sexta-feira, 23 de abril de 2010

Leitura da Bíblia: ciência ou arte?

Uma das discussões constantes na leitura da Bíblia na Modernidade é a relativa ao estatuto da interpretação (de fato, é uma discussão sobre o estatuto da própria Teologia como uma ampla área de saber). Nas vertentes historicistas (metodologias históricas, sociológicas, antropológicas, etc., ou seja, baseadas nas ciências humanas, das quais a História foi, em boa parte do mundo moderno, o paradigma), normalmente se pensa na exegese como uma atividade científica, logo, objetiva. Ora, a idéia moderna de ciência é, basicamente, a de executar procedimentos em forma metódica e controlada, a fim de construir leis explicativas e preditivas dos objetos (fenômenos) estudados. A verdade científica estaria, assim, garantida pela objetividade do objeto e pela impessoalidade do procedimento calculatório. Em linguagem técnica: Se p, então q = se eu sigo os procedimentos corretos de forma correta então eu descubro a verdade oculta no objeto sob estudo.

Temos nesta equação um grave problema no que tange à leitura da Bíblia (ou de outros textos similares). Não se lê a Bíblia com vistas a formular leis explicativas e preditivas, mas para se compreender a Bíblia a fim de ser fiel a um dos projetos de vida que nela se nos apresentam misteriosamente (uso o termo em sentido similar ao das cartas (pós?)paulinas aos efésios e colossenses - um mistério já revelado mas ainda oculto). Ou será que podemos formular leis "espirituais" (alguém já fez isso no passado, ou você nunca leu as "Quatro Leis Espirituais", ou, recuando ainda mais no tempo, você não ouviu falar da "Lei"?) que, em todo e qualquer lugar, a qualquer tempo, para qualquer pessoa, funcionem sempre da mesma maneira, inexoravelmente?

Quando a exegese segue os procedimentos cientificos da História, ela submete o texto bíblico a um procedimento explicativo, não compreensivo; ela transforma o texto em "fonte", em "documento", em "evidência" (embora o melhor fosse dizer "indício"). Nesse exato momento ela destrói o texto (ou "desconstrói", mas aí estaríamos sendo injustos com a desconstrução de Derrida, que é totalmente diferente). Nos velhos tempos do historicismo positivista na exegese (para alguns estudiosos não são velhos, mas ainda atuais; embora a maior parte dos exegetas históricos atuais já tenha abandonado o positivismo), um versículo do Pentateuco facilmente se tornaria em "evidência" de duas, três ou até mais fontes - o que gerou um famoso provérbio inglês que faz o mesmo efeito em português: "O Pentateuco é mosaico, ou um mosaico?"

Ora, se queremos reescrever a história científica de Israel (uma atividade legítima), usando a Bíblia como fonte (uso também legítimo), teremos de desconsiderar a história pragmática das Escrituras (uso o termo seguindo Jörn Rüsen, um teórico da historiografia com algumas obras publicadas pela Editora da UnB), posto que essa história pragmática não é científica. Entretanto, se queremos compreender a Escritura, não teremos de desconsiderar a sua narrativa pragmática, mas de construir, a partir dela, nossas próprias narrativas fiéis a um dos projetos de vida de que se dá testemunho na Bíblia. Então, mesmo estando calvinista, evangelical radical, etc. e tal, sou discípulo do Messias Jesus, assim como não-calvinistas, não-evangelicais radicais, não-etcéteras e tais ...

Ler a Bíblia é, para mim, porém, uma arte. Como arte, ela precisa também de procedimentos rigorosos, disciplinados. Mas não será arte se se tornar impessoal! Ler a Bíblia é uma arte e, como disse o Gil, "a arte é irmã da ciência, ambas filhas de um deus fugaz, que faz num momento e no mesmo momento desfaz".

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