quarta-feira, 21 de abril de 2010

Leituras válidas - que critério?

Esta é uma breve postagem a propósito da questão levantada por Kenner em um comentário ao meu último post. A questão é uma das fundamentais no processo de leitura da Bíblia - que critério(s) podemos utilizar para distinguir leituras válidas de leituras inválidas de um texto bíblico? O exemplo dado na pergunta é o da proibição a mulheres cortar o cabelo, com base em I Co 11. E o critério que Kenner propõe é o do "sentido original" do texto, ou da falta de historicidade da interpretação específica, e vincula esse critério ao método histórico-crítico. O problema é o da validade das "fusões de horizontes"...
Kenner tem razão por um lado. A partir do momento em que se aceita que a leitura é uma co-enunciação, a questão da validade de leituras surge. Colocando a resposta bem simples e direta: várias leituras são possíveis mas nem todas são legítimas. A questão, porém, permanece: como escolher entre leituras legítimas e ilegítimas?
Sim, as exegeses históricas definiram como critério o "sentido original" ou a "intenção" do autor. Isto não é de todo errado, mas não resolve o problema, pois como sabemos qual é o "sentido original"? E mesmo que saibamos, por que deveríamos ficar presos ao sentido original do texto na aplicação prática? Por exemplo: o "sentido original" da afirmação paulina de uma hierarquia na qual a mulher está sob o homem (I Co 11,2ss) não é exatamente esse que a mulher é inferior ao homem na ordem da criação e da salvação? E qual é o "sentido original" de I Co 14,33-36, a não ser que as mulheres devem ficar caladas na igreja? Um exemplo menos polêmico: nós cristãos paramos de oferecer sacrifícios de animais em busca do perdão de pecados. Mas não é a "intenção" do autor de Levítico e o sentido "original" do texto que devemos efetuar tais sacrifícios? Paramos de fazê-lo por que, com Hebreus, afirmamos que o sacrifício do Messias é o fim de todo sacrifício e que o sistema sacrificial vétero-testamentário é sombra da salvação. Não propôs o autor de Hebreus que oa "intenção" do autor divino não combinou com a intenção do autor humano?
É melhor abandonar o "sentido original" ou a "intenção do autor" como critérios, pois além dos problemas relacioandos à descoberta de ambos, há inúmeros problemas relativos à aplicação ética do "sentido original" de textos em contextos distintos e da "intenção do autor" diante da intenção divina, ou da intenção do leitor, etc.

Voltemos ao critério possível. A historicalidade do texto é um deles, talvez o melhor deles. Mas não no sentido de uma "originalidade" e sim no sentido de uma "limitação". Todo texto é limitado pelo seu contexto e precisa ser re-criado em novos contextos. Não seria o limite de I Co 11 e 14 (textos acima usados como exemplo) a própria incapacidade, ou impossibilidade, de Paulo colocar plenamente em vigor a afirmação de que em Cristo não há homem nem mulher?
Para as semióticas e as análises do discurso, a historicalidade de um texto é analisada como efeito de sua interdiscursividade, ou da "heterogeneidade constitutiva do discurso". Ou seja, todo texto é um cruzamento de muitos textos, a montante e a jusante (anteriores e posteriores ao texto). É no arranjo desses cruzamentos, mediante a constituição de uma "teia de discursos" que se diferenciam leitura legítimas de leituras ilegítimas. Não se trata, então, do sentido original ou da intenção do autor de um "texto" (especialmente quando texto é apenas uma perícope). Trata-se, sim, da intencionalidade discursiva, das limitações e possibilidades de um arranjo de textos em discursos e de discursos em teias discursivas dentro de contextos históricos específicos.

Bem, apenas uma possibilidade. Arnaldo Cortina, em seu livro, O príncipe de Maquiavel e seus leitores. Uma investigação sobre o processo de leitura. São Paulo: Editora da UNESP, 2000 (disponível gratuitamente na internet) oferece outros argumentso na linha sêmio-discursiva. Rolf Knierim, formado na exegese histórico-crítica, em seu livro A interpretação do Antigo Testamento. São Bernardo do Campo: Editeo, 1990, também oferece outros argumentos na mesma linha. Umberto Eco, em A Obra Aberta, também debate esta questão. Bibliografia para isto não falta ...

Um comentário:

  1. Para quem interessar, o livro de Arnaldo Cortina: "O príncipe de Maquiavel e seus leitores", pode ser encontrado em pdf no site:

    http://www.4shared.com/get/242838382/a310126a/MAQUIAVEL_-_O_Prncipe_de_Maqui.html

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