suplica, clama, vota e cumpre seu voto. Tudo na vida de Ana a conduzia para a morte – YHWH, Fenena, a sociedade, mesmo seu marido que a amava mas não a entendia ... Ana foi mais forte do que todos esses poderes mortais, suportou o peso da opressão e não se deixou vencer pelas paixões destrutivas que vivenciava em sua humilhação. OK! Ela não mudou as estruturas da sociedade. Mas que obrigou YHWH a mudar, isso sim! Ana fez com que o sacerdote da nação colocasse o “Deus de Israel” (17) a serviço de uma simples mulher estéril. Êxodo passional. Talvez no século XXI a oração de Ana fosse mais ou menos assim: “Deusa de todas nós, devolve-me a minha soberania sobre meu próprio corpo, reconhece meu direito a um ventre livre” ...
quinta-feira, 24 de junho de 2010
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O que me chama também a atenção é o versículo 19,"o Senhor se lembrou dela", o Senhor se lembrou da amaldiçoada, da oprimida...assim como o Senhor se lembrou do povo israelita em opressão no Egito...e depois Ana, a oprimida, em sua felicidade ao ser lembrada pelo Senhor "se lembrou do Senhor"e dedica o seu filho a Yahweh...(v.22ss).
ResponderExcluirCorreto, Rogério. A linguagem de I Sm 1 é linguagem do êxodo, da libertação.
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