Inicio semioticamente: a perícope recortada - de forma algo arbirária, de fato - é construída sob a sombra da subjetividade. Ela estabelece um jogo entre formas imperativas dirigidas a um "tu" e formas testemunhais na boca de um "eu". É, assim, um texto dialogal, dialogante, que convida leitores à conversa. Esse diálogo só é interrompido nos versos finais (18-20), e mesmo nesses versos, a interrupção é parcial, pois são uma reflexão do "eu" sobre um dos imperativos dirigidos ao "tu". Uma das interpretações possíveis dessas personagens é a seguinte: o "eu" é o Qohelet, enquanto o "tu" é o sábio-oriental-padrão bem como o filósofo-grego-padrão. Que semelhanças há entre esses dois "tu"? Ambos são obcecados com a ordem. Um a chama de Justiça, o outro a chama de Logos. Ambos acreditam que se estudarmos bastante, se refletirmos incansavelmente, se dedicarmos nossa vida integralmente ao trabalho da ciência, chegaremos ao pleno conhecimento da realidade e poderemos domá-la, controlá-la, regê-la. Uma segunda semelhança é que ambos são obcecados com a ética. O primeiro "tu" leva uma certa vantagem, pois para ele a ética pertence ao mundo da justiça, assim como a sabedoria. Logo, ética e sabedoria se complementam (note o paralelismo no v. 16). O segundo "tu" possui um probleminha para resolver: como encaixar a ética no palco do Logos? Probleminha, pois, afinal de contas, é possível, com muita reflexão, situar a ética - Aristóteles ofereceu uma engenhosa resposta: a virtude está no equilíbrio . No equilíbrio entre as paixões tormentosas e as virtudes maravilhosas, de modo que a pessoa que escolhe "filosoficamente" fazer o bem, alcança-lo-á. Mutatis mutandis, toda a ética ocidental acredita que "chegaremos lá" (as exceções confirmam a regra...).
Descrito o "tu", o mistério do "eu" se ameniza. Afinal de contas, quem é Qohelet? Um rei? Um cético? Um sábio? Um louco qualquer? Amenizado mas não desfeito. Qohelet é apenas um colecionador, um "eu" que coleciona diálogos, conversas, impressões, sabedorias. Colecionando-as, coloca-as em exposição. Expostas, cabe aos admiradores dar-lhes sentido, se é que elas podem fazer sentido. Como pode haver sentido se Elohim fez tudo torto? A RAB tenta salvar Elohim ao traduzir o singular hebraico "obra" pelo plural "obras" - Elohim só teria feito algumas coisas tortas... Qohelet não tem pruridos dogmáticos. Elohim faz e ninguém desfaz. Ele fez sua obra torta, ninguém poderá endireitá-la. Não há ordem a ser descoberta. Não há padrões reveladores dos mistérios ocultos na superfície caótica da vida cósmica. Não os havendo, "viva a vida", "carpe diem" - justa e sabiamente, sim; mas como não há justo ...
Qohelet é um "eu" filosoficamente incorreto. No último verso do capítulo 7 ele se contradiz: "Elohim fez o adam reto, e eles (a "desconcordância" numérica está no texto hebraico) correm atrás de invenções e esquemas". Tudo que é torto funciona direito. Uma coisa só é reta, e funciona torta. Entrando na seara "recepcionista" do Paulo, o melhor comentário de Eclesiastes que conheço é obra de uma mulher, londrina, de 19 anos, Mary Shelley. Adivinhou? Claro! Frankenstein: ecce homo!
Mais poderia ser dito, mas os colegas merecem o direito de postar suas próprias monstruosidades.
terça-feira, 18 de maio de 2010
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