Gostaria de adicionar um elemento judaizante à interpretação libertadora do Júlio a respeito do justo que viverá por sua emunah. Segundo o Pesher Habacuc de Qumran o 1QHab Col.VIII, 1-3, o comentário para o verso em questão é: "Sua interpretação se refere a todos os que cumprirem a Torah na Casa de Judá, aos quais livrará Deus do castigo por causa de seus trabalhos e de sua fidelidade (emunah) ao Mestre de Justiça". Para atualizar este comentário podemos fazer algumas alterações. Basta substituir a fidelidade ao Mestre da Justiça, coisa específica de Qumran, pela fidelidade a Deus e ao seu Messias, no nosso caso, de outra seita, Jesus. Se dermos uma pitadinha de "a Escritura é interpretada pela Escritura" podemos juntar: cumprir a "Torah perfeita da liberdade", ao estilo de Tiago. Vejam que bonito: o justo viverá por sua fidelidade, ou seja, no cumprimento da Torah (quantos desafios para nossa sociedade estão ali!) e são fiéis ao seu Messias (o grande intérprete radicalizador da Torah), que cumpriu a vontade de Deus até a morte. Desta forma podemos ter esperança de livramento de nosso merecido castigo.
Permitam-me generalizar um pouco o assunto: ainda faz sentido ficarmos apenas remoendo culpa individual, que corresponde a uma moralidade que não existe mais e a uma imagem de deus (el gran castigador) que não faz mais sentido para transformarmos toda a mensagem de Romanos num discurso de que Deus me salva, isto é me perdoa de meus pecados mais íntimos (pensamentos interiores, desejos inexprimíveis, libido incontrolável), para que eu corresponda, por sua graça, a um ideal de justiça vitoriano, assexuado e apolíneo? E dizer que esta salvação divina em resposta à fé (não em lembro da formulação luterana e calvinista precisa: seria por graça mediante fé? Algo assim...) é um livramento individual, suficiente, de toda condenação infernal. Uma vez livre poderia dizer: "Peca forte!" Tua salvação individual é total. Quanto mais pecar, mais funciona. Um bom seguro de saúde ou um bom anti-vírus.
Não chegou o momento de acabarmos com este cinismo espiritual do peca forte? Já aprendemos da defunta Teologia da Libertação (ela morreu, mas deixou sementes lançadas à terra) que pecado é social também. Talvez até mais social. Não seria cinismo das culturas protestantes do Atlântico Norte repetir a desgastada fórmula de Lutero do peca forte?
Destruição de rios e mares? Peca forte!
Políticas econômicas protecionistas européias e norte-americanas? Peca forte!
Discriminação de árabes e africanos? Peca forte!
Guerra total ao terrorismo? Peca forte!
E nós, seguidores do mesmo cinismo ético nos trópicos?
Corrupção no mundo evangélico? Peca forte!
Jatinhos, helicópteros, dossiês? Peca forte!
Teologia da avidez por dinheiro? Peca forte!
E assim por diante.
Não creio que Paulo pudesse ter imaginado o abismo em que íamos nos lançar. Por isso um pequeno corretivo inspirado em Habacuc, em Qumran e em Tiago. Fidelidade à Torah (cumprimento da sua vontade, que nos liberta) e ao seu Messias ( que por ela deu a vida)! Esta é a libertação.
Em outras palavras, Paulo propôs um cristianismo "sem religião" e nós acabamos ficando com uma religião "sem Cristianismo"?
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