Escrevo para dialogar com Esdras e com outros leitores que discordaram da minha afirmação de que "A Bíblia não é regra de coisa alguma". Antes de tudo quero reafirmar o que disse, mas também falar um pouco mais do que isso significa para mim. Afinal o que escrevemos neste blog é perpassado por nossas experiências como leitores. Não temos como objetivo reproduzir um manual, mas provocar os leitores a partir de nossas próprias práticas de leitura, em diferentes olhares.
Na minha história de leitor da Bíblia precisei carinhosamente exorciza-la enquanto regra de fé e prática. E isso por vários motivos. Um deles é que esta frase "regra de fé e prática" se tornou uma justificativa ideológica para todo tipo de prática que parte de seleções do texto bíblico e de interpretações particulares dele. Mas se enunciadas como tendo fundamento na Bíblia, "regra de fé e prática", pretendem ganhar valor universal. Mas você nunca ouve que comunidades vendem seus bens e os dão aos pobres em seguimento à Bíblia, mas sim que devemos reprimir sexualidade, bebida, contatos com pessoas de outros credos, aí sim, em nome da regra. Quem lê a Bíblia escolhe: tem um cânon dentro do cânon. E acho que isso é mesmo necessário. Afinal a Bíblia (a grande biblioteca) tem textos muito diversos entre si, com perspectivas e cosmovisões tão díspares, que o leitor tem que achar o seu jeito de navegar por ela. Isso não é relativismo pós-moderno, é decorrente de um mapeamento da linguagem e das perspectivas culturais dos diferentes tipos de texto da Escritura.
Na minha biografia precisei dizer não à Bíblia para continuar a amá-la. Não podia amá-la como conjunto de regras (e por fim como a única regra), de normas a serem cumpridas, como livro de itens de check list com os quais julgamos a vida das pessoas, dizendo-lhes: "ei, isto não é bíblico". Isto só pode tornar a Bíblia um livro odioso. Na melhor das hipóteses um livro chato, que leio por obrigação.
Para amar a Bíblia preciso considerá-la humana e lê-la em conjunto com outros textos humanos. E na verdade ela é um testemunho humano sobre Deus, sobre experiências de Deus, no mundo dos humanos. Ela fala a nossa linguagem, com toda a sua imperfeição e com toda a sua riqueza. Deus é transcendente, a Bíblia é polissêmica. São coisas diferentes. É por meio de suas metáforas muito humanas que podemos criar imagens de Deus.
No mais, caro leitor, acho que não conseguimos amar um texto regra. Lobo Antunes, escritor português que deu uma bela entrevista na Folha on Line de 24/4, conta que quando encontra um texto bom suas veias se unem às veias do texto. Acho que é isso que quero dizer quando preciso ler a Bíblia como uma experiência muito humana.
Quanto à pergunta se a Bíblia é um livro entre outros, se ler Paulo Coelho vale da mesma forma, eu diria que todos lemos textos por meio de outros textos. O leitor evangélico lê a Bíblia por meio e com as lentes dos seus autores evangélicos preferidos (normalmente conservadores norte-americanos). O leitor católico também tem seus textos auxiliares. O exegeta, seus comentários preferidos. O sola scriptura é mais um desejo que uma realidade. Não gosto de Paulo Coelho, mas para muita gente é um marco de sua história de leitor. E Paulo Coelho vai sim interferir na leitura de outros textos que ele venha a ler. As leituras não podem ser guardadas em caixinhas, como se pudéssemos dizer: agora regras de fé, depois poesia mundana, depois romances para divertir. Tudo está em diálogo com tudo. Neste sentido a cultura popular tem muito a nos ensinar. Ela coloca muitos textos (orais, imagéticos, melódicos e escritos) em diálogo.
Por fim, dispensar o conceito de "regra de fé e prática" me permite ler a Bíblia com atenção à sua dramaticidade. Comentamos há pouco o texto de Gênesis 22. Ele tem que gerar em nós indignação e não nos remeter diretamente ao Cristo sendo enviado pelo seu pai para o sacrifício. Ao ler um milagre de Jesus posso me maravilhar junto com o povo que assiste à cena, me emocionar até. Melhor que entender nisso atributos da segunda pessoa da trindade, etc. A Bíblia como testemunho nos permite amá-la, fazer escolhas, nos identificarmos com personagens, com narrativas. Também permite dizer não a outras.Ninguém pode ler por nós. Temos que fazer escolhas e achar caminhos no labirinto das palavras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário