Esdras trouxe, mais uma vez à discussão, a questão da validade da interpretação, em comentário feito ao post do Leonel. Cito parte do comentário do Esdras:
"O texto trabalha sobre dois eixos: o da interpretação adequada e a resposta do leitor. No primeiro, embora os administradores do blog reconheçam que “há um sentido no texto”, a importância e valor da exegese histórico-gramatical e léxico-sintática são relegados, ao que parece, a questões de somenos importância pelo fato de o leitor, seu contexto e competência serem mais importantes do que o contexto, a linguagem, gramática, ou propósitos do autor. Como está claro no ensaio “o que existe é um texto que não tem ancoragem histórica em um autor e um leitor que não consegue ocupar o lugar dos leitores originais”. Todavia, minha pergunta é: Como justificar uma interpretação que, ao mesmo tempo em que faz jus ao contexto original, fale ao leitor moderno afastado do autor e de sua cultura, sem que, para isso, o texto seja desconstruído de seu propósito fundante?" (os itálicos são meus - JPTZ)
Começo com a questão envolvida na frase "ao que parece". De fato, apenas "parece" que se dedique pouco valor à materialidade lingüística do texto. Na exegese literária e na semiótica o texto recebe, inclusive, muito mais atenção do que nas metodologias históricas. Em meu Manual de Exegese, por exemplo, o trabalho do leitor com o texto em sua materialidade é tão intenso que corresponde a aproximadamente cinco vezes mais trabalho comparado com o da "releitura" do texto, ou sua aplicabilidade ao leitor atual. De forma semelhante, não há menos atenção ao contexto histórico-cultural do texto bíblico. Há, sim, uma diferente teoria da história com uma, conseqüentemente, diferente forma de trabalhar o contexto. No caso da semiótica, o mecanismo das relações intertextuais e interdiscursivas é que oferece o aparato técnico para a análise do contexto da época de escrita do texto (isto eu já apontara em outros posts, ao mencionar, por exemplo, o conceito de "heterogeneidade constitutiva do discurso", que provém da Análise do Discurso, e se refere também à contextualidade do texto).
Então, a contextualidade e a materialidade lingüística do texto não são desconsideradas, não são subordinadas ao leitor, nem são questões de "somenos importância". O que Leonel e eu estamos tentando mostrar é outra coisa.
Que coisa é essa? É a impossibilidade de, a partir do texto, se chegar à intenção do autor e, chegando-se a essa intenção, descobrir o "que ele realmente queria dizer". É, ademais, a inutilidade dessa busca, na medida em que, se trabalhamos intensamente com o texto, nele encontramos tudo o que é necessário para sua compreensão, sem precisar remeter a uma realidade "externa" ao texto - seja a intenção do autor, seja um acontecimento histórico. (O mesmo vale para o leitor original.) Então, caro Esdras, não é preciso "desconstruir" o texto para entendê-lo. Ora, a metodologia que "desconstrói" o texto para entendê-lo é exatamente a metodologia que se baseia na "intenção autoral", que se sobrepõe ao texto e o "corrige", posto que afirma algo além do texto para revelar sua significação e é a mesma metodologai que separa a exegese da hermenêutica.
Ao meu ver, a questão aqui é bem diferente. São dois jogos distintos que se entrecruzam. Um é o jogo da compreensão. No jogo da compreensão são indispensáveis a materialidade lingüística do texto e a sua contextualidade inter-discursiva (que substituem com imensas vantagens teóricas e metodológicas, o "autor" e os "leitores originais" - os quais são, assim, plenamente levados em conta, mas não como "pessoas físicas" e sim como "agentes discursivos ou comunicativos").
O segundo jogo é o jogo da autoridade (ou da Verdade). É o jogo que responde à pergunta "com que autoridade eu deixo de fazer isto e passo a fazer aquilo?". Este segundo jogo é tão legítimo quanto o primeiro. E todos o jogamos, mas com regras e objetivos diferentes. Apenas um exemplo, extraído da leitura pentecostal da Bíblia, em homenagem à participação do Esdras e do Kenner como co-blogueirantes: somente no início do século XX passou-se a interpretar textos do livro de Atos como "prova" da doutrina do batismo no Espírito Santo como uma "segunda bênção". Bem, não podemos vincular essa interpretação à intenção do autor de Atos, nem à recepção do texto pelos "primeiros leitores", nem mesmo à sua recepção por dezenas de gerações de leitores da Bíblia. Isto prova que a interpretação pentecostal está "errada" e é heterodoxa? De modo nenhum. Mostra, pelo contrário, que o enunciatário (leitor) co-produz sentido com o enunciador (autor).
Onde está a Autoridade ou a Verdade? O jogo da Autoridade/Verdade está sendo jogado no conflito das interpretações. Tanto pentecostais quanto não-pentecostais utilizarão o argumento da "intenção do autor", ou do "contexto textual" ou "dos primeiros leitores" para provar que a sua própria interpretação tem Autoridade por que ela é a que está mais próxima da Verdade originante (ou "propósito fundante" no comentário do Esdras). O jogo da Verdade é o jogo da Recepção Institucional do texto, que passa a servir de fundamento para uma doutrina ou conceito teológico que tenha valor normativo para um determinado grupo religioso. Nós, nas Igrejas Cristãs, ainda não aprendemos a falar de modo humano, não-fundamentalista, quando anunciamos a verdade aos demais membros de nossa denominação. Hoje eu não tenho mais essa dificuldade. Quando prego sobre "construção do templo" não preciso dizer ao pessoal da comunidade que eles têm de dar dinheiro por que é a vontade de Deus que a igreja tenha Templo. Simplesmente digo, que nós é quem precisamos do templo para nos reunirmos e por isso nós é que temos de pagar para construí-lo. (Não seria esta a "intenção" de Jesus ao afirmar que iria "destruir o Templo e reconstruí-lo em três dias"?)
Volto ao primeiro jogo. Em nossos posts, Paulo, Leonel e eu temos jogado o jogo da compreensão de textos. Não estamos jogando o jogo da autoridade/verdade. Eventualmente jogaremos também esse jogo. Por enquanto, sugiro dois textos para quem tem interesse nas regras do jogo da autoridade (que, repito, é tão legítimo quanto o jogo da compreensão): Michel Foucault, A Ordem do Discurso, livreto publicado pela Loyola e que você pode achar "de grátis" na web. Dominique Maingueneau, Discurso Literário, publicado pela Contexto, em especial o capítulo sobre "Discurso Constituinte".
Para encerrar (ufa!) este post, não a discussão. Na exegese clássica moderna deu-se a este jogo o nome de "Hermenêutica", que vem depois da "Exegese". O jogo da exegese é o jogo do "original", o jogo da hermenêutica é o da aplicação, da releitura. Aí, se perdeu de vista, ou se escondeu, o jogo da autoridade. Para metodologias semióticas, literárias, ou lingüísticas, ou estéticas, o jogo da exegese e o da hermenêutica são um só. Por isso é que fica a impressão de que se descuida do autor, contexto, leitores originais. Não! Apenas se descreve a arte da interpretação de forma diferente. Mas este "apenas" faz uma imensa diferença política!
sexta-feira, 23 de abril de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Olá prof. Zabatieiro,
ResponderExcluirachei muito clara e compreensível a argumentação. E é nítido que o jogo da verdade/autoridade ainda está muito vivo não só no mundo eclesiástico (que parece precisar dele por questões que variam entre a necessidade de poder ao conforto das interpretações “corretas” do texto), mas também na academia. E me parece, que nas instituições que formam biblistas ainda se depende da perspectiva historicista como instrumento para detectar a interpretação aceitável. Isso fica bem claro numa banca, por exemplo. O que seria necessário, na opinião destes blogueiros para uma (re)educação – se assim posso falar – metodológica na leitura dos textos? Mais gente utilizando esses métodos em dissertações e teses nas instituições que formam os biblistas? Será que o descaso de alguns enrijecidos exegetas a essas novas ferramentas e pressupostos de leitura/interpretação seja o medo do “fim-da-exegese” que essas novas/antigas propostas poderiam parecer apontar?
Bom, creio que entendi a ênfase. Todavia, não estou muito certo se Foucault e sua A ordem do discurso são favoráveis a qualquer hermenêutica que sugira um controle da interpretação. A impressão que tive, em certo tempo que li a referida obra, é que Foucault está mais preocupado com os procedimentos que permitem, controlam e possibilitam o discurso do que propriamente explicar como o leitor, o terceiro termo peirciano, gera uma nova interpretação. Uma de suas preocupações cruciais é, se ainda me lembro, das cesuras que rompem o instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e funções possíveis e, assim, retornamos às filosofias do sujeito e do tempo e, por conseguinte, a Aristóteles e sua Metafísica e a Heidegger em Ser e Tempo. Assim sendo, me parece que a ênfase não está no objeto dinâmico – aquilo que o signo se refere –, e no objeto imediato – o que o signo exprime, mas a partir de ambos no interpretante, que é sujeito, dinâmico e vários. Isto não nos coloca em um relativismo interpretativo?
ResponderExcluirPr. Esdras,
ResponderExcluirA tua pergunta, pelo que percebi, revela alguém preocupado com a verdade do texto ou a verdadeira leitura. Como foi colocado neste post, o que os três pretendem é não partir dessa preocupação. E Como disse Zabatiero: "Paulo, Leonel e eu temos jogado o jogo da compreensão de textos. Não estamos jogando o jogo da autoridade/verdade