Os posts anteriores geraram uma interessante discussão. Por isso fiquei esperando ...
Como não tenho muita paciência (hehehehe), vou dar um palpite.
Preliminarmente: (a) o texto aparentemente começa não em 12,1 mas em 11,15 ou 11,19 onde encontramos a forma pública "abriu-se", junto com 12,1.3 onde temos as únicas ocorrências, no Apocalipse, de vocábulo que indica uma visão pública ("viu-se") e não privada ("eu vi") - a visão de Ap 12 teria sido vista, assim, não só por João mas pelos seres celestes e pelas nações (11,15.16.18). (b) Chama a atenção o fato de que o texto fala de um "grande sinal" (v. 1) referindo-se à fragilizada mulher (gritando com dores de parto) e de um "sinal", referindo-se ao dragão (v.3) - se fosse levada em consideração a força física, o grande sinal deveria ser o dragão - temos, então, aqui, mais uma das muitas inversões da linguagem apocalíptica - a pequena mulher é grande, o grande dragão é pequeno. (Leonel já indicou alguns aspectos estruturais importantes, por isso não preciso indicá-los novamente).
A quem a mulher representa? A maior parte dos comentários tenta responder a esta pergunta. Do ponto de vista da semiótica seria mais apropriado perguntar: quem é este sujeito figurativizado por uma mulher...? Assim, não seria a preocupação primeira o referente extra-textual, mas o significado textual-discursivo, a partir do qual, se necessário, buscar-se-ia um possível referente histórico. (c) Aproveito esta sentença para retomar uma velha discussão, inclusive neste blog. Não é obrigatório usar métodos históricos para ler o texto contextualmente, respeitando a sua posição na história (podemos usá-los, mas eles não têm monopólio sobre a história vivida). É preciso, sim, conhecimentos históricos gerais sobre o período do texto, a partir dos quais, e informado pelo texto, o leitor buscará, mediante a análise das relações intertextuais e interdiscursivas, o ancoramento histórico-contextual do texto.
Exemplificando (como não tive tempo para uma pesquisa mais abrangente e aprofundada, faço apenas indicações sugestivas): A mulher estava vestida do sol, a lua estava a seus pés e usava uma coroa com doze estrelas.
1. O texto mantém relações interdiscursivas contratuais (de concordância) com a crítica vétero-testamentária ao politeísmo imperialista babilônico - sol e lua eram os principais deuses da Babilônia, e as estrelas também eram divinas. Assim como Gn 1 desdiviniza sol, lua e estrelas como meras lâmpadas, Ap 12 os diviniza como meros utensílios de vestuário. Como a Babilônia é símbolo do Império Romano no Apocalipse, isto indica o tom anti-imperialista da perícope. (Seria interessante pesquisar também a questão dos magos nos Evangelhos ...);
2. O texto mantém relações interdiscursivas polêmicas (de discordância) com a astrologia do mundo helênico, especialmente indicadas mediante as doze estrelas na coroa da mulher (não só símbolo das doze tribos do povo de Deus), representativas dos signos do zodíaco, negando, assim, um caráter fatalista à história (contrário à idéia da heimarmene no mundo helênico);
3. O texto mantém relações interdiscursivas polêmicas com a cosmovisão helenista do mundo (apoiada em parte pelas filosofias gregas), dividido em mundo supra-solar, sub-solar e sub-lunar, com graus distintos de "espiritualidade" e "materialidade". Assim, rompe com a idéia dualista ontológica, reafirmando o modo monista (anômalo) do pensamento judaico.
Temos, assim, pelo menos três isotopias (linhas temáticas) de leitura proporcionadas pelo texto: uma leitura político-religiosa (anti-imperialismo legitimado pela religião e defesa da não-violência como forma de transformação); uma leitura religiosa-existencial (anti fatalismo) e uma leitura filosófica anti-dualista. Destarte, revela-se a polissemia do texto, que deve ser indicada pelo texto e percebida pelo leitor. Estas isotopias sugerem que a leitura do texto apenas no modo soteriológico "igreja" vs. "mundo" é unilateral.
Fico por aqui, enquanto penso um pouco mais sobre a criança e outras isotopias por ela sugeridas ...
quarta-feira, 5 de maio de 2010
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Olá professo Zabatiero,
ResponderExcluirconcordo com a afirmação de que o texto delimita-se a partir de 11, 15 ou 11, 19, eu diria 11,19... Também concordo com as demais relações contextuais. No entanto, você afirma que o texto rompe como a visão fatalista da história e com o dualismo ontológico? Fatalismo histórico é uma das mais comuns características dos textos apocalípticos (em especial os apocalipses históricos)! Seria, então, o Ap uma espécie de crítica a uma maneira de ler a história como faz a literatura apocalíptica, tanto nos textos dos tipos históricos ou até mesmo dos apocalipses de viagem celestial, usando o próprio gênero ou subgênero apocalipse? Assim, a crítica deixa de ser apenas à visão helenista de história, mas a todo um imaginário presente nos textos apocalípticos do judaísmo do segundo templo. Da mesma forma o dualismo, pois isso é também comum na literatura em questão e está presente indiscutivelmente nos textos de Qumran (1QS 3,13-4,26; 1QH; 1QM; 11QMelquisedec e outros....).
Caro Kenner, não vejo o fatalismo como uma característica dos textos apocalípticos canônicos (são os que eu, mais ou menos, tenho estudado). Vejo Daniel, as seções apocalípticas dos profetas do AT, dos Evangelhos e o próprio Apocalipse como textos de resistência e esperança - logo, não podem ser fatalistas, e me parece que Ap 12 sustenta esta visão.
ResponderExcluirNesse caso, se o imaginário dos textos apocalípticos não-canônicos é fatalista, então o Apocalipse também mantém com eles uma relação polêmica.
Em relação ao dualismo a conversa deveria ser mais longa, mas irei me restringir a um ou dois comentários. (1) Distingo dualismo "ontológico" de dualismo "ético-salvífico", reservando o primeiro para as cosmovisões persa e helenistas (nem todas, é claro). O dualismo de Qumran, me parece, é do tipo ético-salvífico; (2) Prefiro nomear a cosmovisão judaica antiga de "monismo anômalo" (usando um termo desenvolvido extensamente por Donald Davidson), por causa da fé no Deus único e criador. Não vejo na Escritura e no Judaísmo clássico "oficial" um dualismo ontológico, pois mesmo Satanás, Diabo, Serpente, Dragão, etc., são criaturas e não criadores, não são princípios ontológicos, mas ético-políticos.
Sim. No entanto, o dualismo de Qumran é influenciado pelo persa, aquele que vc chama de dualismo ontológico (Garcia Martinez diz que não somente do persa como também do enoquita). Isso fica muito claro no "tratado dos dois espíritos", como bem mostrou Collins. Mesmo Deus como criador em Qumran, tanto do bem como do mal (1Qs), há um dualismo em três níveis: cósmico, histórico e antropológico. Por essa aproximação de Qumram com o dualismo persa, que é ontológico, em que sentido seria ético-salvífico?
ResponderExcluirNos contatos interculturais ou interdiscursivos, sempre há algum tipo de ressignificação de idéias, mesmo quando a relação é "contratual".
ResponderExcluirParece-me que a questão aqui é metodológica e filosófica. Metodologicamente é preciso levar em consideração que "empréstimos", "influências" ou "aproximações" de um discurso em relação a outro não fazem de um discurso "cópia" de outro. Filosoficamente, não tínhamos até pouco tempo atrás, descrições alternativas ao monismo e ao dualismo "ontológicos". Os escritos de Davidson proporcionaram essa descrição alternativa de um modo que se tornou aceito no campo da filosofia (é claro que isso não quer dizer que tornou-se um novo "padrão"). Agora podemos descrever o pensamento judaico antigo de outra forma, como um "monismo anômalo" e não como um dualismo. A questão, então, é verificar se as oposições duais nos textos antigos são melhor descritas como "dualistas" ou como "monistas anômalas".
Julio, o que foi que eu perdi? De que modo o "monismo anômalo", de Davidson, se relaciona com o "dualismo"? E, se for o caso de haver alguma relação - que me escapa -, o conceito de monismo anômalo pode ser pressuposto como presente na gênese da narrativa, de modo a servir de critério para... explicá-la?? Uma coisa seria a explicação, desde hoje, daqueles fenômenos (como o faria um antropólogo, cujos arrazoados, contudo, não podem ser sacados para explicação da narrativa, já que não há nenhuma consciência antropológica ali, porque a Antropologia é um modo muito recente de olhar o mundo) - outra, a compreensão que tem a própria cultura de então sobre as relações que aqui se discutem sob os termos dualismo e monismo anômalo. Não?
ResponderExcluirOsvaldo,
ResponderExcluirO "monismo anômalo" de Davidson, em uma híper-síntese, afirma que há um só princípio ôntico - a matéria - mas admite que há fenômenos "materiais" (pensamentos, sentimentos, ações humanas) que não podem ser explicados de modo causal, mas por razões; ou seja, são fenômenos materiais "anômalos". Dessa forma, ele não precisa postular a existência de uma substância "imaterial" no mundo a fim de explicar os aspectos "imateriais" da vida humana.
É claro que essa descrição enquanto tal não estava presente no contexto cultural antigo, ela, porém, oferece a possibilidade de uma compreensão e descrição mais adequada das crenças judaicas antigas do que as explicações dualistas. Como os textos judaicos não usavam categorias filosóficas gregas para explicar a realidade, nós somos obrigados a negociar categorias a fim de interpretar esses textos.
Toda interpretação, Osvaldo, é uma negociação entre as categorias do intérprete e as categorias do texto interpretado. Cabe aos intérpretes selecionar as categorias mais aptas a fim de explicitar a sua interpretação e descrever as categorias do texto-em-seu-contexto com a linguagem que podemos entender.
Seu comentário me deixou uma impressão esquisita: você está defendendo que nós, hoje, podemos entender um texto exatamente como seu autor e seus primeiros leitores o entenderam, usando exclusivamente as categorias deles e não as nossas?
Sim, eu concordo muito com a criatividade na recepção, nos "empréstimos", nas "influências" ou nas "aproximações" de um discurso, pois nunca poderão ser copias (e acho que Certeau mostrou isso claramente)! Inclusive em minha dissertação percebi isso claramente nas apropriações ao Mito dos Vigilantes. Talvez o caminho seja realmente analisar se os textos de Qumran, por exemplo – e acho isso muito interessante –, possuem oposições duais dualistas ou "monistas anômalas" , de acordo como propõe Davdson...
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