A escolha deste texto foi muito boa. Acho que ele é um dos textos mais enigmáticos dos sinóticos. Tudo nele é estranho. O motivo para a estadia de Jesus em Tiro, que parece não fazer sentido. Afinal, Jesus teve comunidades e seguidores fenícios? Os gritos da mulher, omitidos em Marcos. A resposta de Jesus, pouco apropriada ao que imaginamos dele ou melhor, o que se espera dele na pesquisa do Jesus histórico. "Fui enviado apenas às ovelhas perdidas da casa de Israel". E, por fim, a escandalosa resposta dele à mulher suplicante: "Não fica bem tirar o pão dos filhos para atirá-lo aos cachorrinhos". Um texto desconcertante, no mínimo.
Podemos lidar com ele livremente, pois os pesquisadores já decretaram que ele não pertencemao Jesus Histórico! Ufa, que alívio ler um texto que o Jesus Seminar disse que não pertence ao Jesus Histórico. Este monstrego criado pelo positivismo arrogante da exegese do Atlântico Norte. Está aí uma boa pauta para discutirmos em algum momento neste blog. O monstrengo do Jesus Histórico. Mas não é o caso aqui, pois os critérios e os votos "democráticos" dos especialistas não o permitiu. rsss
Sigamos!Uma coisa que me surpreende é que Mateus tenha inserido este texto em seu evangelho. Jesus em Tiro? Sidon? Curando fenícios? E a versão dele é bem artificial, com a história da pagã (duplamente segundo Marcos: fenícia e grega) que clama pelo Filho de Davi. Muito estranho mesmo. Toda esta estranheza nos permite finalmente ler o texto como narrativa, como construção literária, como já vêm fazendo o Júlio e o João Leonel. Queria fazer só mais uma sugestão nesta direção. Se tudo no texto é improvável, artificial, e se a versão de Mateus consegue "piorar" o texto, não é por que Mateus entendeu o espírito de Marcos de que o texto se trata de uma grande brincadeira? Um enigma no começo e uma gargalhada depois? "Ah, entendi!". E aí Mateus (seja lá quem tenha sido. Nada de Mateus Histórico!) resolve acrescentar mais elementos à improvável narrativa para deixá-la ainda mais improvável. O que parece ser decisivo no texto é que a mulher vence Jesus com esperteza e o obriga a libertar sua filha do demônio na amarra de suas palavras. Ele dá uma resposta sobre cachorrinhos e migalhas. Bem, diz o ditado. Quem fala o que quer, ouve o que não quer. E ela, nas palavras dele, no jogo de enigma proposto por ele, o vence e o subjuga. Ela trapaceia com bom humor e dá uma reviravolta no desfecho. Jesus, com esportiva e igual bom humor, reconhece sua derrota e mostra admiração com a fé/sagacidade da mulher.
Não é delicioso? Não é bom poder ler um texto fantasioso, sem as amarras da historicidade careta? É verdade que Theissen já renovou o texto há décadas com sua leitura sociológica. Mas ela ainda é certinha demais. Ainda não tinha reconhecido que Jesus fora enganado e vencido por uma pagã.
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ResponderExcluirFoi mais fácil para Jesus exorcizar o demônio do que fugir das amarras argumentativas e convencedoras daquela pagã... rsrs! Os interesses da comunidade eram seriíssimos, em! E para isso até Jesus é convencido... quase ludibriado! (rsrrs)
ResponderExcluirVerdade Paulo, eis que finalmente a verdade nos liberta! Claro, liberta das algemas da historicidade que mencionou, e que nos impediram antes de ler o texto e ver o que está ali, escrito diante de nós. A hipótese de que Mateus encarou o texto de Marcos com humor é intrigante, pois jamais imaginamos um evangelista bricalhão. Para nós, eles são homens sérios, preocupados com a verdade, ocupados em averiguar os fatos... o que não deixa de ser outra piada.
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