segunda-feira, 26 de abril de 2010

Um pequeno parêntese ao texto do Júlio

Peço perdão ao Júlio por interferir na sua exposição. Ela está sendo tremendamente esclarecedora e funciona como uma síntese daquilo que temos discutido (sim, Júlio, a síntese é importante :-)

Desejo apenas comentar um aspecto complentar ao ponto de vista da leitura, focando o receptor, ou, como o Júlio tem denominado, a "perspectiva".

O teórico literário norte-americano Stanley Fish escreveu um livro intitulado: "Is There a Text in This Class?: The Authority of Interpretive Communities." (Há um texto nesta sala de aula? A autoridade de comunidades interpretativas). Nele Fish salienta que formamos "comunidades de leitores" que partilham de uma mesma "perspectiva" (para usar o termo do Júlio) que lhes dá determinada unidade de leitura.

O historiador da cultura Roger Chartier explora bastante essa questão quando estuda a história da leitura. Ele concorda com Fish e amplia sua argumentação ao pesquisar como grupos de leitores operam a partir de elementos em comum. Nem sempre essa questão é perceptível.

Os dois teóricos nos ajudam na discussão ao propor que a "perspectiva" extrapola a questão individual. Nós somos formados por elementos comuns a um determinado meio e grupo. Isso não significa que não possamos diferir ou nos distinguir desse meio, mas sim que devemos reconhecer que nos nossos processos mentais e mesmo de escolha existem fatores sociais, culturais, religiosos etc., que são determinantes a nós e ao grupo ao qual pertencemos (militares, políticos, religiosos etc) e que diferem de outros grupos.

Trazendo essa teorização de modo prático para a questão da interpretação da Bíblia, tal teoria ajuda a entender a razão pela qual há divergência interpretativa entre católicos, protestantes históricos, pentecostais, e neo-pentecostais (para não expandir para outros grupos não-cristãos). E mesmo dentre esses grupos há subdivisões.

Paro por aqui, pedindo novamente desculpas ao Júlio!

3 comentários:

  1. Prá começar, não é necessário o pedido de desculpas. Pra concluir, seu posto complementa muito bem o que escrevi sobre a perspectiva. Relendo, notei que ficou por demais implícito o fato de que a perspectiva não é um ato individual, mas uma dimensão coletiva. Isto está implícito no conceito de discurso (que sempre é de "comunidades"), mas a explicitação faz muito bem. Gracias!

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  2. Kharis kai eirene

    Como se trata de observações plurais a respeito da interpretação, gostaria de apresentar resumidamente uma breve intervenção, perspectiva da pedagogia freireana. Paulo Freire (1987) afirmara que “a leitura da palavra é sempre precedida da leitura do mundo”. Na concepção freireana, ler é interpretar a si mesmo e ao mundo. Não se trata de mera decodificação de sinais gráficos e códigos linguísticos, mas de apropriação de uma ação libertadora. Para Freire, ler é exercício de cidadania e de práxis do indivíduo no mundo. A verdadeira função da escrita e leitura é capacitar o sujeito a aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto em uma relação dinâmica que vincula linguagem e realidade, alfabetização e leitura, dizia Freire (1987). Assim, a verdadeira leitura não é aquela que manipula mecanicamente o texto, mas a que implica em percepção crítica das relações entre o texto e o contexto do ledor. A educação freireana prioriza a leitura e a alfabetização como um ato político libertador. A educação, assim como a leitura, não deve estar dissociada da realidade e do contexto dos aprendentes, muito menos ser alienante. Quem lê deve ser capaz de interpretar o seu mundo, de pensar e cogitar sobre o lido, de criticar e repensar a leitura, de rever cosmovisões e construir novos caminhos.

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  3. Esdras,

    Obrigado por teu comentário!

    Concordo com você. Aliás, acho o texto que você citou do Paulo Freire fantástico, por ser claro, poético, e explicitar exatamente o que ele quer dizer.

    Lembro que a capacidade de ler primeiramente o mundo para depois ler o texto é um exercício social. Freire situa seu aprendizado na casa dos pais e depois no contexto da escola da profa. tal (não lembro o nome dela). Ou seja, há um meio e um grupo interagindo com ele, formando-o.

    Claro que, como você coloca, ao sermos formados, voltamos ao mundo para dialogar com ele, inclusive para transformá-lo. Mas aí já é outra conversa.

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